domingo, 30 de maio de 2021

BALADA DE LA BELLA NIÑA DEL BRASIL / BALADA DA LINDA MENINA DO BRASIL, de Rubén Darío

 



Existe un país encantado

donde las horas son tan bellas

que el tiempo va a paso callado

sobre diamantes, bajo estrellas.

Odas, cantares o querellas

se lanzan al aire sutil

en gloria de perpetuo Abril,

pues allí, la flor preferida

para mí es Anna Margarida,

la bella niña del Brasil.



Existe un mágico Eldorado

en donde Amor de rey está,

donde hay Tijuca y Corcovado

y donde canta el sabiá.

El tesoro divino da

allí mil hechizos y mil

sueños; mas nada tan gentil

como la flor de alba encendida

que he visto en Anna Margarida,

la única bella del Brasil.



Dulce, dorada y primorosa,

infanta de lírico rey,

es una princesita rosa

que amara Kate-Greenaway.

Buscará por la eterna ley

el pájaro azul de Tyltil,

sistro, oboe, arpa y añafil,

cuando Aurora a vivir convida,

adorable a Anna Margarida,

la niña bella del Brasil.



Envio



¡Princesa en flor, nada en la vida

hecho de oro, rosa y marfil,

iguala a esta joya querida:

la pequeña Anna Margarida,

la niña bella del Brasil!



Tradução de Manuel Bandeira:




Existe um país encantado

No qual as horas são tão belas,

Que o tempo decorre calado

Sobre diamantes, sob estrelas.

Odes, cantares ou querelas

Se derramam pelo ar sutil

Em glória do perpétuo abril...

Pois ali a flor preferida

Para mim é Ana Margarida,

Linda menina do Brasil.



Doce, dourada e primorosa,

Infanta de lírico rei,

É uma princesa cor de rosa

Que amara a Katy Grenaway.

Buscará pela eterna lei

O passar azul de Tiltil,

Quando entre cantos de anafil

E harpa a aurora a viver convida,

A essa rara Ana Margarida,

Linda menina do Brasil



Oferta



Princesa em flor, nada na vida,

Por mais gracioso ou senhoril,

Iguala esta joia querida:

A pequena Ana Margarida,

Linda menina do Brasil.



Existe um mágico Eldorado

(E Amor como seu rei lá está),

Onde há Tijuca e Corcovado

E onde gorjeia o sabiá.

O tesouro divino dá

Ali mil feitiços e mil

Sonhos: mas nada tão gentil

Como a luz de aurora incendida

Que brilha em Ana Margarida

— A flor mais linda do Brasil.





(Ilustração: Di Cavalcanti - Mulher com gato - 1953)

quinta-feira, 27 de maio de 2021

QUASE UMA TRAGÉDIA GREGA, de Andrea Trompczynski

     


Em uma revista de cinema, o entrevistador perguntou a Cameron Diaz se havia alguma coisa que ela gostaria muito de saber. “O que E=mc² realmente significa”, respondeu ela. O entrevistador riu, ela resmungou que estava falando sério e a entrevista terminou. Nós, leigos, fingimos que entendemos a equação e nem mesmo instruções em primeira mão ajudam, conta Chaim Weizmann, que fez uma longa travessia pelo Atlântico com Einstein em 1921: “Ele me explicava sua teoria todos os dias e logo tive a impressão de que ele a entendia”. Quem preparou o caminho para que Einstein chegasse ao mais brilhante insight (o segundo mais brilhante, por coincidência, é dele também) de muitos séculos, ou, talvez, descobriremos um dia, da história da humanidade?

David Bodanis, em E=mc² – Uma biografia da equação que mudou o mundo e o que ela significa, deixa de lado os foguetes, lanternas e diagramas incríveis e conta a história da equação desde seu nascimento, seus antepassados: homens e mulheres apaixonados por física, química e matemática. Guerras de egos, roubos de ideias e – uma constante – o total desprezo de acadêmicos consagrados pelas ideias originais de amadores. A história toda acaba por se tornar mais prazerosa do que tentar entender os meandros da genial mente de Albert, e o "como funciona" da famosa equação deixo para o dia em que eu verdadeiramente entendê-la.

Einstein não era um aprendiz humilde e exemplar. Questionava a autoridade de professores, contava piadas nas aulas, isto, quando estava presente. Há aquela famosa profecia do seu professor de gramática grega do curso secundário: “O senhor nunca chegará a ser alguém na vida” (anos depois, a irmã de Albert, Maja, comenta ironicamente que ele realmente nunca foi “alguém” mesmo, pois nunca foi mestre em gramática grega). Quando a equação nasceu, Albert cumpria expediente no escritório de patentes em Berna, na Suíça, um emprego arranjado pelo amigo Marcel Grossman – as referências do gênio eram péssimas. As horas trabalhavam contra ele e, quando saía, a única biblioteca de ciências da cidade estava fechada, nem sequer podia se manter em dia com as últimas descobertas (o que foi sua grande sorte, assim como John Forbes Nash Jr., Nobel de Economia, que se manteve longe do pensamento acadêmico tanto quanto do “da moda”, sempre em busca da tal “ideia original”, fato que havia acontecido no passado com Michael Faraday). Em minutos livres, rabiscava nas folhas que guardava em seu departamento de física teórica as ideias que tinha –o “departamento de física teórica” era como ele chamava uma pequena gaveta de sua mesa, fechada a maior parte do tempo.

Numa das longas caminhadas que Albert fazia com o amigo Michele Besso, nas quais normalmente tagarelavam sobre música e a rotina do escritório, na primavera de 1905, Besso percebeu que o amigo estava inquieto. Einstein sentia que muitas coisas em que pensara nos últimos meses estavam finalmente fazendo sentido. Estava muito perto de entender, a excitação mental era enorme naquela noite. No dia seguinte, compreendeu. E=mc² tinha chegado ao mundo.

Michael Faraday vivia na Londres de 1810 e trabalhava como encadernador para fugir da pobreza de filho de ferreiro que era. O emprego tinha uma vantagem, nas palavras dele: “Havia muitos livros lá, e eu os li”. Quando estava com vinte anos, um visitante da oficina ofereceu a ele ingressos para uma série de palestras na Instituição Real. Ouvindo Sir Humphry Davy falando sobre eletricidade e energias estranhas, imaginou uma vida melhor que aquela da oficina. Sem a mais remota possibilidade de entrar em Oxford ou Cambridge, pela pobreza extrema, pensou que poderia usar aquilo que sabia fazer muito bem: encadernar um livro. Redigiu por extenso as notas sobre a palestra de Davy, acrescentou desenhos de seu aparelho de demonstração, pegou seu couro, sovelas e ferramentas de entalhar e os encadernou em um livro extraordinário, que enviou a Sir Humphry Davy. Que, claro, quis conhecê-lo e contratou-o como assistente de laboratório.

Faraday fazia parte de uma seita cristã, os Sandemanistas, que acreditavam em uma relação circular divina. Assim: os seres humanos seriam sagrados e deviam obrigações uns para com os outros, eu ajudarei você e você ajudará o próximo e o próximo ajudará outro ainda, e assim por diante até que se complete o círculo. Seu conhecimento formal era limitado e enquanto os acadêmicos pensavam em linhas retas para explicar a relação entre magnetismo e eletricidade, ele via círculos rodopiando em torno dos ímãs. Foi a descoberta do século, a base do motor elétrico. A unificação da Energia. Quando o fio foi arrastado circulando pelo imã, o cunhado de Faraday, George Barnard, contou que nunca pôde esquecer o olhar dele e suas palavras: “Você vê, você vê, você vê, George?”. Os diferentes tipos de energia estavam vinculados, eletricidade e magnetismo, pela mente de um filho de ferreiro de vinte e nove anos. Então, Sir Humphry Davy o acusou de roubar a ideia em denúncias públicas de plágio, que fizeram Faraday enclausurar-se e somente voltar a trabalhar publicamente depois da morte de Davy.

