O Brasil detém duas importantes marcas da presença do lesbianismo em nossa história: em Ilhéus, na principal praça da cidade de Grabriela Cravo e Canela, lá está uma bela estátua de Safo de Lesbos, considerada a "matriarca" do lesbianismo. É uma escultura em mármore branco, tamanho natural, obra italiana ou francesa, de autor desconhecido, provavelmente esculpida no final do século XIX. Não se tem notícia de outra cidade no mundo que tenha em sua praça principal, estátua da "fundadora do lesbianismo".
A segunda marca da presença lésbica em nossa história remete-nos à figura de nossa Alteza Imperial, D. Maria Leopoldina Josefa Carolina, Arquiduquesa de Áustria, Imperatriz do Brasil [...], (1797-1826). Sua aparência física e hábitos masculinizados, as muitas cartas que trocou com a inglesa Maria Graham, sugerem enfaticamente que Leopoldina também "gostava do roçadinho"...
Não foi com a Imperatriz Leopoldina a primeira vez que o lesbianismo penetrou em palácios reais: a intrépida Rainha Cristina da Suécia (1626-1689) manteve comprometedora afeição e terna correspondência com sua dama de honra, Ebba Sparre e um clamoroso romance com uma freira romana, quando de seu exílio na Itália.
A própria Maria Antonieta, a infeliz mulher o rei Luiz XVI, teve romances glamurosos com duas favoritas: Madame de Lamballe e Mademoiselle Jules de Polignac, conforme relatam seus biógrafos mais fidedignos. Das lésbicas reais, a menos afortunada foi Catarina Howard, uma das esposas de Henrique VIII, decapitada sob a acusação de trocar o amor do rei pelo carinho de outras mulheres.
A nossa Imperatriz Leopoldina - hoje nome de estação de trem, escola de samba e de cidade mineira - era uma princesinha feia. Segundo seus biógrafos, nada tinha de bonita, sequer de agradável. Era a antítese do ideal que o fogoso Príncipe D. Pedro I acariciava. Em vez de uma mulher-fêmea, lhe impingiram uma universitária por esposa. Em vez de costureiros e professores de dança, a Habsburgo trouxe da Áustria duas missões de naturalistas. Melhor para o Brasil, pois herdamos maravilhosas descobertas e registros iconográficos feitos por esta equipe de pesquisadores.
Eis como seu principal biógrafo, Pedro Calmon, a descreve: baixa, fornida de carnes, pele leitosa, faces rebentando de sangue, os cabelos de um loiro queimado, o nariz pequeno, os olhos severos, a boca diminuta e carnuda, as mãos papudas, numa inquietação viril a dialogar com seus naturalistas. Ao desembarcar no porto do Rio de Janeiro, assustou o noivo!
De espírito varonil, era inclinada às ciências exatas. Usava curiosas vestes meio masculinas, abusava das bebidas alcoólicas. De longe parecia um homem, enganchada no ginete, ostentando uma virilidade grotesca. Amava a equitação, a caça, os exercícios desportivos, preferências pouco adequadas à fragilidade do seu sexo de princesinha criada aos sons dos minuetos de seus conterrâneos Mozart e Haydn.
Tudo leva a crer que Maria Graham foi a principal paixão lésbica de Leopoldina, ou quando menos, a única até agora descoberta pelos historiadores: Maria era natural da Inglaterra, de família nobre, viúva de um explorador. Foi contratada como governanta da filha primogênita de Leopoldina, D. Maria da Glória. Sua permanência na Corte - no Palácio de S. Cristóvão, hoje Quinta da Boa Vista, não chegou a um mês, quando foi despedida pelo próprio Imperador - certamente enciumado com as intimidades entre estas duas europeias. A inglesinha era 12 anos mais jovem que a imperatriz austríaca.
Nos 25 dias que dormiram sob o mesmo teto em Palácio, estas duas senhoras mantiveram estreita amizade: "a princípio a Imperatriz chamava-me ao seu apartamento, conta a Governanta Maria Graham em seu Diário, aproveitando-se da sesta que D. Pedro tirava após ao almoço. A familiaridade com que a Imperatriz me tratava, excitava violentos ciúmes entre as damas da corte " - daí ter preferido D. Leopoldina procurar sua amiga dileta em seu quarto, no andar superior. "Nossa conversinha sossegada durava até a Imperatriz ir-se preparar para o passeio da tarde com o Imperador..."
Tão idílica felicidade durou pouco: um emaranhado de intrigas das cortesãs da Quinta da Boa Vista levaram o ciumento marido imperial a praticamente expulsar a inglesinha de Palácio. Maria teve de deixar a companhia de Leopoldina, a toque de caixas, não antes de as duas amigas ainda privarem de alguns momentos de intimidade: "chorando, conta Maria Graham, a Imperatriz usou suas pequenas e brancas mãos para embrulhar meus livros e roupas, ocupando-se de tudo o que podia. Foram muitas lágrimas derramadas dos dois lados na manhã da partida."
