quinta-feira, 29 de agosto de 2019

LITERATURA E LOUCURA, de Alfredo Schechtman







O espaço da criação literária nos oferece uma excelente possibilidade de estabelecer um olhar distanciado e crítico sobre as breves certezas da ciência e dos saberes e normas, em vários momentos e espaços históricos. 

Cabe lembrar que, a partir do Renascimento, a razão ocidental dá início, entre outros elementos e características, à construção da ciência e da literatura como as conhecemos hoje. Especificamente, o conhecimento científico fruto do desencantamento do mundo surge no mesmo momento que o romance europeu, uma forma literária com uma marcada influência da noção de sujeito desenvolvida na cultura européia pós-quinhentista. 

Esta perspectiva de apreensão crítica do mundo e da ciência pela literatura pode ser percebida, por exemplo, no Quixote de Cervantes, cuja temática satiriza as supostas fronteiras dos mundos da razão e desrazão. Assim fica claro que a literatura reflete sobre o sujeito e seus destinos, os indivíduos e suas características ou, se preferirem, sobre suas identidades e vicissitudes. De um modo geral, a arte pode oferecer um rico contraponto às verdades científicas, permitindo relativizá-las, abandoná-las ou superá-las. 

Faz-se necessário mencionar também que a criação literária nem sempre representa libertação ou transcendência. Há momentos históricos em que a literatura mimetiza e idolatra o universo da ciência, reforçando-o ideologicamente como, por exemplo, o movimento naturalista na literatura, ocorrido na segunda metade do século XIX. Não por acaso, este foi um dos momentos da história em que a ciência se impõe como verdade absoluta e triunfante no espaço da razão ocidental, destacando-se a preponderância e influência das assertivas da biologia e da medicina nesse contexto. 

Apresentamos a seguir uma pequena seleção de textos curtos de autores brasileiros, trazendo uma pequena mostra deste universo criativo em contraponto ao mundo mais árido e rigoroso da ciência. Esta mostra evidentemente não pretende esgotar o tema, mas apenas ilustrá-lo, optando-se pela escolha de fragmentos textuais menos conhecidos ou menos acessíveis, de diferentes épocas e contextos sociais, de autores que apresentaram em comum o terem se havido com as questões da normalidade e da loucura de modo explícito. 

Iniciamos com extrato de crônica semanal de Machado de Assis, da última década do século XIX, a qual confirma o interesse permanente e o olhar arguto deste grande autor por e sobre a temática da loucura e suas fronteiras com a dita normalidade. 

Em seguida, de Afonso Henriques de Lima Barreto, autor de rara visada crítica sobre a sociedade brasileira de seu tempo (primeiras décadas do século XX), e que conviveu desde pequeno com o ambiente das colônias de alienados, em que seu pai trabalhou como funcionário, além de ter passado pela marcante experiência de sua internação no Hospício Nacional em decorrência de abuso de álcool, transcrevemos um relato afilado e tocante deste período de reclusão. 

A partir dos anos 50, destaca-se a obra de Maura Lopes Cançado, contista mineira que passou boa parte de sua vida internada em instituições psiquiátricas no Rio de Janeiro. Percebe-se o seu agudo olhar crítico sobre as instituições psiquiátricas, que posteriormente viriam a ser alvo de crítica sistemática pelos protagonistas dos movimentos de reforma psiquiátrica. 

Por fim, entre os autores que emergem nos anos 70, marcados pela penetração das idéias anti-psiquiátricas em voga na época, selecionamos amostras de uma narrativa de Lucienne Samôr, autora mineira marcada pela dura experiência de sua reclusão em prisão e hospital psiquiátrico, que vale ser transcrito tanto por suas qualidades intrínsecas como por sua circulação quase à margem do sistema editorial dominante. 

Como conclusão, cabe ainda apontar o incomensurável potencial que os espaços da criação, que se realizam com e pelas palavras, podem oferecer no plano de expressão das emoções e de conquista de liberdade. 

Vejamos então os fragmentos textuais destes autores.



FUGA DO HOSPÍCIO 

Machado de Assis 



"(...) A fuga dos doidos do hospício é mais grave do que pode parecer à primeira vista. (...) Ou confiança nas leis, ou confiança nos homens, era convicção minha de que se podia viver tranqüilo fora do Hospício dos Alienados. No bonde, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta em dizer histórias extravagantes e opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos involuntariamente, e o interlocutor, supondo que era admiração, arregalava também os seus, e aumentava o desconcerto do discurso. Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Todas as histórias são possíveis, todas as opiniões respeitáveis. Quando o interlocutor, para melhor incutir uma idéia ou fato, me apertava muito o braço ou me puxava com força pela gola, longe de atribuir o gesto a simples loucura transitória, acreditava que era um modo particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me depressa dos fatos e das opiniões, não só por ter os braços mui sensíveis como porque não é com dois vinténs que um homem se veste neste tempo." 

"(...) Agora, porém, que fugiram doidos do hospício e que outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora já o terão conseguido), perdi aquela antiga confiança que fazia ouvir tranqüilamente discursos e notícias." 

"(...) Uma vez que se foge do hospício dos alienados (e não acuso por isso a administração), aonde acharei método para distinguir um louco de um homem de juízo? De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos. A própria pessoa, ou para dar mais claro exemplo, o próprio leitor deve desconfiar de si. (...) É sabido que a demência dá ao enfermo a visão de um estado estranho e contrário à realidade. Que saiu esta madrugada de um baile? Mas os outros convidados, os próprios noivos que saberão de si? Podem ser seus companheiros de Praia Vermelha. Este é o meu terror. O juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese."(ASSIS: 1994, 121-123)




DIÁRIO DO HOSPÍCIO 

Lima Barreto



"(...) Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão." 

"(...) Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quantos anos nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei porque não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério ¬ que mistério ¬ que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele. Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e na crendice do Hospício. Creio que ele não gostou." 

"(...) Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só. 

Há os que deliram; há os que se concentram num mutismo absoluto. Há também os que a moléstia mental faz perder a fala ou quase isso. Quando menino, muito vi loucos e, quando estudante, muito conversei com os outros que essas coisas de sandice estudavam sobre eles, mas, pela observação direta e pelo que li e ouvi dos entendidos, percebi bem a perplexidade deles em face de tão angustioso problema de nossa natureza. Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele; há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes observações, mas uma explicação da loucura não há." 

"(...) Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente pueris. Todo o problema da origem é sempre insolúvel; mas não queria já que determinassem a origem, sem explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até hoje tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode."(BARRETO: 1993, 23-25, 39-40) 




HOSPÍCIO É DEUS 

Maura Lopes Cançado



"(...) O que me assombra na loucura é a distância ¬ os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim. Que mais? Morrer é imundo e humilhante. O morto é náuseo, e se observado, acusa alto a falta do que o distinguia. A morte anarquiza com toda dignidade do homem. Morrer é ser exposto aos cães covardemente. Conquanto nos dois estados encontro pontos de contato ¬ o principal é a distância. Ainda que só diante do louco tenha experimentado a sensação de eternidade. Nele não encontramos a falta. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de vibração. Junto dele estamos sós. Não sabendo situá-lo fica-se em dúvida: onde se acha a solidão? O louco é divino, na minha tentativa fraca e angustiante de compreensão. É eterno." 

"(...) Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue ¬ e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro ¬ como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde ¬ paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o que, porque Hospício é deus." 

"(...) Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade ¬ talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém ¬ parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. Isto talvez não tenha a mínima importância. Mas e eu? Serei obrigada a repetir sempre que não sei? É verdade: "NÃO SEI". Estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. É terrível, deus. Terrível.(...) Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhidas sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis emprestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. É hospício, deus ¬ e tenho frio." (CANÇADO: 1979, 28-30, 33-34) 




ALA LATERAL 

Lucienne Samôr




"(...) O meu maior erro foi ter nascido depois da morte de Sigmund Freud. Havia rompido relações comigo mesmo e não sabia porque o espelho me era indiferente. Pouco a pouco, quando comecei a compreender a minha insensibilidade é que realmente nasci e a luz brilhou revelando-me o escuro abismo." 

"(...) Houve tempo em que até andava pela casa, divertindo a todos, falando em Sigmund Freud. E todos diziam acreditar nele e os seus olhos tomavam um brilho novo e falavam no Sigmund Freud como se ele fosse chegar a qualquer momento.(...) Quando Sigmund Freud chegar, entrar por aquela porta, logo perguntará por mim e eu vou rir da estupidez deles. Vale a pena viver para esperar esse dia. Mas eu falei em morrer?" 

"(...) Tenho medo, sabe, medo do que eles farão comigo. Outro dia fiquei sabendo que irão dar o meu cérebro para os cientistas estudarem. Não quero, não quero. Gritei isso para eles e não responderam nada. Não me levam a sério, por isso até fecharam os portões pra eu não falar com ninguém, inclusive pra não dizer que Sigmund Freud está viajando pra cá. Preciso fazer uma roupa nova, um terno sóbrio. Sim: sóbrio - para não espantar Sigmund Freud. Preciso ser discreto e ter paciência e não dizer tudo a ele de uma só vez. Sigmund Freud vai compreender e até vai me olhar com aquele olhar de compreensão. Ficarei calado. Depois direi tudo a ele e então tomará as providências necessárias. Sim, há providências necessárias a tomar - é importante. Por enquanto eu fico calado. Quero pegá-los desprevenidos. A surpresa é que é o essencial. Depois, bem, depois serei complacente porque não sou ruim. Eles me olharão e agradecerão a minha benevolência." 

