quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O LAGO DA LUA, de Ana Paula Ribeiro Tavares




No lago branco da lua

lavei meu primeiro sangue

Ao lago branco da lua

voltaria cada mês

para lavar

meu sangue eterno

a cada lua

No lago branco da lua

misturei meu sangue e barro branco

e fiz a caneca

onde bebo

a água amarga da minha sede sem fim

o mel dos dias claros.

Neste lago deposito

minha reserva de sonhos

para tomar.



(O lago da lua)



(Ilustração:  Àsìkò I am Woman - 2017 - Metallic print)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

SAMBA DE BREQUE, de Vinicius de Moraes




Esta história é verdade. 

Um tio meu vinha subindo a Rua Lopes Quintas, na Gávea -- era noite -- quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, um rapaz operário com mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro. 

Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um "anjinho". Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta -- tantos filhos! -- de modo que ao fim de poucos minutos resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo. 

Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão. 

-- Pois é, velhinho. Veja só... O meu caçula... 

Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão: 

-- Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro... 

Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que-bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse: 

-- Tenho um negocinho para te mostrar... 

E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem. 

-- Manda lá. 

Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantado em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte: 

Tava feliz 

Tinha vindo do trabalho 

E ainda tinha tomado 

Uma privação de sentidos no boteco ao lado 

Que bom que estava o carteado... 

O dia ganho 

E mais um extra pra família 

Resolvi ir para casa 

E gozar 

A paz do lar 

-- Não há maior maravilha! 

Mal abro a porta 

Dou com uma mesa na sala 

A minha mulher sem fala 

E no ambiente flores mil 

E sobre a mesa 

Todo vestido de anjinho 

O Manduca meu filhinho 

Tinha esticado o pernil. 

Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras: 

— O meu filhinho 

Já durinho 

Geladinho! 



(Para viver um grande amor



(Ilustração: Cândido Portinari - samba 1956) 



sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

PARAÍSO PERDIDO, de Bernardino Lopes







Outro, não eu, que desespero, ao cabo

De, em pedrarias de arte e versos de ouro,

Ter dissipado todo o meu tesouro,

Como os florins e as joias de um nababo;



Outro, não eu, que para o chão desabo

Esquecendo-te as culpas e o desdouro,

E a teus pés de marfim, como o rei mouro

Em torrentes de lágrimas acabo;



Outro conspurca-te a beleza augusta,

Cujo anseio de posse ainda me custa

Como um verme faminto andar de rastros.



E mais deploro este meu sonho falso

Ao recordar que andei no teu encalço

Pelo caminho rútilo dos astros!


(Helenos, 1901) 



(Ilustração: Boris Vallejo)

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A PRETA SUSANA, de Maria Firmina dos Reis






Estavam já feitos os aprestos da viagem, e Túlio, entanto no meio da sua felicidade parecia às vezes tocado por viva melancolia, que se lhe debuxava no rosto, onde uma lágrima recente havia deixado profundo sulco. Era sem dúvida a saudade da separação, essa dor, que aflige a todo o coração sensível, que assim o consumia. Ia deixar a casa de sua senhora, onde senão ledos, pelo menos não muito amargos tinha ele passado seus primeiros anos. O negro sentia saudades. 

E aí havia uma mulher escrava, e negra como ele; mas boa, e compassiva, que lhe serviu de mãe enquanto lhe sorriu essa idade lisonjeira e feliz, única na vida do homem que se grava no coração com caracteres de amor – única, cuja recordação nos apraz, e em que ....* 

Susana, chama-se ela; trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras e descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encarnado e amarelo, que mal lhe ocultava as alvíssimas cãs. 

Túlio estava ante ela com os braços cruzados sobre o peito. Em seu semblante transparecia um quê de dor mal reprimida, que denunciava o seu profundo pesar. 

A velha deixou o fuso em que fiava, ergueu-se sem olhá-lo, tomou o cachimbo, encheu-o de tabaco, acendeu-o, tirou dele algumas baforadas de fumo, e de novo sentou-se: mas desta vez não pegou no fuso. 

Fitou então os olhos em Túlio, e disse-lhe: 

– Onde vais, Túlio? 

– Acompanhar o senhor Tancredo de *** – respondeu o interpelado. 

– Acompanhar o senhor Tancredo! – continuou a velha com acento repreensivo – Sabes tu o que fazes? Túlio, Túlio! 

Depois de pausa, ajuntou: 

– Não sentes saudades desta casa, ingrato?! 

– Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato. Quantas saudades levo eu de vós! Oh só Deus sabe quanto me pesam elas! 

– Tu!? – exclamou ela, procurando ler-lhe no fundo do coração os sentimentos que o animavam. – Tu não levas saudades algumas. Túlio; se as levasses, quem te obrigaria a deixar-nos? 

– A gratidão – respondeu ele com presteza. 

– A gratidão!? E não a deves à senhora, que para ti tem sido quase que uma mãe? Não a deves à menina? e por que as deixas? É que não sentes saudades delas. 

– Oh! Sinto-as, sinto-as, e muitas, mãe Susana! 

– Então não procures ir com esse homem, que apenas conheces! Olha, ainda há pouco vi uma lágrima pender dos olhos dessa boa menina, essa lágrima, creio que lhe arrancou do coração a notícia da tua partida... e tu vais-te! Quando voltarás aqui? 

– A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo, será por pouco tempo. Volto para junto de vós, mãe Susana, e a senhora não reclamará em vão os meus serviços. 

– A senhora! – Replicou a velha com mágoa – essa, meu filho, jamais reclamará os teus serviços; ou eu me engano, ou tu vais dizer-lhe o último adeus! 

– Túlio, – continuou – não sabes quanto sofro quando recordo-me de que a nossa querida menina vai tão breve ficar só no mundo! Só, Túlio! Quem a acompanhará? Quem poderá consolá-la! Eu? Não. Pouco poderei demorar-me neste mundo. Meu filho, acho bom que não te vás. Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o encontrarás melhor? Olha, chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te. 

– Oh! quanto a isso não, mãe Susana – tornou Túlio – A senhora Luísa B... foi para mim boa e carinhosa, o céu lhe pague o bem que me fez, que eu nunca me esquecerei de que poupou­-me os mais acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao jovem cavaleiro, é bem diverso o meu sentir; sim, bem diverso. Não troco cativeiro por cativeiro, oh não! Troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe Susana, se devo ter limites à minha gratidão: veja se devo, ou não, acompanhá-lo, se devo, ou não provar-lhe até a morte o meu reconhecimento!... 

– Tu! tu livre? ah não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre?.. 

– Iludi-la! – respondeu ele, rindo-se de felicidade – e para quê? Mãe Susana, graças à generosa alma deste mancebo sou hoje livre, livre como o pássaro, como as águas; livre como o éreis na vossa pátria. 

Estas últimas palavras despertaram no coração da velha escrava uma recordação dolorosa; soltou um gemido magoado, curvou a fronte para a terra. e com ambas as mãos cobriu os olhos. 

Túlio olhou-a com interesse; começava a compreender-lhe os pensamentos. 

– Não se aflija – disse – Para que essas lágrimas? Ah! perdoe-me, eu despertei-lhe uma ideia bem triste! 

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou: 

– Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! meu filho! Mais tarde deram­-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: – uma filha, que era a minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar a nossa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade! 

Estava extenuada de aflição, a dor era-lhe viva, e assoberbava-lhe o coração. 

– Ah! pelo céu! – exclamou o jovem negro enternecido – sim, pelo céu, para que essas recordações!? 

– Não matam, meu filho. Se matassem, há muito que morrera, pois vivem comigo todas as horas. 

Vou contar-te o meu cativeiro. 

Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o mendubim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la... 

Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!... 

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! 

Muitos não deixavam chegar esse último extremo – davam-se à morte. 

Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim. 

A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades. 

Não sei ainda como resisti – é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam. 

O comendador P... foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos, por que passaram, doeram-me até o fundo do coração! O comendador P... derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se dava a meus irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça. 

Pouco depois casou-se a senhora Luísa B..., e ainda a mesma sorte: seu marido era um homem mau, e eu suportei em silêncio o peso do seu rigor. 

E ela chorava, porque doía-lhe na alma a dureza de seu esposo para com os míseros escravos, mas ele via-os expirar debaixo dos açoites os mais cruéis, das torturas do anjinho, do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os sepultava vivos, onde, carregados de ferros, como malévolos assassinos acabavam a existência, amaldiçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmos céus!... 

O senhor Paulo B... morreu, e sua esposa, e sua filha procuraram em sua extrema bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio, meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas a dor, que tenho no coração, só a morte poderá apagar! – Meu marido, minha filha, minha terra... minha liberdade... 

E depois ela calou-se, e as lágrimas, que lhe banhavam o rosto rugoso, gotejaram na terra. 

