quarta-feira, 4 de setembro de 2019

CRUELDADE, de Lucienne Samôr





Usuária de telefone público, utilizava-os diariamente. Tenho muitos amigos e conhecidos na cidade. Outros em cidades vizinhas. E era gostoso, delicioso, falar com eles. Eu não determinava horários rígidos para dar esses telefonemas. Descartava a parte da manhã. Escoava-se rapidamente. A tarde era mais propícia para fazer as ligações. Raramente havia alguém usando o telefone público e, se houvesse, a ligação não era demorada. Pegava o fone ainda quente do calor das mãos das outras pessoas. No bocal, resíduos de hálito nem sempre agradável. Paciência! 

Num determinado dia, quando me dirigi ao telefone público, avistei uma moça que se agarrava ao aparelho. De corpo inteiro. Ao me aproximar, notei que ela me olhou e se colou ainda mais no bocal, e começou a sussurrar as palavras. Será que era para o namorado?, arrisquei. Ela continuou naquela postura grudenta, sem olhar para os lados. Isolava-se como se estivesse em casa ou numa cabine fechada. As cabines fechadas davam maior privacidade. As que existiam foram retiradas, para desconforto dos usuários. 

Bom, a moça continuava lá. Parecia que sua argumentação era infinita. E, como não havia bancos públicos, sentei-me à porta de um bar fechado. O tempo parecia não passar. Ela continuava sua longa conversação. Eu já estava ficando impaciente. O que poderia fazer? Havia outros telefones públicos, mas esses se encontravam mais distantes de minha casa. E tinha um problema. Um problemão! Os telefones podiam estar mudos, danificados. Isso já acontecera antes. Percorrera várias ruas para telefonar e tentei em cinco telefones públicos. Todos estavam mudos. Haviam sofrido a ação do vandalismo das gangues urbanas, de garotos pré-adolescentes. Mal-encarados. Usando bermudas, camisetas, bonés e tênis sem cadarços, com as linguetas para fora. Sem meias. Magérrimos. Podia-se perceber os gambitos grudados nas bermudas. Semelhantes aos de cães vira-latas. Eram garotos de expressões carrancudas, com os cacetes nas mãos. O telefone público que eu usava era vigiado por alguns moradores próximos que também o utilizavam. 

A moça continuava a conversar ao telefone. Agora, o tempo passava. As pessoas também. Algumas vindo do trabalho e outras indo para a escola, com livros e cadernos nas mãos. Eu já estava cansada de esperar a moça sair do telefone público. Anoitecia. Ela devia estar telefonando a cobrar. Era a opção real. Decepcionada por não conversar com o meu amigo, decidi voltar para casa. Pelo horário, não mais o encontraria no escritório. Ele já devia estar em trânsito. Retornando ao seu apartamento ou visitando clientes. Era designer. Decorava interiores de apartamentos. Também estava com sede. A moça parecia não sentir sede ou fome. Nem cansaço. Sentia-se confortável naquela postura. Suponho. 

Voltei para casa irritada. O dia não se concluíra. Havia uma lacuna. Proporcionada pela moça. Quem seria ela? Eu nunca a vira. Nem ontem, nem anteontem. Fazer o quê? A vida estipula limitações, surpresas e imprevistos. Amanhã tentaria novamente. Como não havia nada especial naquela noite, decidi limpar a estante. Assim me distrairia do meu aborrecimento. Com uma espanada na poeira diluiria a tristeza e a impotência daquela tarde. 

No dia seguinte, não telefonei. Ao limpar a estante achei um convite para um aniversário de criança. E era naquela terça-feira, véspera de feriado. Pior do que ir a um aniversário de criança era assistir, contra a vontade, aos DVDs domésticos. De casamentos, debutantes, bodas de ouro, aniversários, batizados e de outras coisas infernais, inerentes aos tempos modernos. Charles Chaplin não viu tudo. 

Nos aniversários de crianças sofre-se com a altura do som vomitado pelas caixas. A histeria das crianças. Os doces espalhados pelo chão, pisados, massacrados, pastas nojentas parecendo fezes. 

“Ruim com ele, pior sem ele”, você já ouviu essa máxima? Era pior não ir, porque os pais da criança eram meus amigos. O Diabo articulava tão bem as coisas que era impossível fugir. 

O evento ainda forçava a convivência com tios, tias, primos, primas, avós e avôs, ouvindo-os dizer sandices. O melhor momento era quando acabava. Aliás, eu não comentava com ninguém, senão poderiam esticar a festa. A falta de requinte e ética social eu já presenciara em outras festas. Quando eu dizia que não gostava de doces e gases gelados… era o que vinha na bandeja. Doces e gases gelados. O consolo era que aquilo passaria e logo eu voltaria para casa. Descansaria os pés tirando os sapatos, a roupa nova e outros adereços para me refestelar no sofá. Ufa, que vida dura! 

Na quinta-feira, após o banho, fui telefonar. Quando me aproximei do telefone público, a moça estava lá. Agarradíssima. Ela olhou-me de esguelha e continuou a falar. Parecia que falava mais para si. Supostamente, o seu interlocutor seria fictício? Sei lá. Talvez ela fosse lunática. Continuou a se comportar da mesma maneira que na terça-feira. Mas, daquele dia, houve uma mudança de comportamento. Não, ela não me cedeu o telefone. Mas parece que, desta vez, ela usava um cartão. Os créditos acabaram, presumi, observando-a. Mesmo assim, ela se impôs uma nova conduta. Começou a teclar, em ritmos alternados, no aparelho. Sequer piscava. Concluí que seria inútil continuar a esperar, persistir, sacrificar-me por uma coisa que não aconteceria. Fui para casa decidida a não retornar ao telefone público nos horários coincidentes com os da moça. Assim fiz. No outro dia e em outro horário o telefone público estava vazio, disponível. Consegui então efetuar as minhas ligações. 

Passaram-se algumas semanas e, andando pela rua, avistei a moça do telefone em companhia de duas mulheres. Uma, matrona, de quadris largos, devia ser a mãe. A outra, bisonha, a irmã. De focinhos, eram idênticas. Pode ter mudado de bairro, rua ou até mesmo de cidade. Era-me indiferente. O tempo passou rapidamente e parece que ela se evaporou. Não sei que fim levou a moça. Você sabe? 



(Ilustração: Suzanna Schlemm) 




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