"(...) Hoje notei maior movimento na porta do quarto. Será que Sigmund Freud chegou e eles escondem isso de mim? É bem capaz. Bando de canalhas! Bois! Animais! Abram a porta, abram a porta, miseráveis! Sigmund Freud veio para me ver - ouviram - PARA ME VER! - o que é isso? Que gritaria é essa? Não se façam de desentendidos, eu sei muito bem que Sigmund Freud chegou. Os passos se arrastam depressa e depressa todos se agrupam. As vozes de timbre cada vez mais forte emitem ecos. Eles se mexem, se agitam, correm pelos corredores, descem e sobem escadas e eu não entendo nada. Dou um murro na porta com o punho fechado: - SIGMUND FREUD, como está VIENA, o senhor VALSEIA? Olha, a valsa não é privilégio nosso, o senhor há de desculpar, mas a nossa cultura está em déficit. Sabe? O lugar comum está tomando conta de tudo rapidamente. Desculpe a falta da VALSA. Aliás, o senhor veio foi para me ver, conversar comigo, me aconselhar como um amigo, não foi? Pois, olha: estou à sua espera há tanto tempo que perdi a conta ou esqueci de contar - esses lapsos são comuns em mim, mas não irão impressionar ao senhor, eu sei. Por isso é bom a gente ter um amigo: um amigo assim igual ao senhor substitui qualquer mulher. Mas por que esse barulho, essa agitação febril, esse telefone que sempre tilinta, esses ruídos surdos, disfarçados, esse barulho de ferros caindo num balde? Sigmund, está ouvindo? SIGMUND! Patife! Está me ouvindo ou está com eles? Eles não vão deixar o senhor falar, não vão - entende? Vem aqui que eu explico tudo; eu tenho tanta coisa para explicar: é preciso também que me expliquem muita coisa. Não sei porque quando vem gente aqui, dizem que eu fico na ala lateral; desde ontem que não vejo o sol porque joguei o prato de comida na cara da mulher. Sabe, Sigmund, aqui faz muito frio, é igual a VIENA". (SAMÔR:1975, 105-107, 113-115)




Referências bibliográficas:

1-Machado de Assis. "Fuga do Hospício". In: Crônicas Escolhidas. Ed. Ática, São Paulo, 1994.

2-Lima Barreto. Diário do Hospício. Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993.

3- Cançado, Maura Lopes. Hospício é Deus. Ed. Record, Rio de Janeiro, 1979.

4- Samôr, Lucienne. "Ala Lateral". In: O Olho Insano. Ed. Interlivros, Belo Horizonte, 1975.





(Ilustração: Honoré Daumier - Sancho and Don Quixote)




segunda-feira, 26 de agosto de 2019

DESENVOLTURAS, de Rubens Rodrigues Torres Filho





Nós nos queremos bem: ah que derrama,

que hemorragia de sentimentos!

Irmãos! Que almas transparentes temos!

O chão nos foge sob os pés, tão leve.

Podemos nos olhar pelos avessos

que é tudo luz. O bem que nos queremos

nos santifica até aos intestinos.

Que vísceras de vidro! Que evidência!

Meu pênis se eletriza - é um travessão! Um hífen!

Um traço-de-união entre duas almas

tão juntas, tão aninhadinhas

uma na outra que dá gosto e enlevos.

Nos sabemos de cor, rosto e relevos.

Tudo nos dança: umas fosforescências

embevecidas lambem nossos beiços

e um simples esplendor nos satisfaz! 




(O voo circunflexo, 1981)



(Ilustração: 
Juarez Machado)

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

FRÉDÉRIC CHOPIN, A APOTEOSE DO PIANO, de Harold C. Schonberg





A maioria dos compositores Românticos tinha um parti pris sobre o Romantismo. Eles eram propagandistas; tocavam ou conduziam a música uns dos outros; escreviam críticas ou artigos sobre os novos estilos e teorias; eles ajudavam uns aos outros o quanto podiam; e, enquanto professore, alguns deles transmitiam suas aspirações para a geração vindoura. Não Frédéric Chopin. Ele, que pertencia ao movimento, não faria nada disso. Na verdade, ele não gostava do Romantismo. Ele achava a música de Lizt vulgar, não gostava nem um pouco da música de Schumann, não tinha nada a dizer sobre a obra de Berlioz ou Mendelssohn, embora fosse amigo de todos esses grandes nomes. Ele se cercava de Beethoven com uma mistura de admiração e desprezo; o trovejante mestre era grande demais e pouco polido, o que deixava Chopin desconfortável em sua presença. Se ele ouviu algum trabalho de Schubert, nunca o mencionou. Os dois únicos mestres que significavam algo para ele foram Bach e Mozart – para eles nada além de elogios. Ele também adorava as óperas de Bellini. 

Ele não lera muito e não reagia à arte romântica. Delacroix era um de seus melhores amigos, mas Chopin olhava para as suas pinturas e gaguejava algo que não o comprometesse, para não magoar os sentimentos do pintor. Suas aulas – que era como ele se sustentava em grande estilo – eram particulares e basicamente dadas para a alta sociedade. Alunos elegantes entravam no estúdio de Chopin e colocavam 20 ou 30 francos sobre a lareira enquanto ele olhava pela janela. Ele era um cavalheiro, e um cavalheiro não sujava suas mãos com algo torpe como transações financeiras. Ele gostava de frequentar os círculos aristocráticos e se preocupava muito com estilo, gosto, roupas e bom ton. Ele sabia ser sagaz, malicioso, desconfiado, mal-humorado e charmoso. Havia algo de felino em Chopin. 

Um dos maiores pianistas da história, ele deu poucos concertos, preferia a intimidade dos salões. Baixo, magro, aloirado, com olhos cinza-azulados (alguns dizem castanhos), um nariz proeminente e belo porte, ele era fisicamente frágil e suas execuções não tinham muito volume. Perto do fim, não passavam de sussurros. Desde cedo ele aprendeu que não poderia tocar em áreas muito grandes; sua última apresentação pública se deu em Paris, em 26 de abril de 1835, quando ele tinha apenas 26 anos. Pelo resto da vida – ele morreu em 1849 – ele deu apenas recitais que eram semiprivados, no salão do fabricante de pianos Pleyel, ante uma audiência seleta que nunca ultrapassava as 300 pessoas. Ele tocou muito em festas particulares. Que noites essas devem ter sido! Chopin e Lizt tocando a quatro mãos (Chopin tocando o baixo; Lizt não atreveria a abafá-lo), talvez Mendelssohn virando as páginas das partituras enquanto aguardava sua vez ao piano. Em volta do instrumento poderiam estar Berlioz, Meyerbeer, Eugène Sue, Delacroix, Heine e George Sand, com Ary Scheffer fazendo esboços ao fundo. 

Chopin se encaixava perfeitamente na louca e perversa, triste e alegre Paris de 1830 a 1850. Embora não contasse com muitos amigos íntimos, ele conhecia todo mundo, e todos o respeitavam. Sabiam que ele era um gênio. A Paris daqueles tempos era muito boa em identificar os gênios. Era a capital intelectual e artística do mundo. Hugo, Balzac, Sand, Vigny, Lamartine, Heine, Gautier e Musset estavam entre as personalidades literárias que habitavam a cidade. Delacroix e Ingres estravam no auge de suas carreiras. Liszt, Meyerbeer, Rossini, Berlioz e Cherubini fizeram de Paris seu lar. Mendelssohn ia e vinha. Paris tinha três grandes orquestras e a maior ópera da Europa. Malibran, Pasta, Lablache, Rubini e Nourrit podiam ser ouvidos na ópera, e supriam um tipo de canto floreado e virtuoso que devia ser admirável. Paris era o centro do piano Europa, com Kalkbrenner, Thalberg, Herz, Heller, Litoff e Prudent residindo ali. No âmbito político Paris estava temporariamente estabilizada. Les trois jours glorieuses de julho de 1830 tinham levado Luís Felipe ao trono e, como o levante tinha sido um movimento popular, concessões eram feitas ao gosto popular. A burguesia foi levada ao poder; e embora as classes mais baixas continuassem muito como sempre foram, havia um renascimento nacionalista e uma prosperidade que foram parcialmente responsáveis pelo repentino florescimento das artes. Paris na década de 1830 experimentava o tipo de renascimento que Londres tivera nos últimos anos de Elisabeth I. 