Túlio ajoelhou-se respeitoso ante tão profundo sentir: tomou as mãos secas e enrugadas da africana, e nelas depositou um beijo. 

A velha sentiu-o, e duas lágrimas de sincero enternecimento desceram-lhe pela face: ergueu então seus olhos vermelhos de pranto, e arrancou a mão com brandura e elevando-a sobre a cabeça do jovem negro, disse-lhe tocada de gratidão: 

– Vai, meu filho! Que o Senhor guie os teus passos, e te abençoe, como eu te abençoo. 



Nota: 

* Falta uma linha no original fac-similar. O único exemplar da edição de 1859 foi extraviado pela família do ex-governador Nunes Freire, que o possuía. 



(Úrsula, 7. ed., 2018, p. 99-104) 



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas - (1802-1858); litografia aquarelada, 1835)



sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A UMA CALÇA JEANS, de Adriana Lisboa



Eu te peço desculpas pela

lambança da bainha

pesquisei o passo

a passo mas a agulha é muito

pequena a linha é muito fina

e minhas mãos se impacientam demais

outras calças que tive no passado

desfrutaram da costura contemplativa

que minha mãe lograva — talento que não

herdei embora tenha tentado (agulhas

de tricô aos dez anos inclusive)

minha destreza não passa

de um emaranhado de linhas

para a emergência de um botão

sinto muito calça jeans

parece que seguiremos

tropeçando juntas em nossas

costuras mal-ajambradas

enquanto ainda coubermos uma na outra

e o tempo

condoído

ainda couber em nós.




(Ilustração: Kathleen Patrick - Time Is Of The Essence)



terça-feira, 14 de janeiro de 2020

EU, ANA CLARA BREVES DE MORAES, NICOTA, CONDESSA HARITOF, ESTOU MORRENDO, de Mary del Priore




Deslizo num abismo. Uma boca invisível aspira minhas últimas forças. 

Sinto que afogo, mas dizem que sofro por nada. Que não há causa específica para minha dor, quando desfilam horríveis imagens na sonolência das primeiras horas da manhã. Engano. Vivo um sofrimento lancinante, e não é físico. Sofrimento sem natureza ou causa conhecida. É a neurastenia, estrada noturna e sem fim. Estrada sem ponto de chegada e solitária. Morro de dor, coberta de manchas azuis que marcam meus braços. São as manchas de melancolia. Bebo um resto de vida sem sede. 

Na mesa dos santos, toalha branca e velas de cera pura. Preferia que abrissem a janela. Sufoco. Há um cheiro de urina disfarçado pelo vaso de jasmins. Não me controlo mais. Ouço as portas que se fecham. Vultos circulam à volta da cama. Alguém diz que ainda estou formosa, que até parece que vou levantar. Porém, cochichos anunciam a minha morte. As serpentinas e as mangas de vidro cintilam. Maurice e os outros insistirão em me esquecer? Caso se recusem a se lembrar, me tornarei mais cruel e mais presente. Continuarei viva em meu túmulo. Irei me comunicar por aparições ou sinais exteriores. Assombrarei Maurice. 

Digo isso porque estou morrendo. Devo aceitar meu destino. Nada de emoções excessivas. Meus cabelos: estarão penteados? Alguém murmura em meu ouvido: “Trouxe a fita benta”. Um pedaço de cetim não irá me arrancar da agonia. Outro me pede para levar um recado ao irmão falecido. Quase vejo a Dama de Branco. Atrás dela, meus pais. Outra voz puxa o Creio em Deus Pai e a Oração dos Agonizantes. Rezam alto e baralhadamente. 

Toque de sineta. É o padre, meu tio. O barulho que vem junto é de criados e ex-escravos da fazenda, orando. Uma onda de sons ininteligíveis acaba em minha cama. Trajados de preto, vizinhos e amigos enchem o quarto. Imobilizada, lembro que me esqueci de dizer quantas missas quero por minha alma ou onde desejo ser enterrada. As janelas vão se cobrir de reposteiros em veludo com franjas douradas. Regina Angelorum vai ajudar a pendurá-las. Um negro já deve ter ido buscar folhas de canela, cravo e laranjeira, para estendê-las na entrada da casa. Outro irá distribuir as cartas-convite para o funeral. 

