Esta história é verdade.
Um tio meu vinha subindo a Rua Lopes Quintas, na Gávea -- era noite -- quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, um rapaz operário com mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro.
Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um "anjinho". Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta -- tantos filhos! -- de modo que ao fim de poucos minutos resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo.
Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão.
-- Pois é, velhinho. Veja só... O meu caçula...
Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão:
-- Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro...
Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que-bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse:
-- Tenho um negocinho para te mostrar...
E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem.
-- Manda lá.
Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantado em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte:
Tava feliz
Tinha vindo do trabalho
E ainda tinha tomado
Uma privação de sentidos no boteco ao lado
Que bom que estava o carteado...
O dia ganho
E mais um extra pra família
Resolvi ir para casa
E gozar
A paz do lar
-- Não há maior maravilha!
Mal abro a porta
Dou com uma mesa na sala
A minha mulher sem fala
E no ambiente flores mil
E sobre a mesa
Todo vestido de anjinho
O Manduca meu filhinho
Tinha esticado o pernil.
Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras:
— O meu filhinho
Já durinho
Geladinho!
(Para viver um grande amor)
(Ilustração: Cândido Portinari - samba 1956)
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