Chopin se mudou para Paris em 1831 e passou o resto de sua vida ali. Quando chegou à cidade, era um provinciano de Varsóvia. Sua cidade natal era Zelazowa Wola, perto da capital polonesa, e há registros diferentes da data. O registro da paróquia estabelece seu nascimento em 22 de fevereiro de 1810, mas a mãe de Chopin insistia que a data era 1 de março, quando celebrava o aniversário de seu famoso rebento. Alguns pesquisadores conseguiram evidências de que o ano certo do nascimento é 1809. O assunto ainda não foi resolvido. O pai de Chopin era um imigrante da França, sua mãe era polonesa. Frédéric era o segundo de quatro filhos e o único homem. Seu talento musical despontou cedo e ele já era bom pianista aos 6 anos. Adalbert Zywny, seu professor, era um músico culto que alimento a genialidade de seu aluno com muito Bach. (Bach, na Varsóvia de 1816! E quem alegue que Bach fora esquecido!) Aos 8 anos, Chopin viu sua primeira composição ser publicada. Era uma polonaise. De 1826 a 1828, ele estudou composição com Joseph Elsner, um homem que teve a sabedoria de perceber que Chopin tinha algo especial e merecia ser tratado com deferência. Como academicista, Elsner esperava que Chopin compusesse sinfonias, sonatas e talvez uma ópera nacional polonesa. Mas ele nunca forçou o estilo de Chopin e fez o que pôde para que o jovem desenvolvesse seus dotes naturais. Esse deve ter sido sua maior contribuição, pela qual a posteridade fica lhe devendo. Pois, de várias formas, Chopin era uma esquisitice musical, mais do que muitos prodígios. Ele não era apenas genial ao piano, ele era criativamente um gênio, um dos mais assustadoramente originais daquele século. 

De onde vinham suas ideias? Varsóvia estava distante dos centros cosmopolitas de Europa, embora fosse visitada por artistas importantes. Chopin teve a oportunidade de ouvir alguns deles – Hummel, Paganini e a soprano Henrietta Sontag, entre outros. A gênese da música de Chopin pode ser traçada nas obras de Moscheles, Hummel e Czerny. Mas isso não explica as qualidades revolucionárias do pensamento de Chopin – seu total desenvolvimento de uma nova execução ao piano; seu ousado, porém refinado, senso harmônico; sua experimentação com um novo tipo de sonoridade para o piano que finalmente libertou o instrumento de seu passado. O que podemos afirmar é que com o jovem Chopin uma nova fermentação musical teve início e ele achava que deveria mudar as regras. Quanto dessa sua atitude era consciente e quanto dela era inconsciente podemos apenas imaginar. Ele era genial e nasceu com certos reflexos na mente, dedos e ouvidos que os músicos menos afortunados nunca dominam. Ele certamente atingiu sua total maturidade mais cedo que outros compositores e tudo parecia lhe ser fácil. “Sabes”, seu pai escreveu, “que a técnica do piano pouco ocupou de teu tempo, e que tua mente estava sempre mais ocupada que teus dedos. Se outros passam horas ao piano, tu raramente passaste mais uma hora tocando a música de outro.” Assim, Chopin se inclui na lista dos sortudos – um virtuose natural com estilo individual, um compositor que decidiu cedo compor para o instrumento que amava. Seus trabalhos foram todos basicamente nas formas menores, mas ele ajudou a mudar a face da música e a maioria de seus contemporâneos o reconhecia como o revolucionário que era. “O Cânone enterrado em flores”, disse Schumann da música de Chopin. 



(A vida dos grandes compositores; tradução de Wagner Souza) 



(Ilustração: Romance de George Sand et Frédéric Chopin)




terça-feira, 20 de agosto de 2019

O LIVRO, de Ana Martins Marques





“o livro que alguém deixa cair ao adormecer 


continua aberto, 

como se ferido por um tiro” 

Thomas Transtömer 




O livro que alguém deixou cair

ao adormecer

continua aberto

ave abatida no voo

caída

com as asas abertas

ao pé da cama

o livro que alguém deixou

cair

crucificado

ao lado da cama

permanece acordado

ou cai também no sono

e sonha também

embaralhando as linhas

sonha que é pássaro

ou parede

sonha que lhe devolvem

a brancura original

que pode enfim não dizer nada

sonha que fala numa língua sem língua que todos entendem

sonha que conhece a água sem a destruição

sonha que as palavras se arruínam mas ele mesmo não se arruína

sonha que é de novo árvore, de novo floresta

sonha de novo suas ramas, sua seiva, suas flores

sonha que é uma vela aberta

que o outono alcança também

as folhas dos livros

sonha que doura ao sol

sua pele de papel

o livro que alguém deixou

cair

ao lado da cama

partitura para música

nenhuma

mapa para

nenhum lugar

caído no sono

do seu próprio peso

continua aceso

como uma lâmpada esquecida acesa

ao lado da cama




(Ilustração: Alexander Bartashevich)
 

sábado, 17 de agosto de 2019

A MÁXIMA POESIA MÍNIMA, de Adão de Araújo







Paulo Leminski, em singelo metapoema, disse: 

Um pouco de mao 

em todo poema que ensina 

quanto menor 

mais do tamanho da china. 

Nada mais apropriado para o mestre do verso curto, que repetia em língua lusitana o que já dissera o Bardo e de Avon: "Brevity is the soul of wit". O mesmo fio condutor, que vê nos rebuscamentos vocabulares e excessos estilísticos elementos periféricos da poesia, orientou o percurso da obra de Helena Kolody, ainda que nessa busca de síntese nossa mestra não tenha chegado aos extremos do nosso bom sacerdote paranaense, cujo primeiro nome parece confirmar-lhe a característica preconizada pelo mestre britânico: "A concisão é a alma da sabedoria". 

Mas com a poetisa maior do Paraná, à medida que seus cabelos se tingiam de luar, os poemas antigos eram revisitados e sua poesia se tingia de simplicidade. Abandonava ela a camisa de força do soneto e a grandiloquência castriana de Poetas Mortos, características, aliás, a que nunca se entregara totalmente. Assim, a solenidade do "fulvo oceano de luz" e a tonitruante e caudalosa voz que denuncia os "monstros de pesadelo apocalíptico" dão lugar à comovente simplicidade do menino que recupera a alegria ao contemplar o arco-íris no céu. O quase lamuriante sentimentalismo de Reminiscência cede vez às singelas sinestesias do haicai, cuja semente, já plantada no longínquo 1941, na núbil Pereira em Flor, viria a florescer com todo o viço décadas mais tarde. À guisa de exemplo, o poema "O Inefável", nos quase 50 anos que medeiam a sua primeira publicação e a de 1988, dos 21 versos originais, foi reduzido a 3, os 3 primeiros. O esforço de dizer o indizível, na vã luta com as palavras, no dizer de Drummond, paradigma de nossa poetisa, se rende ao inevitável paradoxo da im(possibilidade) de expressão. 

O poeta é um cosmonauta que encontra na palavra a solidariedade para a sua solidão e que nela consegue refugiar-se da perplexidade ante um universo estupefaciente, cujo controle, escapando-lhe às mãos, não lhe escapa à onipotência do Verbo Criador. Há a serena percepção de que a existência, outrora "uma jornada, onde se pode encontrar, nalguma curva da estrada, a figura de Lohengrin ou de Jasão", a despeito de suas exigências pragmáticas, não exclui a concretude dos sonhos, a condição mesma da vida, na imbricação da vida biológica e vida existencial, como se constata em 

Carência 



Algo que falta 

puxa as raízes, 

sobe no caule, 

rebenta em flores, 

no intenso impulso 

de ir mais além. 

Vida é carência. 

Helena Kolody requer, acima de tudo, o exercício da apreensão intuitiva em determinados momentos; em outros, estarrece-nos com o simplismo do óbvio. A vaguidade, que no dizer de Augusto Meyer é a própria essência poética, restitui a possiblidade de auto-sedução, como um etéreo perfume de origem imprecisa. Como um arqueiro zen, com suas flechas-palavras, ela mira a si mesma, e leva a participar da visão de que, na percepção do devir, por ser antena da raça (como dizia Ezra Pound), o poeta inventa-se em palavras, conforma-se no dizer. Mais que nunca, o leitor é co-autor, e no momento mesmo da fruição é que se constitui o: 

Significado 



No poema 

e nas nuvens, 

cada qual descobre 

o que deseja ver. 

O fazer poético se configura, acima de tudo, como um espelho que, por reflexo, permite estabelecer a esfera de atuação da consciência. Como recurso de sofismável catarse, leva à constatação de que, nas insondáveis profundezas interiores, encontra-se a matéria-prima que plasma o indizível, a essência destituída de fundo e forma. A palavra é quase pretexto. A deliberada intencionalidade se dilui no fluir de um texto cujo objeto sempre oferece resistência. O signo verbal é mais um obstáculo que um instrumento, mais a pedra bruta que o cinzel. Daí a obsessão pela palavra, pela reflexão sobre o próprio fazer poético, pela verificação dos limites que a palavra impõe. São mais de sessenta metapoemas, o que traduz a incansável busca de significar o poético pela poetização do significado. 

Não. 



Não era isso. 

O que eu queria dizer 

era tão alto 

e tão longe 

que nem consegui soletrar 

suas palavras-estrelas. 

