Fui navegador e dobrei o mundo para lá do Adamastor.
Nem os versos de Camões me valeram nem as líricas
E as rimas em redondilhas, labutei o inelutável e contra Zeus
Perdura a luta e o luto, Confúcio está coxo e prostrado
Na sua poltrona, Picasso já não pinta máscaras africanas
E pouco me importa a orelha de Van Gogh!
Cristo, sem a varinha e o condão, já só faz milagres por encomenda,
E esqueceu-se da partilha do vinho e do pão! Ainda assim, há
Quem crê que a essência do homem nasce da sua vocação do amor,
Que o segredo da vida seja o mel que colhemos do melhor favo,
Que nada faça mais sentido que a simplicidade de nos recolhermos ao aconchego da lua.
Vimos o albatroz debalde fulminado em pleno voo
E o arcanjo tocando a lira e o banjo cair do céu abaixo
E estatelar-se no chão! Ó homem chega a ser
O que és – diria Píndaro, indelével e assaz…
A memória é a ínfima parte da alma que recolhe a pedra do tempo!
Entre o vazio e os escombros restamos nós, e não há terra firme
Nos sonhos que nos assombram! No lugar da perenidade os braços
E o cansaço, a cadência longa e a louca insinuando-se à morna e ao tango,
O flamengo dedilhando a voz rugosa e o fado e a milonga desapaixonada,
O peito pulsando esta dança e a música em crescendo pelo caminho da solidão.
Sobre a alma do nómada a contemporaneidade e a coetaneidade
Baralham-se numa orgia caótica! Certamente, não será o mundo
Que doaremos ao mundo! Que a morte nos não doa e a vida doendo
Se encarregue da dor que permanece na usura e no âmago das coisas!
O latido distante da cadela em cio fere os ouvidos do violinista! (atrás dela seguem cães famintos…)
No limiar da banalidade, as pontas cintilantes da constelação,
Os gritos e a alegria das crianças devolvem ao quotidiano
O barro lamacento e as casas caiadas! E desfiando o novelo
Das palavras o eco labiríntico prevalece na dramaturgia coeva.
Não se trata de histórias ou factos, dos lugarejos de Roma quando visitei Fellini!
Não encontrei em viagem alguma a ponta ao fio.
Vou desfazendo os membros e os dedos num arabesco,
As teias e os bordados que deflagram em formas barrocas,
A mente e o ser, a meada completa e o novelo à alma.
As palavras ocas, doravante, o fio sem ponta que lhe pegue!
Eis a cidade e o caos que habito, Basquiat não me indicou o caminho
Nem as portas da via latina, decompus os cacos que soçobram da composição
E escrevo a toada e o canto onde a vida deposita o seu peso incontestável!
Que amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza…
(*) Pertencente ao poema Cânone Silábico ou uma Canção de Amor, inédito da autoria do poeta cabo-verdiano António de Névada.
(Cabo Verde: Antologia de poesia contemporânea)
(Ilustração: Archibald Motley)
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