domingo, 15 de dezembro de 2019

CAPITU SOU EU, de Dalton Trevisan






A professora de Letras irrita-se cada vez que, início da aula, ouve no pátio os estampidos da maldita moto. 

Aos saltos de três ou quatro degraus, lá vem ele na corrida, atrasado sempre. Esbaforido, se deixa cair na carteira, provocante de pernas abertas. Mal se desculpa ou nem isso. Ela reconhece o tipo: contestador, rebelde sem causa, beligerante. 

O selvagem da moto é, na verdade, um tímido em pânico, denunciado no rubor da face, que a barba não esconde. E, aos olhos dela, o torna assim atraente, um cacho do negro cabelo na testa. 

Na prova do curso, o único que sustenta a infidelidade de Capitu. Confuso, na falta de argumentos, supre-os com a veemência e gesticulação arrebatada: infiel, a nossa heroína, pela perfídia fatal que mora em todo coração feminino. Insiste na coincidência dos nomes: Ca-ro-li-na, da mulher do autor (com os amores duvidosos na cidade do Porto), e o da personagem Ca-pi-to-li-na... 

A traição da pobre criatura, para ele, é questão pessoal, não debate literário ou análise psicológica. Capitu? Simples mulherinha à-toa. "Mulherinha, já pensou?", ela se repete, indignada. "Meu Deus, este, sim, é o machista supremo. Um monstro moral à solta na minha classe!" E por fim: "Ai da moça que se envolver com tal bruto sem coração..." 

Na prova escrita os erros graves de sintaxe e mera ortografia já não são disfarçados pelo orador com pedrinhas na boca. E por que, ao sublinhá-los na caneta vermelha, tanto a perturbam as garatujas canhestras? 

Nas aulas, por sua vez, ela que o confunde: sadista e piedosa, arrogante e singela. Sentada no canto da mesa, cruza as longas pernas, um lampejo da coxa imaculada. E, no tornozelo esquerdo, a correntinha trêmula — o signo do poder da domadora que, sem chicotinho ou pistola, de cada aluno faz uma fera domesticada. Elegante, blusa com decote generoso, os seios redondos em flor — ou duas taças plenas de vinho branco? 

Finda a aula, deparam-se os dois no pátio, já desaba com fúria o temporal. Condoída, oferece-lhe carona de carro, não moram no mesmo bairro? No veículo fechado, o seu toque casual a estremece, perna cabeluda à mostra com o bermudão e botinas de couro. A cabeleira revolta não esconde, agora de perto, o princípio de calvície. 

Ao clarão do poste, as gotas de chuva lá fora desenham no rosto da professora fios tremidos de sombra. Com susto, o moço descobre que, sim, é bela: as bochechas rosadas pedem mordidas, sob a coroa solar dos grandes cachos loiros. Sem aviso, inclina-se e beija-a docemente. Para sua surpresa, em vez de se defender, a feroz inimiga lhe oferece a boquinha pintada, com a língua insinuante. 

Dia seguinte ela telefona, propõe irem ao teatro, já tem os convites. Essa, a norma no futuro: tudo ela paga — o ingresso, o sorvete na lanchonete, a conta do restaurante. 

Na volta, ela comenta o espetáculo. Ele ouve apenas. Silêncio inteligente? Ou não tem mesmo o que dizer? No carro, mais beijo, mais amasso. 

"Louca! Louca! O que está fazendo? Nada de se envolver. Logo esse, um babuíno iletrado, que coça o joelho e odeia Capitu? E o teu filho, mulher? Não pensa que...?" É tarde: língua contra língua, apenas uma boca faminta que pede mais e mais. 

Dias depois, convida-o para jantar. Música em surdina, luz de vela, vinho branco. Um filme clássico no vídeo, nenhum dos dois chega a ver. É a confusão da primeira vez: 

— Como é que desabotoa? Não consigo... 

— Cuidado, bem. Assim você rasga! 

Só o bruxuleio da tela. Tudo acontece no falso tapete persa da sala, onde ele derruba o seu copo de vinho: ó dunas calipígias movediças! E sai de joelho todo esfolado. 

Flutua dois palmos acima do chão: "Como é gostosa, a minha professorinha!" 

À sua mercê, na pose lânguida de pomba branca arrulhante. O queixo apoiado na mãozinha esquerda (com tais dedos fofinhos, tal Mariazinha estaria perdida na gaiola da bruxa). O sestro de apertar o olhinho glauco que a faz tão sensual — e era apenas, ele soube depois, o da míope sem a lente de contato. 