Nos primeiros dias após esta cruel separação, por ordem escrita de demissão assinada pelo Imperador, Leopoldina enviou quase diariamente cartas a sua amiga e confidente, sempre tratando-a com expressões as mais amatórias: "Minha querida amiga", "Queridíssima amiga", "Minha delicadíssima e única amiga". Ao se despedir, a amazonas imperial novamente abre seu coração carente: "Vossa amiga afetuosa e dedicada", "Vossa muito afeiçoada amiga".
Revela amiúde o quanto fora-lhe importante conviver com a jovem viúva inglesa: "Eis que não passa um momento sem que eu não lamente, vivamente, ter-me privado de vossa companhia e amável conversação, meu único recreio e verdadeiro consolo nas horas de melancolia. Crede-me, minha delicada e digna amiga, que sinto vivamente o sacrifício que impus no meu coração, que sabe apreciar as doçuras da amizade, separando-me de vós... Penso mil vezes em vós e nos deliciosos momentos que passei em vossa amável companhia..."
Como terão sido estes momentos deliciosos e esta amável companhia? Puro amor platônico ou frissons e êxtases lesbianos?
Deixando o Brasil, Maria Graham alimentou esperanças na infeliz Imperatriz, de que um dia ainda voltariam a ter aqueles deliciosos momentos que tanto marcaram suas vidas. Eis as palavras de Leopoldina: "Quantas vezes, com saudades, penso em nossas conversas diárias, persuadindo-me com a esperança de vos rever ainda na Europa, onde nenhuma pessoa do mundo será capaz de me forçar a deixar de vos ver diariamente e dizer, de viva voz, que sou, para toda a vida, vossa amiga afetuosa e dedicada..."
E completa suas fantasias amorosas: "A primeira coisa que farei ao chegar a Londres será certamente procurar-vos, onde quer que estiverdes e agradecer-vos pessoalmente todas as provas de amizade que houvestes por bem me fornecer. Só as expansões no coração de uma verdadeira amiga podem promover a felicidade: nossa maneira de pensar é a mesma e a nossa amizade constante para sempre!"
Oh! Que linda declaração de amor! Que maravilhosa afirmação de que apenas uma mulher pode entender e realizar profundamente outra mulher: "só as expansões no coração de uma verdadeira amiga podem promover a felicidade!"
De sua parte, a inglesinha Maria Graham também não poupava palavras de amor para sua protetora, a quem dizia ser "a mais amável das mulheres". Em uma carta enviada de Londres, dizia: "Minha augusta e bem-amada amiga: a distância que me separa de V. Majestade não poderá jamais alterar a viva amizade que me inspirou vossa condescendente bondade e doçura. Ninguém no mundo pode amar, estimar e respeitar mais V. M. do que a amiga fiel e afetuosa e serva dedicada."
Amar, estimar e respeitar são sentimentos tão profundos, e quando elevados à condição máxima - "ninguém no mundo pode amar, estimar e respeitar mais Vossa Majestade!" - constituem a suprema declaração de amor de uma mulher por outra jamais registrada na história antiga do Brasil!
A figura de Maria Graham também sugere que se tratava de mulher forte, pouco convencional em matéria de gênero. Dizem seus contemporâneos que era extremamente sóbria, vestindo-se sem vaidades.
Diferentemente das mulheres de seu tempo, confessa em seu diário que nunca gostou de dançar nem de usar joias. Corajosa, viveu por vários meses numa chácara isolada no morro das Laranjeiras, nos arrabaldes do Rio de Janeiro, onde certa feita, empunhando uma machadinha, enfrentou um assaltante que tentava entrar pela janela de seu quarto. Mulher de cabelo na venta, essa viúva britânica! Em seu diário, em outubro de l821, escrevia: "Não vi hoje uma só mulher toleravelmente bela pela cidade do Rio de Janeiro..."
Às vésperas da Independência, fez questão de se encontrar com a mulher-soldado, Maria Quitéria - o principal travesti mulher-homem de nossa história - que de tão masculinizada, havia se alistado no exército libertador, com o nome falso de Soldado Medeiros, sem que ninguém jamais desconfiasse que não era homem de verdade.
Em seu diário, Maria Graham anotou detalhe curioso - Maria Quitéria costumava fumar um charuto após a refeição - hábito tipicamente masculino e que devia chocar muito mais antigamente do que em nossos dias. Por coincidência do destino, três mulheres fortes vivendo na cidade maravilhosa na mesma época: Leopoldina, Quitéria e Maria Graham. Mulheres pouco convencionais em questão de afeto, vaidade e feminilidade...
Poucos anos após a afetuosa convivência com a inglesinha Maria Graham e a troca destas cartas tão cheias de amor e paixão, morre a infeliz Leopoldina, sem ter realizado seu maior sonho: rever sua querida amiga. Se chegaram de fato a manter intimidades lésbicas, até agora a documentação é desconhecida. Porém, "onde tem fumaça, tem fogo!"
(Crônicas de um gay assumido, 2003)
(Ilustração: Domenico Failutti - Retrato de Dona Leopoldina de Habsburgo e seus filhos)
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