Antoine Laurent Lavoisier era um contador. Trabalhava numa empresa de arrecadação de impostos. Durante uma ou duas horas pela manhã e apenas um dia inteiro por semana (que ele chamava de jour de bonheur, "dia de felicidade") ele trabalhava em sua ciência. Com a ajuda de sua noiva, ele desejava investigar como se comportava um pedaço de metal a queimar ou enferrujar. Queria descobrir se pesava mais ou menos do que antes. (David Bodanis pergunta antes de dizer o resultado o que você, leitor, acha? Um pedaço de ferro-velho pesará: mais; menos; o mesmo? Estamos tão preocupados com as coisas, aquele relacionamento amoroso fracassado, a velocidade de nossa internet, sapatos, o preço da gasolina ou o abdômen que esquecemos os joguinhos de ciência da infância, foi a minha conclusão ao perceber que eu não sabia). Mediram o ar perdido, o metal mutilado, e sempre, o mesmo resultado. Pesava mais. Descobriu que o oxigênio não havia sido queimado e desaparecido para sempre, havia aderido ao metal a mesma quantidade de peso que o ar havia perdido. Foi uma descoberta do mesmo nível da de Faraday, graças a seus dons contábeis, que logo também o matariam.

Jean-Paul Marat havia inventado um aparelho para exame por infravermelho, apresentou-o a Lavoisier, que o rejeitou e convenceu a Academia a fazer o mesmo. Achava que os padrões de calor não poderiam ser medidos da maneira como o médico estava proclamando que fazia. Marat amargou anos de miséria por culpa desta rejeição. Lavoisier continuava sua carreira, tanto na Academia quanto na arrecadação de impostos e teve a ideia de reconstruir um muro ao redor de Paris – havia existido um semelhante em tempos medievais – para que os cidadãos pagassem um pedágio, resultando numa maior arrecadação. O povo odiava o tal muro. Quando a Revolução Francesa começou, Marat fez questão de denunciar e lembrar e relembrar quem o construiu ao povo inflamado pela revolução, usando seu maravilhoso poder de oratória para isso. Vingou-se com todo o ódio que acumulou do homem que tinha a pele bonita dos saudáveis enquanto ele possuía a tez marcada pelas inúmeras doenças da pobreza. Lavoisier morreu na guilhotina em 1794.

Há tantas histórias mais: de Lise Meitner que teve o estudo da fissão nuclear roubada pelo ex-amante Otto Hahn; Ole Roemer, jovem astrônomo que não conseguiu convencer o orgulhoso mestre Cassini e a Academia de que a luz não era instantânea; Marie Curie que morre de câncer por tanto estudar a radiação; e, até mesmo Albert Einstein que teve a equação brilhante quase totalmente ignorada porque não se ajustava, na época, ao que os outros cientistas estavam fazendo.

Uma história de vaidades humanas e paixões que fez os maiores avanços científicos de nossa época. Úrsula Iguarán em Cem Anos de Solidão, repetia sempre que sentia a qualidade do tempo mudar, envelhecia e via os dias ficarem mais curtos e as crianças crescerem mais rápido. Eu envelheço e vejo que a qualidade das pessoas mudou. Como tinham paixão! Hoje, vê-se que os tais jovens brilhantes querem fazer faculdade e ser alguém. Ah, querem tanto ser alguém! Nossas capacidades contábeis ainda hão de nos matar como a Lavoisier – sem o glamour da guilhotina. Este livro deu-me mais perguntas do que respostas. Quando o terminei, Albert Einstein (que odiava o esnobismo de Princeton e os amigos ouviam-no sempre dizer: “esta vila de semideuses insignificantes em pernas de pau”) pairava acima da humanidade, com aquele olhar de indulgência com a desgraça e beleza da natureza humana que fez-me levantar os olhos do livro com um meio sorriso e pensar: “gênio, gênio...”.

Vila de semideuses insignificantes em pernas de pau.

Gênio, gênio...



(Ilustração:  Gheorghe Virtosu - Albert Einstein -2017)

segunda-feira, 24 de maio de 2021

LA FILLE AUX CHEVEUX DE LIN / A MOÇA DE CABELOS DE LINHO, de Leconte de Lisle

 




Sur la luzerne en fleur assise,

Qui chante dès le frais matin?

C'est la fille aux cheveux de lin,

La belle aux lèvres de cerise.



L'amour, au clair soleil d'été,

Avec l'alouette a chanté.



Ta bouche a des couleurs divines,

Ma chère, et tente le baiser !

Sur l'herbe en fleur veux-tu causer,

Fille aux cils longs, aux boucles fines ?



L'amour, au clair soleil d'été,

Avec l'alouette a chanté.



Ne dis pas non, fille cruelle !

Ne dis pas oui ! J'entendrai mieux

Le long regard de tes grands yeux

Et ta lèvre rose, ô ma belle !



L'amour, au clair soleil d'été,

Avec l'alouette a chanté.



Adieu les daims, adieu les lièvres

Et les rouges perdrix ! Je veux

Baiser le lin de tes cheveux,

Presser la pourpre de tes lèvres !



L'amour, au clair soleil d'été,

Avec l'alouette a chanté.




Tradução de Wagner Mourão Brasil:




Sentada sobre o prado que viceja,

Quem canta como canta o passarinho?

Ela é a moça de cabelos de linho,

A bela dos lábios cor de cereja.



O amor, ao límpido sol de verão,

Cantou com o pássaro uma canção.



A tua boca tem cores divinas,

Querida, que tentador a beijar!

Não queres sobre a relva conversar,

Moça de longos cílios, mechas finas?




O amor, ao límpido sol de verão,

Cantou com o pássaro uma canção



Não digas não, ó moça desalmada!

Não digas sim! Nos teus rosáceos lábios,

No comprido olhar dos teus grandes olhos,

Melhor a entenderei, ó minha amada!



O amor, ao límpido sol de verão,

Cantou com o pássaro uma canção.



Adeus, leporídeos e caprinos,

Adeus, vermelhas perdizes e zelos

De beijar o linho dos teus cabelos,

E pressionar teus lábios purpurinos.



O amor, ao límpido sol de verão,

Cantou com o pássaro uma canção.



Tradução de Isaias Edson Sidney:



Sentada sobre o prado que viceja,

Quem canta como canta um passarinho?

É a moça de cabelos de linho,

A bela de lábios cor de cereja.



O amor, ao calor do sol de verão,

Canta como um pássaro uma canção.



Tua boca tem promessas de céus,

Impossível não querer te beijar!

Só nós dois sobre a relva a conversar,

Tocarei nos cabelos e olhos teus.




O amor, ao calor do sol de verão,

Canta como um pássaro uma canção.



Não digas nem sim nem não, ó cruel,

Pois sentirei melhor o teu desejo

Desenhado nos teus olhos sem pejo

E no rubor de teus lábios de mel.



O amor, ao calor do sol de verão,

Canta como um pássaro uma canção.



Livres os dois como os animaizinhos,

Beijarei o linho dos teus cabelos,

E ao alisar o arrepio dos teus pelos,

Teus lábios vão cantar por meus carinhos.



O amor, ao calor do sol de verão,

Canta como um pássaro uma canção.



