sexta-feira, 17 de abril de 2020

TRABALHADORES DO BRASIL, de Wander Piroli






O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesoura e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima da pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridas de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades. 

Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos. 

Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça: 

-- Você, Maria. 

Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem. 

-- Aconteceu alguma coisa? 

-- Não – murmurou a mulher. 

O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência. 

-- Não houve mesmo nada? – tornou o homem. 

-- Claro que não, Zé. Eu vim à toa. 

-- E os meninos? 

-- Mamãe está com eles. 

-- Como é que você arranjou para chegar até aqui? 

-- Uai, eu vim. 

-- A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa. 

-- Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui. 

-- Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido. 

-- Fez alguma coisa hoje, Zé? 

-- Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada. 

A mulher sentou no tamborete, desajeitada. 

-- Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem. 

-- Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos. 

-- Mas ela não estava doente? 

-- Você sabe como mamãe é. 

-- E o Tonhinho? 

-- Está lá. 

-- O carnegão saiu? 

A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria. 

-- Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas. 

A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura. 

-- Esses pastéis. 

-- Oh, Zé, para que você fez isso? 

-- Vamos, come um. 

-- Você não devia ter comprado. 

-- Vamos. 

A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer. 

-- Come o outro, Zé. 

-- Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu. 

-- Então eu vou levar ele pros meninos. 

-- É pior, Maria. 

O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se: 

-- Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém. 

-- Não, eu passei a manhã toda assentado. 

A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu: 

-- Acho que eu vou andando. 

-- Já vai? 

-- Mamãe não aguenta eles, você sabe. 

-- Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo. 

O homem tirou uma nota de dentro do bolso do paletó e estendeu-a para a mulher. 

-- Volta de bonde. 

-- Não, Zé. 

-- É muito longe, criatura. 

-- Não. 

-- Ora, minha nega. 

A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa. 

-- Vou ver se levo. 

O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes. 

-- Não chega tarde não, viu, Zé. 

-- Chego não. 

-- Você vai fazer. 

-- Hoje eu sei que vai melhorar. 

-- Vai sim, Zé. Eu seu que vai. Eu sei. 

A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato. 

Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias. 




(Ilustração: Getúlio na Fazenda do Itú, em São Borja (RS) - autoria não identificada)





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