O anelo de transcendência se corporifica na "trans-significação" do inefável, que pulveriza a brevidade da vida e propicia a serena visão da perenidade do ser. A oscilação entre o anseio de Eros e a tirânica inexorabilidade de Tanatos e esfacela, no isomorfismo do Feiticeiro Inventor que não vai aos extremos de um anacrônico pós-romantismo nem desce ao frio gume da precisão matemática de um parnasianismo tardio, mas que, alheio às correntes e contracorrentes de escolas (cujo determinismo categorizante às vezes cumpre função mais descritiva que de penetração na gênese do fenômeno literário), coaduna-se mais a um Neo-Simbolismo, não tanto pelo tratamento dado aos temas quanto pela sua seleção. Não há o intimorato e etílico mergulho nas profundas regiões do inconsciente, pois HK é ela mesma a corporificação dos páramos líricos, como um ser etéreo que nunca desceu completamente à terra. O evasionismo dos primeiros anos foi dando lugar à apreensão do transcendente nas coisas simples do cotidiano, à presentificação das realizações sinestésicas. A persistência da memória propicia alargar (e ao mesmo tempo dissolver...) a dicotomização eu x mundo, e o poeta percebe que existe no mundo que nele existe. O passado não mais a contempla com olhos que já foram seus, e o ontem agora se torna o eterno agora: 

Depois 



Será sempre agora. 

Viajarei pelas galáxias 

universo afora. 





(Revista de Letras nº 01/96, do Departamento Acadêmico de Comunicação e Expressão – Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná) 



(Ilustração: Gerda xWegener - 1886-1940)



quarta-feira, 14 de agosto de 2019

ARAUCÁRIA, de Helena Kolody






Araucária,

Nasci forte e altiva,

Solitária.

Ascendo em linha reta

- Uma coluna verde-escura

No verde cambiante da campina.



Estendo braços hirtos e serenos.



Não há na minha fronde

Nem veludos quentes de folhas,

Nem risos vermelhos de flores,

Nem vinhos estonteantes de perfumes.

Só há o odor agreste da resina

E o sabor primitivo dos frutos.



Espalmo a taça verde no infinito.

Embalo o sono dos ninhos

Ocultos em meus espinhos,

Na silente nudez do meu isolamento.



(Paisagem Interior, 1941)



(Ilustração: Alfred Henry Maurer -Fauve Landscape)




domingo, 11 de agosto de 2019

A MORTE DE GEORGE, de Philip Roth





Dizem que eu sou "autocomplacente"— eles, que não são autocomplacentes. Os torturados, é claro, de mim só querem distância. Sem dúvida, nenhum homem casado jamais se abre comigo. Com eles não há nenhuma afinidade. Talvez eles troquem confidências uns com os outros, se bem que tenho lá minhas dúvidas — não sei até onde vai a solidariedade masculina hoje em dia. O heroísmo deles não se limita a suportar estoicamente suas renúncias cotidianas, porém exige também que exibam uma imagem falsa de suas vidas, do modo mais enfático. Suas vidas verdadeiras, as vidas ocultas, só aparecem para seus terapeutas. Não estou dizendo que todos eles estejam contra mim e queiram ver minha caveira por eu levar a vida que levo, mas creio que não há dúvida de que não sou universalmente admirado. Agora que George morreu, só encontro solidariedade em mulheres como Elena, que já foram minhas namoradas. 

Elas não podem me oferecer o que George me dava, mas ao que parece eu não exijo demais da tolerância delas. 

A idade dele? George estava com cinqüenta e cinco. Derrame. Teve um derrame. Eu estava presente quando a coisa aconteceu. Eu e mais oitocentas pessoas. Foi no auditório da Hebraica da 92a Street em setembro. Uma noite de sábado, em setembro. Ele ia fazer uma leitura de poemas. Era eu que o estava apresentando no palco. Ele estava sentado numa cadeira nos bastidores, gostando da minha apresentação, concordando com a cabeça. Com aquele seu terno apertado de agente funerário, ele espichava as pernas compridas e magras — George, aquele homem flexível, de terno, era como um cabide de arame, aquele irlandês moreno de nariz adunco. Pelo visto, teve o derrame naquele exato momento, sentado com seus seis livros de poesia no colo, esperando a hora em que seria chamado, com aquele terno preto lúgubre, e deixaria a platéia siderada. Pois quando as pessoas começaram a aplaudir e ele fez menção de se levantar, seu corpo despencou da cadeira, que caiu por cima dele. Sua obra ficou toda espalhada pelo chão. Os médicos achavam que ele nem ia conseguir sair do hospital. Mas ele agüentou firme, inconsciente, por uma semana, quando então a família o levou para morrer em casa. 

Em casa, também ficou inconsciente a maior parte do tempo. O lado esquerdo paralisado. As cordas vocais paralisadas. Um bom pedaço de seu cérebro simplesmente fora para o espaço. O filho dele, Tom, é médico, e foi ele que administrou a morte do pai, o que levou mais nove dias. O filho tirou os tubos todos, o cateter, desligou tudo. Sempre que George abria os olhos eles o recostavam na cama e lhe davam água para beber, gelo para chupar. Tentavam cercá-lo de todos os confortos possíveis, enquanto ele agonizava num ritmo vagaroso, torturante. 

Todas as tardes, ao final do meu dia, eu ia até Pelham visitá-lo. George havia removido a família para Pelham a fim de que, durante todos aqueles anos em que lecionava na New School, pudesse ter liberdade em Manhattan. Às vezes havia até cinco ou seis carros estacionados quando eu chegava lá. Os filhos se revezavam, de vez em quando levando um ou outro neto. 

Havia uma enfermeira e, já perto do final, uma especialista em pacientes terminais. Kate, a mulher de George, estava lá o tempo todo, naturalmente. Eu ia até o quarto, onde haviam instalado uma cama de hospital, e pegava na mão dele, a mão do lado em que ele ainda sentia alguma coisa, e ficava quinze, vinte minutos sentado à seu lado, mas ele estava sempre fora do ar. Respirando fundo. Gemendo. 

A perna boa vez por outra estremecia um pouco, mas era só isso. Eu passava a mão no cabelo dele, pegava-lhe no rosto, apertava-lhe os dedos, mas nada. 

Ficava ali na esperança de que talvez ele voltasse a si e me reconhecesse; depois eu ia para casa. Então, uma tarde, cheguei lá e fui informado de que finalmente ele estava acordado. Pode ir, pode ir, me disseram. 

Haviam recostado George nos travesseiros, e a cama estava um pouco levantada. A filha dele, Betty, dava-lhe gelo. Quebrava pequenos estilhaços de gelo com os dentes e os inseria na boca do pai. George tentava mastigá-los no lado da boca que ainda funcionava. Parecia já quase morto, magérrimo, porém os olhos estavam abertos, e ele se concentrava o quanto ainda lhe era possível concentrar-se no ato de mastigar gelo. Kate estava parada à porta olhando para ele, uma mulher imponente, de cabelo branco, quase tão alta quanto George, porém mais volu-mosa do que da última vez que eu a vira, e com um ar muito mais cansado. Era rechonchuda, mas atraente, irônica, rija, e irradiava uma espécie de cordialidade teimosa — assim era Kate, já beirando a velhice. Uma mulher que jamais fugia da realidade, que agora parecia completamente exausta, como se houvesse combatido em sua última batalha e tivesse sido derrotada. 

Tom trouxe um pano úmido do banheiro. "Quer se limpar, pai?", disse ele. 

"Será que ele entende?", perguntei a Tom. "Ele ainda entende alguma coisa?" 

"Tem horas", respondeu Tom, "que ele parece entender. Mas depois passa." 

"Há quanto tempo ele está acordado?" "Mais ou menos meia hora. Vai. Fala com ele, David. Ele parece que curte ouvir vozes." 

Curtir? Uma palavra estranha. Mas Tom, em qualquer situação, é sempre o médico jovial. 

Aproximei-me do lado de George que não estava paralisado enquanto Tom limpava seu rosto com o pano úmido. George tirou o pano do filho — para espanto geral, estendeu a mão boa, agarrou o pano e o enfiou na boca. "Ele está muito seco", alguém observou. George enfiou a ponta do pano na boca e começou a chupá-la. Quando tirou, havia algo grudado nela. Parecia um pedaço do palato mole. Betty sufocou um grito quando viu aquilo, e a especialista em pacientes terminais, que também estava no quarto, pôs a mão nas costas de Betty, dizendo: "Não é nada. A boca dele está muito seca, é só um pouco de carne ressecada". 

A boca de George estava torta, aberta, aquela boca sofrida dos moribundos, porém seus olhos estavam fixos, parecia mesmo haver algo por trás deles, algo de George que ainda resistia. 

Como aquela parede quebrada que permanece em pé depois de uma explosão. Com a mesma força irritada com que arrancara o pano de Tom, ele afastou o lençol que o cobria e começou a puxar o fecho de velcro de sua fralda, tentando arrancá-la, exibindo aqueles palitos melancólicos que outrora tinham sido suas pernas. O filamento de tungstênio quebrado dentro de uma lâmpada queimada — era isso que as pernas dele pareciam. Tudo nele, tudo que era de carne e osso, me fazia pensar em seres inanimados. 