(Ilustração:  Auguste Renoir – nude)

sexta-feira, 21 de maio de 2021

A CANÇÃO NO TEMPO (QUINZE ESTROFES QUE SELAM A UNIÃO DOS LETRISTAS COM OS BAMBAS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA), de Zuza Homem de Mello

 



Como selecionar as 15 estrofes da música popular brasileira? É missão complicada e polêmica. Mas há que respeitar a regra do jogo. Ou não tem jogo. Entre os versos que ficaram de fora posso lembrar, por exemplo, os de Assis Valente (Em vez de tomar chá com torrada/ele bebeu Parati), de Ataulfo Alves (Quero morrer numa batucada de bamba/na cadência bonita do samba), de Mario Lago (Covarde sei que me podem chamar/porque não calo no peito essa dor/atire a primeira pedra ai, ai, ai/aquele que não sofreu por amor), de Aldir Blanc (E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar/Eu hoje me embriagando de uísque com guaraná), de Jorge Faraj (A deusa da minha rua/tem os olhos onde a lua costuma se embriagar) ou de Abel Silva (Nada do que quero me suprime/do que por não saber inda não quis).

São versos marcantes, que emocionam toda vez que os ouvimos bem cantados. No entanto, é lendo as letras nos encartes dos discos brasileiros que se pode avaliá-las melhor e entender por que dão ao povo a sensação de coautoria. Alguns versos chegam a ser confundidos com ditos da sabedoria popular, como Nem tudo que reluz é ouro/nem tudo que balança cai (na marchinha "Pode Ser Que não Seja", de Braguinha e Antônio Almeida) ou Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima (em "Volta por cima", de Paulo Vanzolini).

Na pesquisa, deparei com letras como a de "Águas de Março" ou a de "Samba de uma Nota só", tão integradas como um todo à canção que não é possível isolar apenas um verso. Isto posto, chegamos aos 15 escolhidos. Ouçam, ou melhor, leiam.

"Como se na desordem do armário embutido/meu paletó enlaça teu vestido/e o meu sapato inda pisa no teu"

Chico Buarque,

em "Eu Te Amo", 1980

Seria bem mais fácil escolher 15 versos de Chico e dar por terminada a questão. Alguém reclamaria? Herói nacional (segundo Tom Jobim), Chico é fecundo, femininamente sedutor, inteligentemente simples, popularmente culto, ilimitadamente criativo. "Retrato em Branco e Preto", "A Rita", "Quem Te Viu, Quem Te Vê", "Construção", "Atrás da Porta", "Tatuagem", "O Que Será", "Trocando em Miúdos", "Vai Passar", "Injuriado"... Em qualquer período e em qualquer direção. Chico não poderia deixar de ter pelo menos dois entre os melhores versos do século.

"Te perdoo porque choras/quando eu choro de rir/ te perdoo por te trair"

Chico Buarque,

em "Mil Perdões", 1983

"O Rio de Janeiro continua lindo/o Rio de Janeiro continua sendo/o Rio de janeiro, fevereiro e março"

Gilberto Gil,

em "Aquele Abraço", 1969

Gil e Caymmi são os dois artistas mais completos da música brasileira. Gil é um mestre nos achados sonoros. Além disso, sua obra é repleta de toques surpreendentes, de uma variedade imensa, e ele está sempre à vontade. Neste samba, os versos, mesmo que só declamados, têm o ritmo sincopado de um tamborim.

"Acho que a chuva ajuda a gente a se ver/venha, veja, deixa, beija, seja o que Deus quiser/a gente se embala, se embola, se embola só para na porta da igreja/a gente se olha, se beija, se molha de chuva, suor e cerveja"

Caetano Veloso,

em "Chuva, Suor e Cerveja", 1972

Na capacidade de jogo lúdico com as palavras, Caetano é imbatível. Maneja com impressionante inventividade a rítmica, a prosódia e combinações tais que cria uma forma de homofonias toda pessoal. Usando essa articulação verbal/musical, Caetano pinta um quadro de folia neste frevo empolgante.

"Queixo-me às rosas/mas que bobagem, as rosas não falam/ simplesmente as rosas exalam/o perfume que roubam de ti"

Cartola,

em "As Rosas não Falam", 1976

A delicadeza dos versos de Cartola, latente num de seus três sambas preferidos em torno da flor de sua Mangueira, é encantadora. Com uma simplicidade estonteante, Cartola oferece ensinamentos de sabedoria nos seus sambas lindos e elegantes.

"Com a corda mi do meu cavaquinho/fiz uma aliança pra ela/prova de carinho"

Adoniran Barbosa,

em "Prova de Carinho", de Adoniran e Hervé Cordovil, 1960

Observador aguçado, tendo quase sempre a cidade de São Paulo como pano de fundo para seus sambas, nosso estimado colega da TV Record tinha a invejável sensibilidade de um artista de circo. Enquanto alguns de seus versos são como diálogos de uma cena de rua, outros refletem uma marcante maneira de o brasileiro demonstrar sua ternura.

"Vista assim do alto/ mais parece um céu no chão"

Hermínio Bello de Carvalho,

em "Sei lá Mangueira", de Hermínio e Paulinho da Viola, 1968

A sensação de ver a cidade do morro, tão corriqueira para seus moradores, é um panorama quase inacessível para quem vive na cidade. Essa descrição do morro da Mangueira, captada com invejável inspiração pelo poeta Hermínio, descerra a cortina com uma metáfora digna de Neruda.

"Foi um rio que passou em minha vida/ e o meu coração se deixou levar"

Paulinho da Viola,

em "Foi um Rio Que Passou em Minha Vida", 1970

A cena do desfile das escolas, e principalmente o momento inesquecível em que nasce a paixão do torcedor, não poderia ser melhor imaginada. É a homenagem à sua Portela, de Paulinho, o sambista maior do Brasil.

"Hoje eu quero paz de criança dormindo/quero abandono de flores se abrindo/ para enfeitar a noite do meu bem/ quero a alegria de um barco voltando/quero ternura de mãos se encontrando/para enfeitar a noite do meu bem"

Dolores Duran,

em "A Noite do Meu Bem", 1959

Primeira mulher a participar do escrete dos autores de letra e música, Dolores personifica a essência do samba-canção dos anos 50, a música das mesas de bar nas rodas de boemia, centradas no Rio de Janeiro. Extravasando romantismo por todos os poros, ela atinge com doçura o coração dos namorados com suas imagens sedutoras.

"A felicidade é como gota de orvalho numa pétala de flor/brilha tranquila, depois de leve, oscila/e cai como uma lágrima de amor"

Vinicius de Moraes,

em "A Felicidade", de Vinicius e Tom Jobim, 1959

Vinicius foi o poeta de uma geração que dele se serviu para conquistas amorosas decisivas. Foi uma geração que se identificou inteiramente com seus conceitos realistas sobre o amor. E, mais ainda, Vinicius foi quem deu status aos letristas da música popular do Brasil.

"Tu pisavas nos astros distraída"

Orestes Barbosa,

em "Chão de Estrelas", de Orestes e Silvio Caldas, 1937

Citado como o preferido de Manuel Bandeira, este verso é parte da letra que retrata um momento de saudade profunda e dolorida da mulher que se foi. A cena da lua furando o telhado de zinco para criar esse tapete de estrelas no chão do barraco é perfeita para um filme cult p&b.

"Tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor"

Guilherme de Brito,

em "A Flor e o Espinho", de Guilherme, Nelson Cavaquinho e Alcides Caminha, 1957

Os versos iniciais deste clássico, celebrados pelo renomado cronista carioca Sérgio Porto, são geralmente atribuídos a Nelson Cavaquinho, um dos maiores mestres do samba. Contudo, nas parcerias de ambos, Guilherme de Brito era o letrista, portanto o autor destes versos de um lirismo angustiado, característico de sua obra.