Quando sair meu caixão num coche de cavalos com plumas escuras na cabeça, os criados irão apagar os rastros da morte. Minha camisola e roupa de cama serão doadas ou queimadas. A casa será varrida com especial cuidado de empurrar a poeira pela porta da frente, que ficará semicerrada, impedindo o retorno de minha alma. No quintal, jogarão fora a água do último banho e enterrarão meu cabelo e unhas cortadas em lugar previamente escolhido por tia Maria Gata. As pistas serão embaralhadas para que eu não volte. Para que eu veja que não há mais lugar para mim. Depois que eu fechar os olhos, meu nome deixará de ser pronunciado. Guiada por São Miguel, aspirada pela lua, minha alma há de passar à Via Láctea. Na cidade de Piraí, as badaladas da agonia hão de cair da torre, pedindo orações. Os passantes hão de se descobrir, ajoelhar e bater no peito. 

Sinto que o movimento à volta de minha cama cessou. Uma falsa calma encarna na voz que tenta me confortar: “Pede a Nosso Senhor Jesus Cristo que perdoe teus pecados, tome posse de tua alma e a limpe com o preciosíssimo sangue que por ela derramou”. Nada tenho a confessar. Maurice diz que sou uma santa. Serei uma alma bendita cercada por luz azulada e clara. Quero ser enterrada com os sapatos de laço franceses. Não! A tradição exige enterro sem ornatos. O luxo deve desaparecer, pois não se penetra assim a bem-aventurança. Melhor amortalhada no hábito de Nossa Senhora do Carmo, com touca e peitoral de opala branca. 

Quem está ao pé do leito se curva, une as mãos, se abraça, troca palavras com Maurice. Fragilizados por meu fim próximo, vão encontrar reconforto nos gestos e palavras, fortificando o mundo dos vivos. Tais ritos protegem os que ainda estão nele. Bruscamente compreendi: como são importantes, uns para os outros, aqueles que seguem vivendo. Não, não haverá milagre, nem vou sentar no caixão como fez a moça que julgavam finada, na matriz de Nossa Senhora das Dores de Piraí. Fecharei os olhos para sempre. Hoje mesmo. 

Agora, tudo escuro. Frio. Muito frio. “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará.” Mal consigo acompanhar as preces e mexo os lábios com dificuldade. As palavras não têm som. Sinto os toques da extrema-unção: nos olhos, orelhas, nariz, boca e mãos, instrumentos do pecado. Quero despedir-me de Maurice. Dizer-lhe que o amei. Não, que o amo. Mas o odeio, também. O amor: foi mais fácil fazer do que viver. Beije-me, Maurice, beije-me onde o sol não alcança. Silêncio. Mais frio. Novamente, a boca que mais parece um buraco negro. 



(Fazenda Bela Aliança, março de 1893) 



(Beije-me onde o sol não alcança



(Ilustração: Frida Kahlo, Girl with Death Mask by 1938)





sábado, 11 de janeiro de 2020

BODAS DE SANGUE, de Eliana Iglesias




A exemplo dos árabes

Religiosamente, enrolava o tapete da sala

Para depois ir batê-lo ao sol

Num ritual diário e obsessivo

Ação executada a passos lentos

Sem pressa alguma

Como se aquela fosse a melhor parte do dia

E era

Ao menos para ela

Mulher receosa de si mesma

Temente a Deus e a marido

Usava para tanto

Uma chibata

E a cada pancada no Tabriz

Expurgava sua servidão doméstica

E a submissão na cama

Como se a poeira levantada

Fosse seu sangue de barata

A jorrar com fúria

Na celebração

Daquele meio século

De união estável



(Ilustração: Sani Ol Molk - Irã - c.1849-1856 - Scheherazade e o sultão)




quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

COBAIAS HUMANAS: LIÇÃO DE TORTURA, de Daniela Arbex





Havia um estranho entre e sai de carros naquela manhã de 8 de outubro de 1969. Jipes e carros pretos chegavam a toda hora na 1ª Companhia do Exército da Vila Militar, no Rio de Janeiro. Transferidos para aquela unidade após seis meses de prisão em Belo Horizonte, os integrantes do Colina foram mantidos nus e em precárias condições de higiene no interior de celas ladrilhadas, com dimensões inferiores a quatro metros quadrados. Um inquérito havia sido instaurado na capital fluminense para apurar a participação dos prisioneiros do comando mineiro em ações realizadas lá, como a expropriação ao banco Tricontinental e a fracassada tentativa de assalto ao Banco do Estado da Guanabara. 

— Quem matou os policiais em Minas? — perguntou um oficial ao grupo mineiro em seu primeiro dia na unidade do Rio. 

Silêncio. 