"Não, não", disse Tom, "deixa, pai. Está bem assim." Mas George não parava. Continuava puxando, irritado, tentando em vão arrancar a fralda. Não conseguindo, levantou a mão e, meio que rosnando, apontou para Betty. "O quê?", ela indagou. "Não entendi. O que é que você quer? O quê, paizinho?" Os ruídos que George emitia eram indecifráveis, mas seus gestos deixavam claro que ele queria que a filha se aproximasse tanto quanto possível. Quando Betty obedeceu, ele estendeu o braço, colocou-o nas costas dela e puxou-a para a frente para poder beijá-la na boca. "Ah, sim, papai", disse ela, "você é o melhor pai do mundo, sim, o melhor de todos." O que causava espanto era aquela força toda brotar de dentro de George depois de tantos dias que ele passara deitado, inerte e descarnado, sobrevivendo sabe-se lá como, aparentemente nas últimas — a força considerável com que puxara Betty para junto de si e agora tentava falar. Talvez, pensei, eles não devessem deixá-lo morrer. E se ainda restar mais dele do que todo mundo pensa? E se for isso que ele está querendo demonstrar? E se em vez de estar se despedindo de todos, ele estiver dizendo: "Não me deixem morrer. Façam tudo que vocês puderem para me salvar"? 

Então George apontou para mim. "Oi, George", disse eu. "Meu amigo. Sou eu, o David, George." 

E quando me aproximei dele, ele me agarrou tal como havia agarrado Betty e beijou a mim na boca. Não senti cheiro de cadáver, nem fedor doentio, nenhum odor desagradável: apenas um hálito quente, sem cheiro, o puro perfume do ser, e dois lábios ressequidos. Era a primeira vez que George e eu nos beijávamos. Mais uma vez, ele grunhiu, agora apontando para Tom. Para Tom e depois para seus próprios pés, que estavam descobertos sobre a cama. Quando Tom, pensando que George quisesse que suas pernas fossem cobertas, começou a ajeitar os lençóis, George começou a gemer mais alto, apontando de novo para os pés. "Ele quer que você segure", disse Betty. "Um deles ele nem sente", disse Tom. "Segura o outro", ela insistiu. 

"Está bem, pai, entendi — entendi." E Tom começou a acariciar pacientemente o pé que seu pai ainda sentia. 

Em seguida, George apontou para a porta, onde Kate estava parada, assistindo a tudo. "Ele quer você, mãe", disse Betty. Afastei-me e Kate se colocou no lugar onde eu estava, ao lado da cama, e George estendeu o braço para ela, o braço que ainda funcionava, puxando-a para si, e beijou-a de modo tão enfático quanto beijara a Betty e a mim. Kate beijou-o também. Então beijaram-se outra vez, agora um beijo prolongado, realmente apaixonado. Kate chegou mesmo a fechar os olhos. Ela é uma pessoa absolutamente livre de sentimentalismo, uma pessoa bem pé-na-terra, e eu nunca a vira agir daquele jeito, como uma menina. 

Enquanto isso, a mão boa de George havia passado das costas de Kate para seu braço direito, e ele começou a mexer no botão do punho da blusa. Estava tentando desabotoá-lo. 

"George", Kate sussurrou baixinho. Parecia achar graça. "Georgie, Georgie..." "Ajuda ele, mãe. Ele quer desabotoar." Sorrindo ao ouvir tais instruções da filha emocionada, Kate cedeu e abriu o botão, mas a essa altura George já estava mexendo na outra manga, no botão, e assim ela também o desabotoou. E o tempo todo ele a beijava. Kate acariciou o rosto destruído, aquele rosto terrivelmente solitário e cavernoso, beijando-lhe os lábios cada vez que ele os oferecia, e em seguida a mão de George procurou os botões da frente da blusa, tentando desabotoá-los. 

O plano dele era evidente: estava tentando despi-la. Despir aquela mulher que, como eu bem sabia, e como seus filhos certamente sabiam, ele não tocava na cama havia anos. Que ele raramente tocava em qualquer circunstância. 

"Deixa, mãe", disse Betty, e Kate mais uma vez obedeceu à filha. Ela própria ajudou George a desabotoar a blusa. Dessa vez, quando se beijaram, a única mão boa de George estava pegando no tecido do sutiã largo de Kate. Porém, de repente, tudo terminou. A força esvaiu-se dele sem mais nem menos, e George jamais chegou a tocar nos seios caídos da mulher. Ainda levou mais doze horas para morrer, mas quando se deixou cair sobre os travesseiros, a boca entreaberta, os olhos fechados, ofegante como um corredor que desaba no final da corrida, todos nós sabíamos que tínhamos acabado de presenciar o último ato extraordinário da vida de George. 

Depois, quando fui até a porta para sair, Kate veio comigo para a varanda, e então me acompanhou até o carro. Segurando minhas mãos, me agradeceu por ter vindo. Respondi: "Foi bom estar presente e assistir a tudo aquilo". 

"É, foi mesmo um espanto, não foi?", disse Kate. 

Em seguida, com seu sorriso cansado, acrescentou: "Sei lá quem ele pensou que eu fosse". 



(O animal agonizante; tradução de Paulo Henriqe Britto) 



(Ilustração: Frida Kahlo)




sexta-feira, 9 de agosto de 2019

REVISITAÇÃO, de José Paulo Paes






Cidade, por que me persegues?



Com os dedos sangrando

já não cavei em teu chão

os sete palmos regulamentares

para enterrar meus mortos?

Não ficamos quites desde então?



Por que insistes

em acender toda noite

as luzes de tuas vitrinas

com as mercadorias do sonho

a tão bom preço?



Não é mais tempo de comprar.

Logo será tempo de viajar

para não se sabe onde.

Sabe-se apenas que é preciso ir

de mãos vazias.



Em vão alongas tuas ruas

como nos dias de infância,

com a feérica promessa

de uma aventura a cada esquina.

Já não as tive todas?



Em vão os conhecidos me saúdam

do outro lado do vidro,

desse umbral onde a voz

se detém interdita

entre o que é e o que foi.



Cidade, por que me persegues?

Ainda que eu pegasse

o mesmo velho trem,

ele não me levaria

a ti, que não és mais.



As cidades, sabemos,

são no tempo, não no espaço,

e delas nos perdemos

a cada longo esquecimento

de nós mesmos.



Se já não és e nem eu posso

ser mais em ti, então que ao menos

através do vidro

através do sonho

um menino e sua cidade saibam-se afinal



intemporais, absolutos.



(A Meu Esmo - 1995)



(Ilustração: Tetsuya Ishida)




segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O PORÃO, de J. M. Coetzee






Nevou forte durante a noite. Saindo ao ar livre, ele fica aturdido pela súbita claridade. Para e se agacha, dominado pela sensação de estar girando, não da esquerda para a direita, mas de cima para baixo. Se tentar se mover, parece que será impelido para a frente e cairá. 

Isso só pode ser o prelúdio de um acesso. A crise vem se anunciando há dias, em sensações de tontura e palpitações, em exaustão e irritabilidade. A não ser que toda a situação em que ele vive possa ser chamada de crise. 

Parado na entrada do número 63, preocupado com o que acontece dentro de si, ele nada escuta, até que seu braço é agarrado com força. Com um susto, ele abre os olhos. Dá de cara com Nietcháiev. 

Nietcháiev sorri, mostrando os dentes. Seus furúnculos estão lívidos por causa do frio. Ele tenta se soltar, mas seu captor apenas o puxa para mais perto. 

“Isso é uma idiotice”, ele diz. “Deveria ter deixado Petersburgo enquanto podia. Certamente será preso.” 

Segurando-o pelo braço com uma das mãos e pelo pulso com a outra, Nietcháiev o faz girar. Lado a lado, como um cão relutante e seu dono, caminham pela rua Svechnoi. 

“Mas talvez o que você deseje secretamente é ser preso.” 

Nietcháiev usa um quepe preto cujas abas balançam quando ele mexe a cabeça. Fala num tom calmo, monótono. “Você está sempre atribuindo às pessoas motivos perversos, Fiódor Mikhailovitch. As pessoas não são assim. Pense um pouco: por que eu desejaria ser apanhado e preso? Além disso, quem olharia duas vezes para uma dupla como nós, pai e filho passeando?” E ele lhe dá um sorriso bem-humorado. 

Alcançam o final da Svechnoi; com uma leve pressão, Nietcháiev o conduz para a direita. 

“Tem alguma ideia do que sua amiga está passando?” 

“Minha amiga? Quer dizer a finlandesa? Ela não vai ceder. Confio nela.” 

“Não diria isso se a tivesse visto.” 

“O senhor a viu?” 

“A polícia a levou ao meu apartamento para me identificar.” 

“Não importa, não temo por ela; é corajosa, fará seu dever. Ela teve a oportunidade de conversar com a filhinha de sua senhoria?” 

“Com Matryona? Por que deveria?” 

“Por nada, por nada. Ela gosta de crianças. Ela mesma é uma criança: muito simples, muito franca.” 

“Fui interrogado pela polícia. Serei interrogado novamente. Não escondi nada; não esconderei nada. Estou lhe avisando, você não pode usar Pável contra mim.” 