"Quem não gosta de samba bom sujeito não é/é ruim da cabeça ou doente do pé"

Dorival Caymmi,

em "Samba da Minha Terra", 1940

Caymmi faz canções tão perfeitas que parecem criadas pela tradição popular. Como se poderá sintetizar melhor aquilo que o sambista tem vontade de dizer sobre o samba? Na franqueza destes versos tem-se a sensação de que o assunto está esgotado e não se fala mais nisso.

"Quem acha vive se perdendo"

Noel Rosa,

em "Feitio de Oração", de Noel e Vadico, 1933

Este samba também tem outro verso notável, Batuque é um privilégio/ninguém aprende samba no colégio, evidenciando a descomunal fertilidade de um dos mais admirados compositores brasileiros de todos os tempos. A obra de Noel, criada em menos de dez anos de atividade, é de tal qualidade que daria para extrair facilmente vários outros exemplos preciosos para esta lista. Sem receio de injustiça.

"Quando o verde dos teus óios/ se espaiá na prantação"

Humberto Teixeira,

em "Asa Branca", de Humberto e Luiz Gonzaga, 1947

A saga dos nordestinos foi resumida em apenas dois versos memoráveis em que o anseio do sertanejo pela cor verde se concentra nos olhos da amada. Humberto teve o mérito de dar vestimenta de canção a um tema folclórico, a pedido de Luiz Gonzaga, o maior herói da música nordestina.



(Enciclopédia viva da música brasileira)



(Ilustração:  Cândido Portinari - banda de música, 1956)

terça-feira, 18 de maio de 2021

A PELE E O VENTO, de Nálu Nogueira

 



Quando a madrugada vem

e o Vento sopra

a pele em poesia desabrocha

dizendo nua os versos de

arrepios.

 

E se o Vento sopra sussurrante

como uma brisa morna estremecendo

os pelos

a Pele, que é poesia,

mergulha em desvarios

e canta para a lua seus versos

de delírios

e espera suplicante o toque

redentor.

 

(até que o vento, em sopros

de amor

se deita sobre a Pele

e suas mãos segura.)

 

então a Pele, agora em loucura

sente os cabelos longos do Vento

lhe fazerem cócegas; ouve os

sussurros do Vento em suas costas

sente sobre si o peso do desejo

 

e cândida, rende-se;

lânguida, deita-se;

ávida, molha-se;

 

sente nas costas o peso

do Vento

e treme;

agita-se;

inunda-se;

e sonha;

 

tem dentro de si o corpo

do Vento

e tranca-se;

e move-se;

e geme;

e goza

(grávida, imensa, grata, plena);

 

quando a madrugada vem

e o Vento sopra

a Pele em poesia desabrocha

e a vida inteira fica

diferente.

 

(Ilustração: Gerda Wegener - Capture d’écran)



sábado, 15 de maio de 2021

UMA ALDEIA CINZENTA E TRISTE, de Amós Oz

 


A professora Emanuela explicou à classe como é um urso, como os peixes respiram e que sons a hiena produz à noite. Ela também pendurou na sala gravuras de animais e aves. Quase todos os alunos debocharam dela, porque nunca na vida tinham visto um animal sequer. E muitos deles não acreditaram que existissem no mundo tais criaturas. Pelo menos nas redondezas. Sem contar, disseram, sem contar que a professora não tinha conseguido encontrar na aldeia alguém que topasse ser seu marido, e por isso, disseram, a cabeça dela estava cheia de raposas, pardais, todo tipo de invencionice que as pessoas sozinhas criam devido à solidão.

Só o pequeno Nimi, de tanto ouvir o falatório da professora Emanuela, começou a ter sonhos com animais à noite. A turma ria dele quando chegava contando, logo pela manhã, como seus sapatos marrons, que durante a noite ficam ao lado da sua cama, se transformavam em dois ouriços que se arrastavam e examinavam o quarto a noite inteira, mas de manhã, quando ele abria os olhos, os ouriços voltavam de repente a ser um simples par de sapatos ao lado da cama. Numa outra vez, morcegos negros vieram à meia-noite, levaram-no sobre as asas e voaram com ele através das paredes da casa pelo céu da aldeia e por sobre os montes e os bosques, até que o conduziram a um palácio encantado.

Nimi era um menino um pouco descuidado, e andava quase sempre com o nariz escorrendo. Além disso, entre os salientes dentes da frente havia um belo intervalo. As crianças chamavam esse espaço de poço de lixo.

Todas as manhãs Nimi chegava à sala e começava a contar a todos um novo sonho, e todas as manhãs diziam-lhe chega, já ficou chato, fecha o teu poço de lixo. E quando ele não parava, atormentavam-no. Mas Nimi, em vez de ficar ofendido, também participava do deboche. Fungava e engolia o catarro, e começava de repente a chamar a si mesmo, numa alegria transbordante, exatamente pelos apelidos pejorativos que as crianças lhe deram: Poço de Lixo, Sonhador, SapatoOuriço.

Maia, a filha de Lília, a padeira, que sentava atrás dele na sala, cochichava algumas vezes: Nimi. Escuta. Você pode sonhar com o que quiser, com animais, com meninas, mas fique quieto. Não conte. Não vale a pena.

Mati dizia a Maia: Você não entende, Nimi sonha só para contar os sonhos. E geralmente os sonhos dele não se interrompem nem quando ele acorda pela manhã.

Tudo divertia Nimi e tudo despertava nele alegria: a xícara rachada da cozinha e a lua cheia no céu, o colar da professora Emanuela e seus próprios dentes salientes, os botões que esqueceu de abotoar e o rugido dos ventos no bosque, tudo o que existe e acontece parecia engraçado a Nimi. Em todas as coisas via motivo suficiente para se arrebentar de rir.

Até que uma vez ele fugiu da sala de aula e da aldeia, e entrou sozinho no bosque. Durante dois ou três dias, procuraram-no quase todos os aldeões. Por mais de uma semana ou dez dias, procuraram-no os guardas. Depois, apenas seus pais e a irmã continuaram a procurar por ele.

Passadas três semanas ele voltou, magro e imundo, todo arranhado e machucado, mas relinchando de tanto entusiasmo e alegria. E desde então o pequeno Nimi não parou mais de relinchar e tampouco tornou a falar: não pronunciou nenhuma palavra desde que voltou do bosque, e só ficava circulando descalço e esfarrapado pelas ruelas da aldeia, nariz escorrendo, mostrando os dentes e o intervalo entre eles, se metendo entre os pátios, subindo nas árvores e postes, relinchando o tempo todo, com o olho direito lacrimejando sem parar por causa da sua alergia.

Era totalmente impossível voltar a frequentar a escola por causa da "doença do relincho". As crianças, quando saíam da aula, provocavam-no intencionalmente, para que ele relinchasse. Elas os chamavam de Nimi, o potro. O médico esperava que isso fosse passar com o tempo: talvez ali, no bosque, ele tivesse se deparado com alguma coisa que o assustou ou abalou, e por enquanto está com a doença do relincho.

Maia dizia a Mati: será que eu e você deveríamos fazer alguma coisa? Como podemos ajudá-lo? E Mati respondia: deixa pra lá, Maia. Daqui a pouco eles vão se cansar disso. Daqui a pouco eles vão esquecê-lo.

Quando as crianças lhe davam um chega pra lá com zombarias, e atiravam pinhas e cascas sobre ele, o pequeno Nimi corria, relinchando. Subia bem alto nos galhos da árvore mais próxima e de lá, em meio às ramagens, se voltava para elas relinchando, com um olho lacrimejando e os dentes da frente salientes. E às vezes, até no meio da noite alta, parecia que se ouvia ao longe o eco de seu relincho no escuro. 