— Não vão responder? — ameaçou o militar. 

— Fui eu, respondeu Murilo. 

Separado dos demais ainda pela manhã, Murilo passou o dia sendo interrogado. Os membros do Colina ainda puderam ouvir seus gritos. À noite, ele foi colocado na cela. Seu rosto estava deformado. 

Numa manhã, Pedro Paulo Bretas disse a Ângelo, irmão de Murilo, que não suportava mais as atrocidades que estavam sendo cometidas na Vila Militar. Os militares insistiam em arrancar dele informações sobre um aparelho alugado para cuidar dos feridos em combate, embora não houvesse um imóvel com essa finalidade. Os representantes da força não acreditavam. Achavam que Bretas estava fazendo jogo duro. Com diversos ferimentos nas costas, ele foi surpreendido com a chegada de um pacote de sal. Dois militares pegaram com as mãos um punhado no saco e jogaram sobre as feridas abertas no estudante. Bretas quase desmaiou de tanta dor. 

— Cabral, não vou aguentar uma nova sessão de tortura. Não vou! — avisou Bretas a Ângelo. 

— Deixa comigo. Na próxima, você vai dizer a eles que eu sei o endereço desse lugar — disse o comandante do Colina, que também havia recebido diversas descargas de eletrochoque na Polícia do Exército da Guanabara. Em uma ocasião, Ângelo teve os dedos das mãos esmagados com um ferro. 

— Onde fica a casa que vocês atendem os guerrilheiros feridos — insistia o militar com Ângelo, enquanto usava a palmatória de madeira contra as solas dos pés, as palmas das mãos e as nádegas do líder do Colina. 

Bolhas de sangue já haviam se formado nas regiões atingidas, mas seus algozes desejavam arrancar dele a confissão. Também queriam ouvi-lo implorar por sua vida. Ângelo não gritou como eles queriam, mas se jogou contra a janela de vidro da sala, caindo ensanguentado no pátio. Perdeu os sentidos e foi levado ao hospital militar. Com cacos pelo corpo, tomou dezenas de pontos nas costas e nos braços. Apesar de muito ferido, sentia-se aliviado por estar livre da tortura. A trégua na rotina de agressões durou pouco. 

— Sabe que dia é hoje? — perguntou um capitão para os ocupantes da cela. Oito de outubro. Amanhã faz dois anos da morte do líder que vocês idolatram, o Che Guevara. Vamos comemorar. 

“Comemorar o quê?”, pensou Nilo. 

Apesar do sarcasmo do militar, não foi o que ele disse que deixou Nilo preocupado, mas o que não falou. Afinal de contas, o que os esperava? 

Não demorou para que os prisioneiros descobrissem. Ainda pela manhã, Nilo, Murilo, Ângelo, Afonso Celso Lana, Júlio Bittencourt, um ex-PM, além de um preso comum foram retirados das celas. 

Levados em fila indiana, estranharam ao ouvir o burburinho de vozes que vinha do interior da sala. Estavam assentados no chão do corredor, quando um recruta passou carregando uma barra de ferro usada comumente como pau de arara. Os presos se entreolharam. Maurício Paiva chegou logo depois. Estava pálido. 

— Me mandaram segurar um fio e me deram vários choques. Disseram que era apenas um teste para ver se o aparelho estava funcionando bem — contou, assustado. 

Não houve tempo para falar nada. 

— Levanta! — determinou um oficial a Ângelo. 

Diante de homens armados com metralhadora, o universitário seguiu o militar. 

Os outros fizeram o mesmo. Ângelo entrou primeiro. 

— Apresento a vocês Ângelo Pezzuti, o comandante do Colina. 

Com ordem para entrar na sala, os outros sete presos levaram um susto. Cem homens fardados lotavam o salão. 

— Oh! — manifestou-se a assembleia composta em sua maioria por sargentos da Aeronáutica. 

— Podem tirar as roupas — avisou o tenente Ailton. 

Nilo diz ter ficado de short, mas houve os que foram colocados nus. 

— Hoje vamos ensinar aos senhores alguns métodos de interrogatório que têm funcionado bem na missão de combate aos crimes cometidos contra o país por terroristas — disse o tenente segurando nas mãos uma vareta semelhante às usadas em salas de aula por professores. 

Ao iniciar sua fala, o tenente Ailton determinou que o projetor fosse ligado. Os slides continham desenhos de tortura. As cenas deveriam ser reproduzidas ali, naquele auditório, com os jovens escolhidos para serem cobaias humanas. O cabo Mendonça, o soldado Marcolino, além dos sargentos Andrade, Oliveira, Rossoni e Rangel foram chamados para ajudar na “exposição”. 