“Não preciso usar Pável contra o senhor. Posso usar o senhor contra si mesmo.” 

Estão na rua Sadovaya, no coração do Mercado da Palha. Ele finca os calcanhares e para. “Você deu a Pável uma lista de pessoas que queria matar”, diz. 

“Já conversamos sobre a lista, não se lembra? Era uma de muitas listas. Vários exemplares de muitas listas.” 

“Não foi isso que perguntei. Quero saber...” 

Nietcháiev atira a cabeça para trás e ri. Um jato de vapor sai de sua boca. “O senhor quer saber se está incluído!?” 

“Quero saber se foi por isso que Pável se desentendeu com você. Porque viu que eu estava marcado e se recusou.” 

“Que ideia mais estrambótica, Fiódor Mikhailovitch! É claro que o senhor não está em lista nenhuma! O senhor é uma pessoa valiosa demais. De qualquer forma, aqui entre nós, não faz diferença que nomes estão nas listas. O que importa é que eles saibam que a desforra está a caminho e tremam de medo. O povo entende uma coisa dessas, e a aprova. O povo não está interessado em casos individuais. Desde tempos imemoriais o povo sofre; agora exige que seja a vez de eles sofrerem. Portanto, não se preocupe. Sua hora ainda não chegou. Na verdade, ficaríamos contentes de ter a colaboração de pessoas como o senhor.” 

“Pessoas como eu? Quem são as pessoas como eu? Espera que eu escreva panfletos para você?” 

“É claro que não. Seu talento não é para panfletos, o senhor é sincero demais para isso. Vamos andando. Quero levá-lo a certo lugar. Quero plantar uma semente em sua alma.” 

Nietcháiev pega seu braço e continuam a andar pela rua Sadovaya. Dois oficiais dos Dragões, de casacos verde-oliva, aproximam-se. Nietcháiev dá passagem, erguendo a mão em continência. Os oficiais fazem um gesto de cabeça. 

“Li seu livro Crime e castigo”, ele continua. “Foi ele que me deu a ideia. É um livro excelente. Nunca li nada parecido. Havia trechos que me assustavam. A doença de Raskolnikov, e assim por diante. O senhor deve ter escutado elogios de muita gente. Ainda assim, digo-lhe...” Ele fecha a mão sobre o peito e depois a afasta do corpo, como se estivesse arrancando o coração. 

A estranheza do gesto parece surpreendê-lo, pois ele se ruboriza. É o primeiro gesto não calculado que vê em Nietcháiev, e isso o surpreende. Um coração virgem, ele pensa, chocando-se consigo mesmo em seu ardor. Como aquela criatura do doutor Frankenstein ganhando vida. Ele sente um primeiro toque de pena daquele rapaz tenso, nada atraente. 

Agora estão no centro do Mercado da Palha. Nietcháiev o conduz pelas ruas estreitas, repletas de balcões de vendedores e carrinhos de mão, em meio a um forte cheiro de humanidade. 

Param junto a uma porta. Nietcháiev tira do bolso um cachecol de lã azul. 

“Devo lhe pedir que aceite ser vendado”, diz. 

“Aonde está me levando?” 

“Quero lhe mostrar uma coisa.” 

“Mas aonde está me levando?” 

“Aonde moro atualmente, entre o povo. Será mais fácil para nós dois. O senhor poderá relatar com a consciência limpa que não sabe onde me encontrar.” 

Com a venda amarrada, ele pode voltar ao prazer da vertigem. Nietcháiev o dirige; ele leva esbarrões dos pedestres e cai uma vez, mas o ajudam a levantar-se. 

Deixam a rua e entram em um pátio. De uma taverna vêm sons de canto, de um violão e gritos de alegria. Há um odor de esgoto e restos de peixe. 

Sua mão é conduzida para um corrimão. “Pise com cuidado”, diz Nietcháiev. “Está tão escuro aqui que não adiantaria tirar a venda.” 

Ele arrasta os pés como um velho. O ar está úmido e parado. De algum lugar vem o ruído de água pingando lentamente. É como entrar numa caverna. 

“Chegamos”, diz Nietcháiev. “Cuidado com a cabeça.” 

Eles param. Nietcháiev remove a venda. Estão sob uma escada de madeira sem iluminação. Diante deles há uma porta fechada. Nietcháiev bate quatro vezes, depois três. Esperam. Não há ruído, exceto o da água pingando. Nietcháiev repete o código. Sem resposta. “Teremos de esperar”, ele diz. “Venha.” Ele bate na porta do outro lado da escada, abre-a e deixa-o passar. 

Entram num porão tão baixo que o obriga a curvar-se, iluminado apenas por uma pequena janela forrada de papel, à altura da cabeça. O piso é de pedra; mesmo de pé ele pode sentir o frio insinuar-se pelas botas. Canos correm pelo rodapé. Há um cheiro de gesso molhado, de tijolos molhados. Embora seja improvável, parece haver cortinas d’água escorrendo pelas paredes. 

Na extremidade do porão foi estendida uma corda, da qual pendem roupas tão encardidas quanto o próprio lugar. Sob o varal há uma cama, na qual estão sentadas três crianças em posições idênticas, de costas para a parede, com os joelhos encolhidos até o queixo, os braços envolvendo os joelhos. Estão descalças e vestem camisolas de algodão. A mais velha tem os cabelos engordurados e despenteados; o muco cobre seu lábio superior, que ela lambe languidamente. Uma das outras crianças é apenas um bebê. Não há movimento algum, nenhum som deles. Com os olhos remelentos e sem curiosidade, observam os intrusos. 

Nietcháiev acende uma vela e a coloca num nicho na parede. 

“É aqui que você mora?” 

“Não. Mas isso não importa.” Ele começa a andar de um lado para outro. Novamente tem a impressão de uma energia enjaulada. Imagina Pável ao lado dele. Pável não tinha esse ímpeto. Já não é tão difícil entender por que Pável o aceitou como líder. 

“Deixe-me lhe dizer por que o trouxe aqui, Fiódor Mikhailovitch”, Nietcháiev começa. “No quarto ao lado temos uma prensa manual. Ilegal, é claro. O idiota que tem a chave saiu, infelizmente, apesar de ter prometido esperar aqui. Ofereço-lhe para usar a prensa antes de deixar Petersburgo. Seja o que o senhor queira dizer, podemos distribuir milhares de cópias em questão de horas. Em uma ocasião como esta, quando estamos à beira de grandes coisas, uma contribuição do senhor pode ter um efeito enorme. Seu nome é respeitado, especialmente entre estudantes. Se o senhor estiver disposto a escrever, com seu nome verdadeiro, a história de como seu enteado perdeu a vida, talvez os estudantes saiam às ruas em revolta.” Ele para de andar e o encara diretamente. “Sinto muito que Pável Isaev tenha morrido. Ele era um bom camarada. Mas não podemos olhar só para o passado. Devemos usar sua morte para acender uma chama. Ele concordaria comigo. Ele lhe pediria para fazer bom uso de sua raiva.” 

Enquanto diz essas palavras, parece se dar conta de que foi longe demais. Corrige-se, mas sem convicção. “Sua raiva e sua dor, quero dizer. Assim ele não terá morrido em vão.” 

Acender uma chama: é demais! Ele se vira para sair. Mas Nietcháiev o segura e puxa para trás. “O senhor ainda não pode sair!”, diz entre os dentes cerrados. “Como pode abandonar a Rússia e voltar para uma desprezível existência burguesa? Como pode ignorar um espetáculo como este”, ele acena com a mão, indicando o porão, “um espetáculo que pode ser multiplicado mil vezes, um milhão de vezes por este país? O que aconteceu com o senhor? Não lhe restou nenhuma centelha? Não vê o que está diante de seus olhos?” 

Ele se vira e examina o porão úmido. O que vê? Três crianças com frio, famintas, esperando o anjo da morte. “Vejo tão bem quanto você”, ele diz. “Até melhor.” 

“Não! O senhor acha que vê, mas não! Ver não é apenas questão de olhar, é uma questão de compreender corretamente. Tudo o que o senhor vê são as miseráveis circunstâncias materiais deste porão, no qual nem mesmo um rato ou uma barata deveriam ser condenados a viver. Vê três crianças patéticas e esfaimadas; se esperar, também verá a mãe delas, que para trazer para casa uma crosta de pão tem de se vender nas ruas. O senhor está vendo como vivem os mais pobres dos pobres de Petersburgo. Mas isso não é ver, isso é apenas um detalhe! O senhor não identifica as forças que determinam a vida a que estas pessoas estão condenadas! Forças: é para isso que o senhor é cego!” 

Com um dedo, ele desenha uma linha desde o chão a seus pés (inclina-se para tocar o chão, e seu dedo fica molhado), passando pela janela obscura até o céu. 