A aldeia era cinzenta e triste. À volta dela apenas montes e bosques, nuvens e vento. Não havia outras aldeias nas redondezas. Quase nunca chegavam forasteiros, nem sequer visitantes ocasionais. Trinta, talvez quarenta casas pequenas se espalhavam ao longo do declive, no vale fechado e rodeado por montes íngremes. Somente a oeste havia uma abertura estreita entre as montanhas, e por essa abertura passava o único caminho que levava à aldeia, mas não ia adiante, porque não havia nenhum adiante: ali terminava o mundo.

Vez por outra aparecia um vendedor ambulante, ou algum artesão, ou simplesmente algum mendigo perdido. Mas nenhum peregrino permanecia por mais de duas noites, porque a aldeia era amaldiçoada: um estranho silêncio pairava sempre ali, nenhuma vaca mugia, nenhum burro zurrava, nenhum pássaro chilreava, nenhum grupo de gansos selvagens cortava o céu vazio, tampouco os aldeões falavam entre si, só o estritamente necessário. Apenas o som do rio se ouvia sempre, dia e noite, pois um rio caudaloso corria entre os bosques nos montes. Com uma espuma branca nas margens, esse rio cortava a aldeia todinha, agitado, borbulhante, produzindo um ruído parecido com um suspiro baixo, e prosseguia sendo tragado entre as curvas dos vales e bosques.

À noite o silêncio negro e denso era ainda mais profundo do que durante o dia: nenhum cachorro esticava o pescoço ou revirava as orelhas para uivar para a lua, nenhuma raposa resmungava no bosque, nenhuma ave noturna gritava, nenhum grilo trilava, nenhum sapo coaxava, nenhum galo cantava na aurora. Já fazia anos que todos os animais dessa aldeia e das redondezas haviam desaparecido, vacas, cavalos e carneiros, gansos, gatos e canários, cachorros, aranhas domésticas e lebres. Nem mesmo um pintassilgo vivia lá. Nenhum peixe restara no rio. As cegonhas e os grous rodeavam os vales em suas jornadas errantes. Até mesmo os insetos e os vermes, até as abelhas, moscas, formigas, minhocas, mosquitos e traças não eram vistos havia muitos anos. Os adultos que ainda lembravam em geral preferiam calar-se. Negar. Fingir que esqueceram.

Anos antes viveram na aldeia sete caçadores e quatro pescadores. Mas quando o rio ficou sem peixes, quando os animais selvagens partiram para longe, emigraram dali também os pescadores e os caçadores, em busca de lugares que a maldição não havia atingido. Somente um pescador de nome Almon — um homem velho e solitário — permaneceu na aldeia. Vivia numa pequena choupana ao lado do rio e falava longamente consigo mesmo, inflamado, enquanto cozinhava uma sopa de batatas. As pessoas da aldeia ainda o chamavam de Almon, o pescador, embora ele já não fosse pescador, e sim lavrador: durante o dia Almon plantava verduras e raízes comestíveis em canteiros de terra fofa, e também cultivava umas vinte e trinta árvores frutíferas no declive da colina.

Até mesmo um pequeno espantalho Almon colocara entre os canteiros, porque acreditava que talvez, antes de sua morte, numa certa noite, todas as aves voltariam e com elas todos os animais que desapareceram. Almon discutia com o espantalho, às vezes longamente e com raiva. Ajeitava-o, repreendia-o, abandonava-o completamente, e logo voltava, trazendo uma velha cadeira; sentava-se diante do espantalho e tentava, com uma paciência infinita, convencê-lo, ou pelo menos fazê-lo alterar um pouco as suas opiniões inflexíveis.

À tardinha, em dias claros, Almon, o pescador, costumava sentar em sua cadeira à margem do rio. Ele colocava um velho par de óculos que escorregava pelo nariz em direção ao espesso bigode de pelos brancos, e lia livros. Ou sentava, escrevia e apagava linhas e mais linhas no seu caderno, sempre balbuciando consigo mesmo todo tipo de queixas, opiniões e argumentos. Com o correr dos anos, ele aprendeu a entalhar na madeira, à luz do candeeiro, à noite, belas e variadas figuras de animais e aves, e também criaturas desconhecidas que surgiam da sua imaginação ou lhe apareciam em sonhos. Almon distribuía essas criaturas de madeira entre as crianças da aldeia: Mati ganhou uma gata feita de pinha com filhotes esculpidos em casca de nogueira. Para o pequeno Nimi, Almon entalhou um esquilo, e para Maia, dois grous de pescoço esticado com as asas abertas, prontos para voar.

Somente por essas estatuetas, bem como pelos desenhos feitos pela professora Emanuela na lousa, as crianças conheciam o aspecto de um cachorro, do gato, da borboleta, do peixe, do pintinho, do cabrito e do bezerro. A professora Emanuela também ensinou a algumas crianças as vozes dos animais, vozes que os adultos da aldeia com certeza ainda lembravam da infância, antes que as criaturas desaparecessem, mas as crianças jamais as ouviram em toda a vida.

Maia e Mati quase sabiam de algo que lhes era proibido saber. E ambos tomavam muito cuidado para que ninguém suspeitasse que eles sabiam, ou quase sabiam. Às vezes os dois se encontravam em segredo atrás do depósito de palha abandonado, e ali sentavam e cochichavam uns quinze minutos, e se afastavam por dois caminhos diferentes. Entre todos os adultos da aldeia havia apenas um em quem, talvez, eles pudessem confiar. Ou não? Mais de uma vez, Mati e Maia quase haviam decidido contar o segredo a Danir, o consertador de telhados, que se divertia, às vezes em voz alta, com seus jovens amigos na praça da aldeia à tardinha, conversando sobre coisas proibidas para crianças. E quando bebia vinho com os amigos, até mesmo falava, rindo, de um cavalo, de uma cabra e um cachorro que ele pensava trazer para cá, de alguma das aldeias do vale.

O que teria acontecido se tivessem revelado o segredo a Danir, o consertador de telhados? Ou se decidissem contar justamente para o velho Almon? E se algum dia se atrevessem a penetrar um pouco na escuridão do bosque para tentar esclarecer até que ponto o segredo era verdadeiro, ou se não passava de uma ilusão, um sonho passageiro que mais combinava com Nimi, o potro, do que com eles?

E por enquanto esperavam, sem saber exatamente o que esperavam. Uma vez, à tardinha, cheio de coragem, Mati perguntou ao pai por que as criaturas tinham desaparecido da aldeia. O pai não se apressou em responder. Levantou-se do banco da cozinha, caminhou alguns instantes de uma parede a outra, e então parou e segurou os ombros da Mati. Mas em vez de olhar para o filho, os olhos do pai se perderam numa mancha escura na parede, em cima da porta, de onde tinha caído o reboco por causa da infiltração de umidade, e disse isto: Veja. Mati. É assim. Certa vez aconteceram aqui coisas de todo tipo. Coisas das quais não podemos nos orgulhar. Mas nem todos são culpados. É claro que não somos todos culpados na mesma medida. Fora isso, quem é você para nos julgar? Você ainda é pequeno. Não julgue. Você não tem nenhum direito de julgar adultos. E, afinal, quem exatamente contou a você que um dia existiram animais aqui? Pode ser que sim, quem sabe. E pode ser que nunca tenham existido. Pois já passou muito tempo. Esquecemos, Mati. Esquecemos e pronto. Deixa pra lá. Quem ainda tem força para lembrar? Agora desça ao porão e traga um pouco de batatas, e chega de ficar falando sem parar.