Uma semana mais tarde, de volta do cinema, ele entra para um cálice de vinho do Porto. Daí se queixa do joelho esfolado. Ela o recolhe no quarto, a ampla cama redonda. 

Ao clarão da lua na janela. Sempre a luz apagada, uma cicatriz de cesariana? Arrepiado, ele evita acariciar-lhe o ventre. Mais excitante: 

— Eu não sei fazer direito. Com ele... nunca fiz. 

Casada sete anos com um dentista. Divorciada há dois. Um filho de cinco. 

— Com o tal nunca senti prazer. Me ensine. 

O que ela não conta: dez anos mais velha. 

— Eu quero aprender. Só para te agradar. 

— ... 

— Com você é por amor. 

De súbito, já esquecida: 

— Põe tudo, seu puto. Vem todo dentro de mim! 

É o ritual. Mais um filme clássico, que ele abomina e não vê. Ela, aos gemidos e suspiros: 

— É assim que se faz? Pode pedir. Tudo o que... Sou a tua escrava! 

Escrava, sim, rastejadora e suplicante ou professora despótica, ainda na cama: 

— Estes dois, está vendo? Não são para exibir. 

— ? 

— São para pegar, seu puto. Não é enfeite! 

A suposta aprendiz, na verdade, mestra com louvor em toques e blandícias. 

— Agarre. Sim. Com força. Assim. 

— ... 

— Aqui, beba o teu vinho. 

Quer viciá-lo, ela, a droga fatal? 

— E mate a tua sede! 

Se domina com fluência quatro ou cinco línguas, mais graduada é a linguinha poliglota em ciências e artes. 

— Estou fazendo direito? Ai, meu amor, vem... Eu quero tudo. Você todinho. Mais, seu... 

Ó grande gata angorá — luxo, preguiça e volúpia —, os olhos azuis coruscantes no escuro. 

— Fale, você. Ei, por que não fala? 

Ele, durão. Nem um pio. Aturdido com tamanho delírio verbal. 

De repente, batidas na porta. Fracas, mas insistentes. 

— Pô, quem será? 

O moço, um coração latindo no joelho trêmulo. Decerto o maldito ex-marido (Não é minha? É de mais ninguém!). 

— Orra, o que eu... agora... 

Nu, só de meia branca. "E agora, cara? Se esgueirar para debaixo da cama? Pular a janela? Sair voando pelo telhado?" 

Um fio de voz: 

— Mãe, por favor. 

Ela já enfia o roupão. 

— Mãezinha, estou com medo! 

De chinelinho, a mão na sua boca: 

— Não se mexa. Quietinho. Já volto. 

Fecha a porta. As vozes se afastam. Ele acende o abajur: mania dela, só no escuro. Algum defeito, além da famosa cicatriz? Vergonha do grosso tornozelo? 

Todo vestido, espera sentado no sofá. "Nu, já não me pegam. Nunca mais." 

De volta, ela explica que, isso mesmo, o menino se assustou. Medroso, quer dormir na cama da mãe. Sossega-o, mas não deixa: nada de fixação edipiana. Sempre as malditas fórmulas do velho charlatão, diz ele. Ou pensa, mas não diz. 

Dois beijos, ele se despede. E sai de mansinho. 

Dias depois, ela o convida, ele dá uma desculpa. Outro convite, outra desculpa. Na terceira vez, o encontro no teatro. 

Logo no início da peça, ela não se contém. Voz alta e estridente, chamando a atenção dos espectadores, exige uma explicação. Cansada de amores furtivos. Não é mulherinha qualquer. O moço que se decida: assume o compromisso? 

Em pânico, ele encolhe-se na cadeira. 

— Eu passo a tomar pílula? 

Olha fixo para o palco — depois dessa, Beckett nunca mais. 

— Ou é o fim? 

Ah, bandido querido, ela começa a chorar por dentro. Mil palavras nada podem contra o brado retumbante do seu silêncio. Não encobre, certo, verdades profundas e caladas. É apenas uma linda cabecinha vazia de idéias — e sentimentos. Desesperada, agarra-lhe a mão. Geme, baixinho: 

— Me perdoa... Me perdoa... 

Não ele. E aproveita a deixa: 

— Você tem razão. É o fim. 

Só falar em enigma de Capitu, ele já passa a mão no revólver. 

— Sou muito moço para... 

Sem perdão ela foi condenada, sequer o benefício da dúvida. 

— Isso aí. Já falou. É o fim. 

