Gaivotas são invenções de Da Vinci, crianças
loucas, tesouras loucas, cães aéreos
de tão lépidos. Folhas em branco: a língua do vento.
Mas por que àquela hora tal agitação de asas?
Se desejavam algo, o que fosse, nada lhes poderia
dar ou emprestar, Imperador de uma tal pobreza,
a fronte cingida apenas pela febre. Era preciso
dizer àquelas aves que não havia água, que
talvez e sempre só tenha havido solidão
e mágoa em torno dele e dentro,
búzio vazio e mudo, poço exangue,
corredor sem portas, poço horizontal,
corredor para o fundo. Lembra: o médico
preceituara repouso, purgantes, filtros, infusões
e sua voz, salina, à maneira de cristais caía
dos olhos, não vinha da boca, e se acumulava
em cacos verdes na bacia redonda e grossa
dos óculos. Tudo inútil. Tudo nada.
Por que gaivotas àquela hora? Verso que se
lhes assemelhasse era um espalhamento de sílabas
atordoadas, felizes de não terem sentido, puro alarde
do ritmo, o mais alto, sobre o chão. Mas
nunca soubera o que fosse isso. E ali, a cortar o céu
noturno do Porto, a voz delas era uma foz estridente,
a mais terrível canção de exílio. Não deveria haver
jamais gaivotas sobre o teto de nenhum hotel,
proibidos tais gritos brancos de espuma, pois
a noite tem de ser a noite, sem pontes, hermética.
No entanto, lá estavam elas, violentas,
rodopiando como lâminas inglesas, azuis.
Era preciso considerar: um hotel ensina-nos mais
que todas as filosofias: não ficar, não ter, não ser.
E na massa escura de tudo, imaginou com a ironia
que lhe restava: um dia, a pompa de uma placa
(a Europa e seus ouropéis) à porta de entrada:
“Por ocasião da última visita realizada à Cidade
Invicta em dezembro de 1889, os Imperadores do Brasil
Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina estiveram
hospedados neste hotel.” Não dirão que já não eram
senão, mal e mal, um homem, uma mulher.
Calarão que a Imperatriz – que já não era – deixara,
ali, de ser hóspede de tudo. Aqui está a chave!
Sobre o telhado, a cama, a mulher morta,
a insônia, elas, as gaivotas, ensinariam
(se ensinassem algo) àquele homem,
àquele miserável, mais que toda ciência
e toda literatura: nadar, andar a vau, elevar-se
alegre, planar, fazer de tudo campo aberto
de abrir-se. A régua que carregam
nunca cega.
(Rua do mundo)
(Ilustração: David Witbeck - Gaivotas da manhã)
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