E quando Mati se levantava para sair do aposento, seu pai ainda acrescentou: Preste atenção, por favor, vamos combinar agora, você e eu, que essa conversa não aconteceu. Que mão falamos nada sobre isso.

Os outros pais, quase todos, preferiam negar. Ou contornar o assunto com silêncio. Não falar dele de jeito nenhum.

Principalmente na presença das crianças.



(De repente, nas profundezas do bosque; tradução de Tova Sender)



(Ilustração:  Paul Delvaux at the Albertina)

quarta-feira, 12 de maio de 2021

NO SE TRATA DE RENCOR, SINO DE ODIO /NÃO SE TRATA DE RANCOR, MAS DE ÓDIO, de Leopoldo María Panero

 



Ils convoitent la haine, au lieu de la rancune

Stéphane Mallarmé



Nada hay tan puro como el ódio

que vierte esta fuente como dorada bílis

y en donde hay miles de flores saliendo de la enredadera

cruel de la nada, miles

de temblorosas lilás

como mil mentiras.

Yo soy alguien que miente en la tarde

rubí en los ojos del sapo

y espera que forma la cacería

de ciervos en la noche.

Porque lo que soy yo sólo lo sabe el verso

que va a morir en tus lábios

como el relincho que da fin a la caza.



Tradução de Bruno Brum:




Não há nada tão puro quanto o ódio

que esta fonte jorra como bile dourada

e onde há milhares de flores brotando da trepadeira

cruel do nada, milhares

de trêmulos lilases

como mil mentiras.

Eu sou alguém que mente na tarde

rubi nos olhos do sapo

e espera pela caçada

de cervos na noite.

Porque o que sou só o sabe o verso

que vai morrer em seus lábios

como o relincho que põe fim à caça.



(Piedra Negra o del Temblar - 1992)



(Ilustração:  Alméry Lobel-Riche - 1877-1950 - Salomé)



domingo, 9 de maio de 2021

JOSÉ J. VEIGA: A HORA DOS RUMINANTES, UM ROMANCE METAFÓRICO, de André Luiz Alves Caldas Amóra e Tatiana Alves Soares Caldas




E como numa casa cheia de suspiros e recriminações

ninguém pode ser inteiramente feliz

(A hora dos ruminantes, p. 109)



A hora dos ruminantes, romance de José J. Veiga, conta a história de um lugarejo pacato - Manarairema - que é bruscamente submetido à opressão de homens desconhecidos e misteriosos, que se instalam próximos ao lugar.

Alegórico em alguns aspectos e possuindo elementos do realismo fantástico, o romance desenvolve-se através de símbolos, sendo estes um recurso estilístico para denunciar o contexto histórico-político ditatorial. Procuramos, neste trabalho, explorar alguns desses recursos de âmbito semântico e lexical, através das imagens apresentadas.

Segundo Todorov (1970), o fantástico caracteriza-se por uma atitude de hesitação diante de um acontecimento que não apresenta explicações naturais, ocupando, portanto, o tempo da incerteza. Assim que uma resposta é apresentada, sai-se do fantástico e envereda-se pelo estranho ou pelo maravilhoso.

A hora dos ruminantes, portanto, apresenta uma narrativa fantástica no plano da história. Podemos perceber este aspecto fantástico, por exemplo, na invasão dos cachorros e na dos bois. Na primeira, Manarairema entra em pânico, quando centenas de cães tomam conta da cidade, invadindo casas e acuando os habitantes. Em seguida, sem nenhuma explicação, os cachorros deixam o pacato lugar. Porém, o pior ainda estava por vir: uma outra invasão, a dos bois, deixaria a cidade totalmente encurralada. Os ruminantes tirariam a tranquilidade de Manarairema, colocando os moradores como prisioneiros em suas próprias casas e desaparecendo misteriosamente, como os cães, deixando a cidade em paz. Pode-se dizer que este romance tende ao maravilhoso, já que não há explicações para o aparecimento nem para o sumiço dos invasores - os cães e os bois.

Saindo do plano da história, A hora dos ruminantes propõe ainda uma reflexão alegórica, pois J. J. Veiga utiliza-se de símbolos que retratam a censura imposta no Brasil nos tempos ditatoriais. Flávio Kothe, em seu estudo sobre a alegoria, define-a a partir de sua relação com a metáfora:

“[A alegoria é uma] representação concreta de uma ideia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa. Subjacente ao nível manifesto, comporta um outro conteúdo. É uma metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição do pensamento em causa por outro, ligando ao primeiro por uma relação de semelhança.“ (KOTHE, 1986: 90)

Dessa forma, portanto, verifica-se a ocorrência simultânea do fantástico e da alegoria, categorias que normalmente excluem uma à outra. Acreditamos, contudo, que não seja esse o caso, uma vez que a alegoria e o fantástico se dão em esferas diferentes n'A hora dos ruminantes. Enquanto o fantástico se estabelece no enunciado, a alegoria é percebida somente na reflexão por parte do leitor.

Selma Calasans Rodrigues, em seu estudo sobre o fantástico, analisa o modo pouco usual com que o tema é explorado pelo escritor brasileiro:

“J. J. Veiga (...) situa seus personagens num espaço rural, mas que acaba por ser um espaço alegórico que quer falar sempre da relação entre opressor e oprimido ou da possibilidade de viver a liberdade apenas no sonho (...). Seu fantástico, que começa leve, se adensa, avizinhando-se do absurdo (...) e, a par das reflexões de caráter existencial, parece ser a alegoria da sociedade brasileira dos anos de ditadura e opressão.” (RODRIGUES, 1988: 65-66)

Além disso, outro aspecto importante no que se refere aos conceitos em questão seja a peculiaridade da realidade brasileira, o que, segundo o próprio J. J. Veiga, descaracterizaria o próprio conceito do fantástico. Nas palavras do autor, o gênero definido por Todorov talvez não funcione na literatura brasileira, uma vez que o fantástico já estaria próximo à nossa realidade:

Esse fantástico precisa ser muito pensado, estudado, porque não é tão fantástico assim. É o que acontece mesmo. (...) Além disso, coisas incríveis como a lepra, erradicada de muitos países, acontecem ainda aqui. O desrespeito pela pessoa exercida pelos poderosos. (...). Fantástica mesmo é a existência de sociedades que ainda toleram isso no mundo de hoje (...).

Nosso trabalho, como dissemos, pretende explorar as questões do âmbito semântico e lexical, através das imagens apresentadas. Tomaremos como base a reflexão alegórica que podemos desenvolver no plano do discurso.

No campo semântico-lexical, muitas são as imagens que remetem ao momento de ditadura [e ao governo Bolsonaro, com a boiada do 'ministro do Meio-Ambiente]. A divisão do romance em partes - correspondentes às três invasões - que se vão intensificando metaforiza a situação que foge ao controle da população. A primeira parte, intitulada A chegada, refere-se à invasão realizada pelos homens da tapera. Significativos são os dois parágrafos iniciais da narrativa, que parecem sintetizar o que virá em seguida:

“A noite chegava cedo em Manarairema. Mal o sol se afundava atrás da serra - quase que de repente, como caindo - já era hora de acender candeeiros, de recolher bezerros, de se enrolar em xales. A friagem até então continuada nos remansos do rio, em fundos de grotas, em porões escuros, ia se espalhando, entrando nas casas, cachorro de nariz suado farejando.