Descalço, Murilo foi colocado sobre duas latinhas abertas que feriram as solas dos seus pés. Maurício continuou a receber choques, tantos, que chegou a cair próximo à mesa reservada para oficiais. Muitos riram. 

— Olha, cuidado que o cara que está levando choque às vezes finge que desmaiou. Às vezes, ele faz assim com o pescoço para trás, ó, mas é mentira. Aí você dá uns choques nele para ver se ele desmaiou mesmo — orientava Ailton. — Abre a mão aí. 

Pá! 

O ex-policial militar teve a palma das mãos ferida pela palmatória. 

Pá! 

— O que é isso, tenente? Ô sargento, não faz isso comigo não — implorava o homem que mais tarde viu cair a unha. 

Um preso comum foi colocado no pau de arara. Acabou sendo o mais agredido do grupo. 

— Ai... Ai... — gritava, diante da plateia covardemente assentada. 

Nilo, por sua vez, foi obrigado a apoiar uma das pernas sobre uma cadeira. Deveria equilibrar um catálogo telefônico em cada braço enquanto era atingido por socos no estômago. 

— Segura isso aí. Se deixar cair, vai levar mais porrada. 

O militante tinha certeza de que jamais seria o mesmo após aquele episódio. Acuado como um animal numa caçada, ele teve confiscada a sua humanidade. Estava de novo no circo. Não naquele mágico da sua infância, mas em um no qual era exibido como uma fera por domadores sem escrúpulos. 

De vez em quando, o som de risadas cortava o desconcertante silêncio que pairava no ar. As cenas de barbárie, porém, foram tão perturbadoras que, durante a sessão, um sargento não aguentou ficar na sala. Outro vomitou. 



(Cova 312 – A longa jornada de uma repórter para descobrir o destino de um guerrilheiro, derrubar uma farsa e mudar um capítulo da história do Brasil




(Ilustração: Monumento Tortura Nunca Mais, concebido por Demétrio Albuquerque - Recife - PE - foto de autoria não identificada)




domingo, 5 de janeiro de 2020

PARA LAURA, de Adelaide Ivánova




em 1998 quando encontraram

o corpo gay de matthew shepard

sua cara tinha sangue por todo lado

menos duas listras

perpendiculares

que era por onde suas lágrimas

haviam escorrido

naquele dia o ciclista

que o encontrou não

ligou para polícia logo que o viu

porque o corpo de matthew

estava tão deformado

que o ciclista achou ter visto

um espantalho



sábado passado em são paulo

a polícia matou laura

não sem antes

torturá-la laura

foi filmada ainda viva

por outro sujeito

que em vez de ajudá-la

postou no youtube o vídeo

d’uma laura desorientada

e quem não estaria

tendo sangue na boca e na parte

de trás do vestido



laura tem um corpo

e um nome que lhe pertencem

laura de vermont presente!

foi assassinada pela nossa indiferença

e pela polícia brasileira

tinha 18 anos

sábado passado.



(O Martelo)



(Ilustração: Nancy Farmer - royal wedding)



quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

HISTÓRIA DE UMA LETRA, de Cecília Meireles

Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros. 

A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma. 

Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil. 

Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc... 

As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de talento, de prestígio — e o povo classifica essa situação, que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar. 

O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção. 

Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais. 

Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas consequências ocultas. 

Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental — que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais. 

E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos, com todas as suas inesperadas trajetórias. 

E há os que leem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela... 

Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas creem numas coisas e noutras não. Tudo é crível. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície. 

Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca, chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar. 

Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta, pus-me a procurá-la. 

Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos que justificassem a conspiração que se fazia contra mim. 

Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido nem vestido marrom nem gato preto nem número fatídico na porta. 

E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido — e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas luzes é pela timidez em não acreditarem no momento propício — passei a analisar o meu nome. 

Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma. 

Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos. 

Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber. 

Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo. 

Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra. 

Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado. 

Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ou sem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade. Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome. 

Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nós vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos. 

Quanto às coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: "Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?" Não, as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa... 

Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: "Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me... Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas... Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome... Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus." 

Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim, — mas, um parente, um amigo extraordinário. 

A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar. 

E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando. 



(Cecília Meireles — Obra em prosa — Volume 1) 



(Ilustração: Cecilia Meireles -  Batuque, samba e macumba)