Dia e noite, ela telefona. E pede, roga, suplica, por favor. Que volte, por Jesus Maria José. Ele acaba cedendo. E já os mesmos não são: o doce leite que, só para ele, secretavam ainda os seus peitinhos presto azedou. 

O mau aluno revela o pior: bebe o seu uísque, o seu vinho, o seu licor. Perde o acanho, prepotente e abusivo. Só deixar um tímido à vontade nos jogos do amor — e sua audácia não tem limite. Quer tudo, e já. Se, dengosa, ela nega para, entre agradinhos e ternurinhas, logo ceder — não com ele. Segunda vez não pede, o bruto simplesmente toma à força. 

Ali na cama do casal, sob o crucifixo bento e a santa de sua devoção, ela se descobre uma bem-dotada contorcionista. É ela? é a sua gata angorá? possessa e possuída, aos uivos, em batalhas sangrentas pelos telhados na noite quente de verão? 

Pela manhã, depois que ele se vai, chora de vergonha. "Como eu fui capaz... Não só concordei. Quem acabou tomando a iniciativa? Só eu. Euzinha. Não jurei que nunca, nunca eu faria... Meu Deus, como beijar agora o meu filho? Ó Jesus, sou mulherinha à-toa? Eu, culpada. Eu... Capitu?" 

Muito desconfia que, apesar da fanfarronice, ele o mais inexperiente. Disfarça o enleio com a feroz truculência. Chegará logo logo ao tabefe de mão aberta (que não deixa marca) e às palmadas sonoras na bundinha arrebitada. Não é o que merece uma cadelinha feminista, advogada graciosa da filha do Pádua? 

Deixa-o de carro diante do barzinho, para encontrar os amigos. Amigos? As coleguinhas lindas e frescas, além de desfrutáveis. Boa safra, essa, para um jovem garanhão! 

Ao sentir que o perde, tudo o que ela faz para retê-lo mais o afasta. Ah, quão pouco lhe serve agora a prosápia dos barões legendários: com a paixão e o desespero, vem o ciúme furioso. Não esquece que ele pode ter quantas queira — dez anos mais novas que... a tia? E que, elas mesmas, se oferecem agressivas. Sem promessa de constância ou fidelidade. 

A tia bem o sufoca, executora de promissórias vencidas e extintas. Tão diferente da outra (vestida só de cabeleira dourada — adeus, nunca mais, ó dunas calipígias movediças!). Agora exige votos de eterno amor antes, durante e depois do amor efêmero. 

Até que uma noite ele cavalga a moto, selvagens a máquina e o piloto, impávido na jaqueta negra de couro — surdo aos gritos que o estampido do motor abafa —, fruindo a liberdade da cabeleira ao vento (merda para o capacete!) e antegozando a próxima conquista. 

— Adeus, gorda grotesca de coxa grossa! 

Ela, arrependida e já resignada com o seu próximo calvário: a perseguição humilhante pelos bares, onde ele exibe o troféu de guerra da correntinha do tornozelo (essa tia louca lá fora, sabe quem é?), a longa vigília diante da sua casa (mora com a mãe viúva), as preces não atendidas, as cartas patéticas, ainda que sem erros de sintaxe ou ortografia — merda para a correção gramatical! 

Um babuíno tatibitate, ah, é, que coça o joelho? Quem dera, ainda uma vez, beijar esse joelho esfolado e, rastejando aos uivos, lamber as suas feridas... Ai dela, mesma situação da outra, enjeitada lá na Suíça pelo bem-amado, desgraciado machista. E, apesar da péssima prova, graduado por média, com distinção em Literatura. 

Essa mesma que, ciosa de sua dignidade, rejeitara uma carona de moto, ao ver que ele se vai, dela esquecido, quer segurá-lo — tarde demais. Na fantasia doida, alcança-o e salta-lhe na garupa, agarrada firme à cintura. Lá seguem os dois, abraçados, à caça de aventuras. 

Depois que ele recolhe a moto na garagem e dorme serenamente na cama, ela continua na dura garupa. Condenada a vigiá-lo, a guardá-lo, sempre a esperá-lo. 

Caminha descalça pelo inferno de brasas vivas. Uma série vergonhosa de casos: fotógrafo homo, pintor futurista, professor impotente, sei lá, poeta bêbado. 

E, última tentativa de reconquistar o seu amor, acaba de publicar na Revista de Letras um artigo em que sustenta a traição de Capitu. 

A sonsa, a oblíqua, a perdida Capitu. Essa mulherinha à-toa. 



(Capitu sou eu) 



(Ilustração: Paula Rego)






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