Manarairema, ao cair da noite - anúncios, prenúncios, bulícios. Trazidos pelo vento que bate pique nas esquinas, aqueles infalíveis latidos, choros de criança com dor de ouvido, com medo escuro. Palpites de sapos em conferência, grilos afiando ferros, morcegos costurando a esmo, estendendo panos pretos, enfeitando o largo para alguma festa soturna. Manarairema vai sofrer a noite.” (VEIGA, 2001: 9)

A passagem acima prenuncia o que virá a seguir. A imagem da noite, geralmente tida como negativa, assume contornos ainda mais assustadores pelos vocábulos utilizados para caracterizá-la - friagem, grotas, porões escuros -, ideia intensificada pela informação de que o cair da noite trará sofrimento. Digno de destaque é o início do segundo parágrafo do texto, associando os prenúncios e bulícios à noite. A passagem apresenta ainda referências a um medo escuro, além de panos pretos e morcegos, atribuindo um ar ainda mais macabro à noite de Manarairema, com tudo remetendo ao sombrio, às trevas, com toda a simbologia nelas contida. Ao dizer “Manarairema vai sofrer a noite”, o narrador identifica a noite como agente causador do sofrimento do lugar. A ausência da crase impossibilita que se veja a noite como um adjunto adverbial de tempo, reiterando a ideia de que ela seria a verdadeira expiação do pacato lugarejo.

A narrativa transcorre sem que se saiba de imediato o que de tão aterrador aconteceria no lugar. Entretanto, literalmente da noite para o dia, tudo parece se transformar:

No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. (VEIGA, 2001: 12)

A imagem do acampamento surge com tal rapidez que causa assombro nos habitantes do lugar. Aos poucos, a curiosidade transforma-se em especulação:

“(...) aqueles lá acamparam em linha, duas fileiras, medidas, deixando uma espécie de largo no meio. (...) enquanto os homens andavam ativos carregando volumes, abrindo volumes, se consultando, sem tomar conhecimento da cidade ali perto. Seriam engenheiros? Mineradores? Gente do governo?” (VEIGA, 2001: 13)

Segundo nossa leitura, que vê nas invasões uma alegoria da ditadura militar [e que cai bem ao que estamos vivendo] é expressiva a informação de que estes primeiros invasores comportam-se de uma maneira muito semelhante à dos militares, com acampamentos estrategicamente estruturados. Note-se ainda que, em suas especulações, os moradores desconfiam tratar-se de “gente do governo”, numa sugestão de que uma ocupação militar estaria acontecendo. Significativamente, num indício da opressão que viria, a curiosidade cede lugar ao desejo de agradar aos forasteiros:

“(...) Os comerciantes ficaram de lojas abertas até mais tarde, mas por uma questão de cortesia com os estranhos, caso eles precisassem de alguma coisa - e também pelo bom nome de Manarairema; imagine-se o que os homens não iriam dizer se não pudessem comprar um maço de velas, uma garrafa de querosene.” (...) (VEIGA, 2001: 14)

Verifica-se também a incredulidade por parte dos habitantes, uma incredulidade que já traz consigo uma nostalgia de tempos outros, como se adivinhassem todo o terror por vir:

“(...) À noite, quando iam fechar as janelas para dormir e davam com os olhos com o clarão do acampamento, as pessoas procuram se convencer de que não estavam vendo nada e evocavam aquele trecho de pasto como ele era antes (...). Mais tarde podia haver sonhos com os homens figurando como inimigos, mas eram apenas sonhos, vigorantes somente na escuridão dos quartos, solúveis na claridade do dia.” (VEIGA, 2001: 16)

E, assim como ocorre com vários aspectos ruins, paulatinamente a cidade parece absorver a presença dos invasores, referidos como homens da tapera:

“(...) Manarairema já não se preocupava tanto com os homens, e quando alguém falava neles era como quem se refere a realidades familiares - o calor, doenças, a carestia - o acostumado, o absorvido. (...)” (VEIGA, 2001: 25)

E estes homens - que jamais se apresentaram ou se explicaram à população da cidade, mas que chegaram a fincar um mastro no acampamento, marcando, simbolicamente, a tomada de posse - começam a modificar o cotidiano do lugar, gerando uma conduta tácita por parte dos habitantes:

“Essas visitas foram se repetindo e caíram numa rotina que o povo acabou por aceitar. Mal eles chegavam, os fregueses iam saindo espontâneos, sem esperar que Amâncio os expulsasse. Ninguém se arrepiava, ninguém manobrava para ficar. E mais estranho ainda, ninguém procurava saber que assuntos eram tratados naquelas reuniões à porta fechada, entre cachos de bananas e tranças de cebola. Podia ser que o povo estivesse se cansando daqueles homens e de suas obras intermináveis, obras cujo sentido - se tinham mesmo algum - ninguém alcançava nem queria mais alcançar; e quanto menos se falassem deles, mais tempo e mais cabeça sobravam para o capinar diário.” (VEIGA, 2001: 45)

A população se comporta de forma passiva diante dos invasores e, ainda que contrariados, parecem não ter saída senão obedecer. Um bom exemplo é de Geminiano Dias, que a princípio se opõe à prepotência dos homens, mas em seguida age como se não tivesse escolha, tendo de se conformar com seu fardo. Como uma espécie de Caronte, barqueiro condenado a realizar seu trabalho ad eternum, ele parece escravo de suas atividades, por mais que se sinta aviltado por elas:

“(...) a cabeça baixa, num conformismo inconformado, parece que procurando no chão a justificativa para aquele trabalho absurdo, idiota. (...)” (VEIGA, 2001: 45-46)

Em determinado momento, a imagem desse fardo é reiterada pelo termo prisão, utilizado pelo personagem em conversa com um amigo:

“- O que é que eu faço, meu pai, o que é que eu faço? Como é que vou sair desta prisão? Por que foi que não recuei enquanto era tempo? O que será de mim agora? Não aguento mais! Estou nas últimas! Vejo que vou acabar fazendo uma besteira.” (VEIGA, 2001: 46)

A segunda parte do romance intitula-se O dia dos cachorros e marca a segunda invasão da história. Os cães, longe de representar a fidelidade e a proteção normalmente a eles associadas, surgem como mais uma das pragas que assolam Manarairema:

“(...) O palco estava armado para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.

(...)

Escorraçados da frente, os cachorros surgiam nos quintais quebrando plantas, revolvendo hortas, derrubando cercas, pulando muros, perseguindo galinhas, matando pintos, parando de vez em quando para retirar chumaços de penas da boca com as patas ou pelo processo de esfregar o focinho no chão. Os homens tentavam espantá-los a pedradas, apanhavam uma pedra e ficavam tontos com ela na mão, não sabendo para que lado jogar, os cachorros eram muitos e vinham de todos os lados, nem tomavam conhecimento da gente, pareciam estar à procura de alguma coisa mais importante. Às vezes se ouvia um tiro e um ganido, que o alarido geral abafava.” (VEIGA, 2001: 53-54)

A imagem de cães irreverentes e arrogantes, que parecem ignorar os humanos, aponta o caos que se instaurou na cidade, numa espécie de inversão da ordem que desatina ainda mais os moradores, remetendo à truculência utilizada durante a época ditatorial:

“Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir.” (VEIGA, 2001: 54)

A gente encolhida no escuro referida no texto traduz o contexto de medo e opressão dos anos de chumbo. Nesse mundo-cão em que Manarairema se transformou, o desrespeito dos cães pelos habitantes chega a extremos, como se verifica na passagem a seguir:

“Outros parece que entravam numa casa apenas para descarregar a bexiga; chegavam, farejavam, escolhiam o lugar, às vezes até um par de botinas encostado num canto, e calmamente se aliviavam; ou rodavam, rodavam no meio da sala, o corpo encurvado no meio, as pernas traseiras abertas, espremiam, largavam uns charutinhos ou uma broa; satisfeitos com o resultado, raspavam as partas duas, três vezes e saíam sem olhar para ninguém, os donos da casa que providenciassem a limpeza. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas, consolando-se em pensar que não há mal nenhum que sempre dure.” (VEIGA, 2001: 55)

A inversão de valores observada atinge um ponto tal que os cães começam reverenciados pelos moradores, ainda que isso seja apenas motivado pelo medo:

“(...) De repente ficou parecendo que todo mundo adorava cachorro, quanto mais melhor, e só tinha na vida a preocupação de fazê-los felizes. Se uma criança desavisada apanhava o chicote preparado pelo pai e ameaçava um cachorro mais atrevido, era imediatamente obstada e castigada com o mesmo chicote. A ordem era respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória.” (VEIGA, 2001: 55)

A opressão camuflada em progresso - uma das marcas da ditadura brasileira, presente inclusive em campanhas publicitárias da época - pode ser percebida na narrativa por meio das palavras de Amâncio, homem briguento e temido, mas que, fazendo jus ao nome, amansa-se diante dos homens da tapera:

“(...) Eles vieram trabalhar, trazer progresso. Se o povo não entende, e fica de pé atrás, a culpa é do atraso, que é grande. Mas eles vão trabalhar assim mesmo, vão tocar para a frente de qualquer maneira. Quem não gostar que coma menos.” (VEIGA, 2001: 59)

O povo, espoliado e sofrido, percebe que, na prática, não é mais preciso dever para temer. No diálogo entre personagens, a constatação do desrespeito aos direitos humanos fica evidenciada:

“- (...) Quem não deve não teme.

- Aí que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos?! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não estamos mais naquele tempo...” (VEIGA, 2001: 69)

Após a saída dos cães, reinava uma aparente paz. Porém, o pior estaria por vir, e se concretizaria na terceira invasão, denominada O dia dos bois. Ainda mais intimidadora e surpreendente do que a anterior, essa invasão torna-se uma verdadeira ocupação, trazendo impotência ao povo. A falta de privacidade e espaço enclausura os habitantes da cidade, numa dominação não apenas física, mas também psicológica:

“Não se podia mais sair de casa, os bois atravancavam as portas e não davam passagem, não podiam; não tinham para onde se mexer. Quando se abria uma janela não se conseguia mais fechá-la, não havia força que empurrasse para trás aquela massa elástica de chifres, cabeças e pescoços que vinha preencher o espaço.

Frequentemente surgiam brigas, e seus estremecimentos repercutiam longe, derrubavam paredes distantes e causavam novas brigas, até que os empurrões, chifradas, ancadas forçassem uma arrumação temporária. O boi que perdesse o equilíbrio e ajoelhasse nesses embates não conseguia mais se levantar, os outros o pisavam até matar, um de menos que fosse já folgava um pouco o aperto - mas só enquanto os empurrões vindos de longe não restabelecessem a angústia.” (VEIGA, 2001: 120)

Outro aspecto relevante no que se refere à alegoria do momento ditatorial diz respeito à tortura, prática usual de intimidação, neutralização e eficaz na obtenção de informações. Traço mais sombrio do regime ditatorial, a tortura aparece descrita no romance por meio das palavras de Pedrinho, massacrado física e psicologicamente pelos homens da tapera:

“- Eles tomaram ela de mim. Levaram lá para dentro. Eu reagi. Muitos me seguraram. Gritei, xinguei, mordi. Eles me amarraram. Ela ajudou. Nazaré ajudou. Me jogaram numa grota no quintal. Olhe as marcas das cordas. Me davam comida numa gamela no chão. Eu tinha de comer enfiando a cara, como cachorro. Ela ficava perto olhando, de vez em quando empurrava a gamela para longe com o pé, só para me ver me arrastar no chão. Hoje de madrugada manejei soltar as mãos, desamarrei as peias e fugi.” (VEIGA, 2001: 128)

Além das táticas de tortura encontradas no texto, expressiva é a indignação do personagem ao relatar que a sua própria namorada os tinha auxiliado. Nazaré simboliza todos aqueles que traíram seus companheiros durante a repressão.

E, se é de repressão que trata A hora dos ruminantes, também não se pode deixar de vislumbrar a perspectiva de redenção, num final apoteótico marcado pela alegria, pela liberdade, numa espécie de comunhão coletiva. Dignas de destaque são as imagens que remetem ao campo semântico do positivo, do honesto:

“De repente, a descoberta. Gente não se contendo e abrindo janelas, ainda receosa mas já esperançada. O espanto, a incredulidade - a alegria. O céu claro, as ruas limpas, o luar purificando o lamaçal de esterco e urina. Era possível? Era verdade? Gente chamando gente, sacudindo gente, arrastando gente para ver, todas as janelas se abrindo, por todos os lados a claridade, o desafogo. Gente rindo, gente pulando e se abraçando e dançando na lama, gente se vestindo às pressas e correndo para a rua, esmurrando as portas dos vizinhos, gritando, chamando, disparando armas de fogo.

(...)

Ninguém quis perder tempo falando nos homens da tapera, se alguém se lembrou deles foi de passagem, o momento era alto demais para miudezas, agora era festejar e tocar para frente, quem não gostasse que se recolhesse e tapasse os ouvidos.

Às vezes a lua era vedada por uma massa escura de nuvens, mas isso não diminuía o entusiasmo do povo. Meninos acenderam fogueira na porta da igreja, gente grande reuniu-se em volta para aproveitar o calor, apareceram garrafas em várias mãos, até meninos provaram, ninguém censurou porque a noite era de todos, merecida. Os cachorros também, tanto tempo presos em casa, ou amarrados para não espantarem os bois, saíram para comemorar a desocupação, pulavam em volta dos donos, montavam uns nos outros, rosnavam e se mordiam de brincadeira, metiam-se em correrias por entre as pernas das pessoas e não sofriam ralhos nem pancadas, reconhecia-se que eles também tinham direito de estar alegres.” (VEIGA, 2001: 135-136)

A descoberta que abre a citação fala de um céu claro, de ruas limpas, de claridade e de desafogo, numa inquestionável associação com o fim da ditadura, realizada no plano da diegese, mas ainda uma ficção na realidade brasileira da época.

Depois de tantos dias de cães e bois, é do povo de Manarairema o dia então. Todos pulam e brincam, num sinal de irreverência e liberdade. Os únicos animais a serem vistos pertencem à cidade, e é nesse clima que a narrativa finda, não sem uma constatação um tanto amarga: a de que ainda levará um certo tempo até que tudo seja esquecido, pois as sequelas são muitas - e dolorosas:

“(...) E mesmo depois que o sol secasse tudo, por muito tempo ainda ficaria a poeira fina, moída pelos cascos dos animais e levantada pelo vento, lembrança amarga dos tristes dias passados. Com aquela poeira se imiscuindo por toda parte, Manarairema custaria muito a voltar ao que era, se voltasse.” (VEIGA, 2001: 139)

O romance finda com uma imagem muito expressiva: um relógio de igreja batendo horas, ainda desregulado. Apesar de ainda lerdo, seus ponteiros vão sendo pouco a pouco acertados, em mais uma das metáforas que perpassam o texto. Bons e maus momentos retornam, fazendo um balanço do acontecido e passando a limpo o tempo de Manarairema.



Bibliografia


BIEDERMANN, Hans. Dicionário Ilustrado de Símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1983.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

KOTHE, Flávio. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001



(Ilustração: Matt Verginer)