“As linhas terminam aqui, mas onde o senhor acha que começam? Começam nos ministérios, no tesouro, nas bolsas de valores e nos bancos mercantis. Começam nas chancelarias da Europa. As linhas de força começam lá e se irradiam em todas as direções, terminando em porões como este, nestas pobres vidas subterrâneas. Se o senhor escrevesse isso, realmente despertaria o mundo. Mas é claro que — ele dá uma risada amarga —, se escrevesse, não lhe permitiriam publicar. Eles o deixarão escrever histórias sobre o mudo sofrimento dos pobres, para tranquilizar seu coração, e o aplaudirão, mas a verdade real jamais o deixarão publicar. É por isso que estou lhe oferecendo esta prensa. Comece! Conte-lhes sobre seu enteado e por que ele foi sacrificado.” 

Sacrificado. Talvez sua mente tenha estado vagando, talvez ele esteja apenas cansado, mas não compreende como ou por quem Pável foi sacrificado. Tampouco se emociona com a veemência sobre as linhas. E não está disposto a ser repreendido. “Eu vejo o que vejo”, diz friamente. “Não vejo linha alguma.” 

“Então poderia muito bem continuar vendado! Quer que lhe dê uma aula? O senhor está perturbado pelo rosto hediondo da fome, da doença e da miséria. Mas a fome, a doença e a miséria não são o inimigo. São apenas formas em que as forças reais se manifestam no mundo. A fome não é uma força, é um meio, como a água é um meio. Os pobres vivem em sua fome como os peixes vivem na água. As forças reais têm origem nos centros de poder, no conluio de interesses que neles ocorre. O senhor me disse que tinha medo de que seu nome estivesse em nossas listas. Garanto-lhe mais uma vez, juro para o senhor, não está. Nossas listas indicam apenas as aranhas e as sanguessugas que estão no centro das teias. Quando essas aranhas e suas teias forem destruídas, crianças como estas ficarão livres. Em toda a Rússia as crianças poderão sair de seus porões. Haverá comida, roupas e casas, casas decentes para todos. E também haverá trabalho, muito trabalho! A primeira tarefa será demolir os bancos, as bolsas de valores, os ministérios, arrasá-los de maneira tão completa que jamais possam ser reconstruídos.” 

As crianças, que em princípio pareciam escutar, perderam o interesse. A menor escorregou de lado e dormiu no colo da irmã. A menina é mais jovem que Matryona, mas também, ele se espanta, mais apática, mais aquiescente. Já teria começado a dizer sim aos homens? 

Algo em sua observação silenciosa também parece estranho. Nietcháiev não falou com elas desde que chegou, ou deu qualquer sinal de conhecê-las. Espécimes da pobreza urbana — não passariam disso para ele? Quer que lhe dê uma aula? Ele se lembra do comentário malicioso da princesa Obolenskaya: que o jovem Nietcháiev quis ser professor, mas não passou nos exames e então se dedicou à revolução para vingar-se dos examinadores. Seria Nietcháiev apenas mais um coração pedagógico, como seu mentor Jean-Jacques? 

E as linhas. Ele ainda não tem certeza do que Nietcháiev quis dizer com “linhas”. Não é preciso que lhe digam que os banqueiros acumulam dinheiro, que a ambição faz o coração encolher. Mas Nietcháiev insiste em mais alguma coisa. O quê? Séries de números passando pela janela de papel e atingindo aquelas crianças em seus estômagos vazios? 

Sua cabeça começa a girar novamente. Dar-lhe uma aula. Ele respira fundo. “Tem cinco rublos?”, pergunta. 

Nietcháiev apalpa o bolso distraidamente. 

“Essa menina...”, ele mostra a criança. “Se você lhe der um bom banho, cortar seu cabelo e lhe puser um vestido novo, posso lhe indicar um estabelecimento onde esta noite, esta mesma noite, ela poderia lhe conseguir cem rublos por seu investimento de cinco. E se você a alimentar adequadamente, a mantiver limpa e não a usar demais ou deixar que adoeça, poderia continuar ganhando cinco rublos por noite durante cinco anos, pelo menos. Facilmente.” 

“O quê?...” 

“Escute-me. Há crianças suficientes nos porões de Petersburgo, e cavalheiros suficientes nas ruas, com dinheiro no bolso e atração por carne jovem, para trazer prosperidade a todos os pobres da cidade. Só é preciso ter cabeça fria. Nas costas de seus filhos, o povo dos porões poderia ser erguido à luz do dia.” 

“Qual é o sentido dessa parábola depravada?” 

“Eu não falo em parábolas. Como você, sinto-me ultrajado pelo sofrimento dos inocentes. Não o estou enganando, Serguei Gennadevitch. Durante muito tempo não pude acreditar que meu filho fosse seu seguidor. Agora começo a compreender o que ele viu em você. Você nasceu com o espírito da justiça, e ele ainda não foi sufocado. Tenho certeza de que se essa criança, essa garotinha, fosse atraída para um beco por um dos libertinos de Petersburgo, e você os encontrasse, se a estivesse vigiando, por exemplo, não hesitaria em cravar uma faca nas costas do homem para salvá-la. Ou, se fosse tarde demais para salvá-la, pelo menos para vingá-la. 

“Isto não é uma parábola: é uma história sobre as crianças e suas utilidades. Com a ajuda de uma criança, as ruas de Petersburgo poderiam se livrar de uma sanguessuga, talvez até de um banqueiro sanguessuga. E no devido tempo a esposa e os filhos do morto também poderiam acabar nas ruas, provocando assim uma nova medida de nivelamento.” 

“Seu porco!” 

“Não, você está me interpretando mal na história. Não sou o porco, não sou o homem que é esfaqueado como um porco no beco. Volto a dizer: não é uma parábola, mas uma história. Histórias podem versar sobre outras pessoas: você não é obrigado a encontrar nelas um lugar para si mesmo. Mas se o espírito da justiça não lhe permite ignorar o sofrimento de crianças inocentes, mesmo em histórias, há várias outras maneiras de punir as aranhas que as atacam. Não é necessário ser criança, por exemplo, para atrair um homem para um beco escuro. Basta raspar a barba, empoar o rosto, pôr um vestido e ter o cuidado de ficar na sombra.” 

Então Nietcháiev sorri, ou melhor, range os dentes. “Isto parece saído de um livro! É tudo parte do seu perverso faz-de-conta.” 

“Talvez. Mas ainda tenho uma pergunta a fazer. Hoje você tem liberdade para se disfarçar e ser quem você quiser, seguir os desígnios do espírito de justiça (espírito que, acredito, ainda habita seu coração). Qual será a situação amanhã, quando a tempestade da Vingança do Povo terminar seu trabalho e todos estiverem nivelados? Você ainda estará livre para ser quem desejar? Cada um de nós estará finalmente livre para ser quem desejar?” 

“Não haverá mais necessidade disso.” 

“Necessidade de se fantasiar? Nem mesmo no carnaval?” 

“Que conversa estúpida. Não haverá necessidade de carnaval.” 

“Nada de carnaval? Nem de feriados?” 

“Haverá dias de recreação. As pessoas terão a opção de descansar ou ir para o campo ajudar na colheita.” 

“Sim, já ouvi falar na época da colheita. Sem dúvida cantaremos enquanto trabalhamos. Mas volto à minha pergunta. E eu, qual é meu lugar na sua utopia? Ainda terei permissão para me vestir de mulher, se o espírito me invadir, ou como um jovem de terno branco, ou terei permissão para apenas um nome, um endereço, uma idade, uma filiação?” 

“Não sou eu quem vai lhe dizer. O povo lhe dará a resposta. O povo lhe dirá o que é permitido.” 

“Mas o que diz você, Serguei Gennadevitch? Pois se você não é alguém do povo, quem é e que futuro terá? Ainda terei a liberdade de passar-me por quem quer que eu deseje, por um rapaz, por exemplo, que passa as horas vagas ditando listas de pessoas de quem não gosta, e inventando punições sanguinolentas para elas, ou como o vendedor cuja função é encomendar serragem para pôr sob a guilhotina? Terei essa liberdade? Ou devo ter em mente o que o ouvi dizer em Genebra: que se tivéssemos Copérnicos suficientes, que se surgisse outro Copérnico, deveriam lhe arrancar os olhos?” 

“O senhor está louco. O senhor não é Copérnico.” 

“Tem razão, não sou Copérnico. Quando olho para o céu vejo apenas as estrelas que nos observavam quando nascemos e nos vigiarão quando morrermos, por mais que nos disfarcemos, por mais profundos que sejam os porões onde nos escondermos.” 

“Não estou me escondendo. Simplesmente me fundi com as pessoas invisíveis desta cidade e com as condições que me produziram. Só que o senhor não consegue ver essas condições.” 

“Posso ser franco? Você está dizendo absurdos. Talvez eu não veja linhas e números no céu, mas não sou cego.” 

“O pior cego é aquele que não quer ver! O senhor vê crianças esfaimadas num porão; recusa-se a ver o que determina as condições de vida dessas crianças. Como pode chamar isso de ver? Mas, é claro, o senhor e as pessoas que lhe pagam têm interesse em crianças famintas, de olhos vazios. É sobre isso que o senhor e elas gostam de ler: crianças tristes, de olhar vazio e vozinhas pipiantes. Bem, vou lhe contar a verdade sobre a fome. Quando olham para o senhor, sabe o que essas crianças de olhar vazio veem? Pergunte a elas! Vou lhe dizer. Veem caras gordas e uma língua suculenta. Esses inocentes cairiam como ratos sobre o senhor e o devorariam se não soubessem que é bastante forte para derrotá-las. Mas o senhor prefere não reconhecer isso. Prefere ver três anjinhos numa breve visita à Terra. 

“Quanto mais falo com o senhor, Fiódor Mikhailovitch, menos entendo como pode ter escrito sobre Raskolnikov. Raskolnikov pelo menos estava vivo, até sucumbir à febre ou fosse o que fosse. Sabe como o vejo agora? Como um cavalo velho com viseiras, andando em círculos, empurrando a mesma velha história todos os dias. Que direito tem de me falar sobre disfarces? O senhor não conseguiria disfarçar-se para salvar sua vida. Não passa de um velho ressecado, um cavalo velho e seco no fim da vida. Não é hora de tentar compartilhar a existência dos oprimidos, em vez de sentar-se em casa escrevendo sobre eles e contando seu dinheiro? Mas vejo que está começando a se impacientar. Suponho que queira correr para casa e colocar este porão e estas crianças num caderno antes que a memória falhe. O senhor me enoja!” 

Ele faz uma pausa, aproxima-se, espia. “Fui longe demais, Fiódor Mikhailovitch?”, continua mais suavemente. “Estou ultrapassando os limites da decência, revelando o que não deve ser revelado, que enxergamos através do senhor, todos nós, e também seu enteado? Por que esse silêncio? A faca chegou muito perto do osso?” Ele tira o cachecol do bolso. “Devemos colocar novamente a venda?” 

Perto do osso? Sim, talvez. Não a acusação em si, mas a voz que ele escuta por trás dela: a de Pável. Pável queixando-se a seu amigo, e seu amigo guardando as palavras como veneno. 

Desanimado, ele afasta o cachecol. “Por que está tentando me provocar?”, indaga. “Não me trouxe aqui para me mostrar sua prensa, ou para me mostrar crianças esfaimadas. São apenas pretextos. O que quer realmente de mim? Quer me deixar furioso a ponto de sair e entregá-lo à polícia? Por que não deixou Petersburgo? Em vez de fugir como uma pessoa sensata, comporta-se como Jesus diante de Jerusalém, esperando pela chegada de um asno para entregá-lo nas mãos de seus perseguidores. Está querendo que eu faça o papel do asno? Imagina-se um príncipe escondido, o príncipe e o mártir, esperando ser chamado. Quer roubar a Páscoa de Jesus. Esta é a segunda vez que me tenta, e não estou tentado.” 

“Pare de mudar de assunto! Estamos falando sobre a Rússia, não sobre Jesus. E pare de tentar me culpar. Se me trair, será apenas porque me odeia.” 

“Eu não o odeio. Não tenho motivos para isso.” 

“Sim, tem! Quer vingar-se de mim porque eu abro os olhos das pessoas para o que o senhor realmente é, o senhor e sua geração.” 

“E como somos realmente, eu e minha geração?” 

“Vou lhe dizer. Seu tempo terminou. Só que, em vez de sair tranquilamente de cena, querem arrastar o mundo inteiro consigo. Ressentem-se porque as rédeas estão passando às mãos de homens mais jovens e mais fortes, que farão um mundo melhor. É assim que vocês são na verdade. E não me venha com a história de que o senhor foi um revolucionário mandado para a Sibéria por causa de suas opiniões. Sei com certeza que mesmo na Sibéria o senhor foi tratado como um aristocrata. Não partilhou os sofrimentos do povo, foi tudo uma farsa. Vocês, velhos, me enojam! No dia em que eu fizer trinta e cinco anos, darei um tiro na cabeça, juro!” 

Essas últimas palavras saíram com uma força tão petulante que ele não consegue evitar um sorriso; o próprio Nietcháiev fica rubro de surpresa. 

“Espero que até lá tenha a oportunidade de ser pai, para que saiba como é beber deste cálice.” 

“Nunca serei pai”, Nietcháiev murmura. 

“Como sabe? Não pode ter certeza. Tudo o que o homem faz é plantar a semente; depois disso ela tem vida própria.” 

Nietcháiev sacode a cabeça decididamente. O que ele quer dizer? Que não planta sua semente? Que fez votos de castidade, como Jesus? 

“É impossível ter certeza”, ele repete suavemente. “A semente torna-se filho, o príncipe torna-se rei. Quando um dia você se sentar no trono (se ainda não tiver estourado seus miolos), e a Terra estiver cheia de principezinhos, escondidos em porões, tramando contra você, o que vai fazer? Enviar soldados para decepar a cabeça deles?” 

Nietcháiev sorri com desdém. “Está tentando me enraivecer com suas parábolas idiotas. Sei sobre seu próprio pai. Pável Isaev me contou que era um tirano mesquinho, que todos o odiavam, até que seus próprios camponeses o mataram. O senhor acha que porque o senhor e seu pai se odiavam a história do mundo consiste apenas em pais e filhos que guerreiam entre si. Não entende o significado da revolução. Revolução é o fim de tudo o que é velho, incluindo pais e filhos. É o fim das heranças e dinastias, e continua se renovando, se for a verdadeira revolução. A cada geração a velha revolução é superada e a história recomeça. Essa é a ideia nova, a verdadeira ideia nova. Ano Um. Carte blanche. Quando tudo é reinventado, tudo apagado e renascido: lei, moral, família, tudo. Quando todos os prisioneiros são libertados, todos os crimes perdoados. A ideia é tão tremenda que vocês não conseguem entender, o senhor e sua geração. Ou melhor, compreendem-na bem demais e querem sufocá-la no berço.” 

“E o dinheiro? Quando você perdoar os crimes, redistribuirá o dinheiro?” 

“Faremos mais que isso. De tempos em tempos, quando as pessoas menos esperarem, declararemos inválido o dinheiro existente e imprimiremos um novo. Esse foi o erro dos franceses: permitir que o antigo dinheiro continuasse circulando. Os franceses não fizeram uma verdadeira revolução porque não tiveram a coragem de ir até o fim. Livraram-se dos aristocratas, mas não eliminaram a antiga maneira de pensar. Em nossas escolas ensinaremos o modo de pensar do povo, que foi reprimido todo esse tempo. Todos voltarão à escola, até mesmo os professores. Os camponeses serão professores e os professores serão alunos. Em nossas escolas formaremos novos homens e novas mulheres. Todos renascerão com um novo coração.” 

“E Deus? O que Deus pensará disso?” 

O rapaz dá uma risada de puro prazer. 

“Deus? Deus terá inveja.” 

“Então acreditam nisso?” 

“É claro que acreditamos! Senão, de que valeria? Bastaria incendiar tudo, transformar o mundo em cinzas. Não; nós iremos até Deus, nos colocaremos diante de seu trono e o dispensaremos. E ele virá! Ele não terá alternativa, terá de escutar. Então estaremos todos juntos, finalmente em condições de igualdade.” 

“E os anjos?” 

“Os anjos ficarão à nossa volta em círculos, cantando hosanas. Os anjos estarão em êxtase. Também serão libertados, para andar pela Terra como gente comum.” 

“E as almas dos mortos?” 

“O senhor faz tantas perguntas! As almas dos mortos também, Fiódor Mikhailovitch, se quiser. Teremos as almas dos mortos caminhando novamente pela Terra. Pável Isaev também, se quiser. Não há limites para o que pode ser feito.” 

Que charlatão! Mas ele não sabe mais quem está no comando, se ele está brincando com Nietcháiev ou Nietcháiev com ele. Todas as barreiras parecem estar desmoronando ao mesmo tempo: a barreira das lágrimas, a barreira do riso. Se Anna Serguêievna estivesse ali — o pensamento surge espontaneamente —, poderia lhe dizer as palavras que faltaram todo esse tempo. 

Ele dá um passo à frente, e com uma força que parece a de um gigante abraça Nietcháiev. Puxando o rapaz, prendendo seus braços ao lado do corpo, aspirando o cheiro acre de sua pele furunculosa, ele o beija nas faces esquerda e direita. Tocando-se os quadris e os peitos, continua a abraçá-lo. 

Há um ruído de passos na escada. Nietcháiev se desprende. “Então chegaram!”, exclama. Seus olhos brilham em triunfo. Ele se volta. Na entrada está uma mulher vestida de preto, com um discrepante chapeuzinho branco. Na luz difusa, através das lágrimas, ele não consegue definir sua idade. 

Nietcháiev parece desapontado. “Ah!”, diz. “Desculpe-nos! Entre!” 

Mas a mulher continua onde está. Debaixo do braço traz algo embrulhado num pano branco. O nariz das crianças é mais aguçado que o dele. De repente, sem dizer palavra, elas descem da cama e passam pelos dois homens. A garota abre o pano e o cheiro de pão fresco invade o quarto. Sem uma palavra, ela parte pedaços e os coloca nas mãos de seus irmãos. Encostadas à saia da mãe, com os olhos vagos, elas mastigam. Como animais, ele pensa: sabem de onde vem a comida e não se importam.  



(O mestre de Petersburgo; tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves) 



(Ilustração: Debora Arango (1907-2005), lunch of the poor)