O espaço da criação literária nos oferece uma excelente possibilidade de estabelecer um olhar distanciado e crítico sobre as breves certezas da ciência e dos saberes e normas, em vários momentos e espaços históricos.
Cabe lembrar que, a partir do Renascimento, a razão ocidental dá início, entre outros elementos e características, à construção da ciência e da literatura como as conhecemos hoje. Especificamente, o conhecimento científico fruto do desencantamento do mundo surge no mesmo momento que o romance europeu, uma forma literária com uma marcada influência da noção de sujeito desenvolvida na cultura européia pós-quinhentista.
Esta perspectiva de apreensão crítica do mundo e da ciência pela literatura pode ser percebida, por exemplo, no Quixote de Cervantes, cuja temática satiriza as supostas fronteiras dos mundos da razão e desrazão. Assim fica claro que a literatura reflete sobre o sujeito e seus destinos, os indivíduos e suas características ou, se preferirem, sobre suas identidades e vicissitudes. De um modo geral, a arte pode oferecer um rico contraponto às verdades científicas, permitindo relativizá-las, abandoná-las ou superá-las.
Faz-se necessário mencionar também que a criação literária nem sempre representa libertação ou transcendência. Há momentos históricos em que a literatura mimetiza e idolatra o universo da ciência, reforçando-o ideologicamente como, por exemplo, o movimento naturalista na literatura, ocorrido na segunda metade do século XIX. Não por acaso, este foi um dos momentos da história em que a ciência se impõe como verdade absoluta e triunfante no espaço da razão ocidental, destacando-se a preponderância e influência das assertivas da biologia e da medicina nesse contexto.
Apresentamos a seguir uma pequena seleção de textos curtos de autores brasileiros, trazendo uma pequena mostra deste universo criativo em contraponto ao mundo mais árido e rigoroso da ciência. Esta mostra evidentemente não pretende esgotar o tema, mas apenas ilustrá-lo, optando-se pela escolha de fragmentos textuais menos conhecidos ou menos acessíveis, de diferentes épocas e contextos sociais, de autores que apresentaram em comum o terem se havido com as questões da normalidade e da loucura de modo explícito.
Iniciamos com extrato de crônica semanal de Machado de Assis, da última década do século XIX, a qual confirma o interesse permanente e o olhar arguto deste grande autor por e sobre a temática da loucura e suas fronteiras com a dita normalidade.
Em seguida, de Afonso Henriques de Lima Barreto, autor de rara visada crítica sobre a sociedade brasileira de seu tempo (primeiras décadas do século XX), e que conviveu desde pequeno com o ambiente das colônias de alienados, em que seu pai trabalhou como funcionário, além de ter passado pela marcante experiência de sua internação no Hospício Nacional em decorrência de abuso de álcool, transcrevemos um relato afilado e tocante deste período de reclusão.
A partir dos anos 50, destaca-se a obra de Maura Lopes Cançado, contista mineira que passou boa parte de sua vida internada em instituições psiquiátricas no Rio de Janeiro. Percebe-se o seu agudo olhar crítico sobre as instituições psiquiátricas, que posteriormente viriam a ser alvo de crítica sistemática pelos protagonistas dos movimentos de reforma psiquiátrica.
Por fim, entre os autores que emergem nos anos 70, marcados pela penetração das idéias anti-psiquiátricas em voga na época, selecionamos amostras de uma narrativa de Lucienne Samôr, autora mineira marcada pela dura experiência de sua reclusão em prisão e hospital psiquiátrico, que vale ser transcrito tanto por suas qualidades intrínsecas como por sua circulação quase à margem do sistema editorial dominante.
Como conclusão, cabe ainda apontar o incomensurável potencial que os espaços da criação, que se realizam com e pelas palavras, podem oferecer no plano de expressão das emoções e de conquista de liberdade.
Vejamos então os fragmentos textuais destes autores.
FUGA DO HOSPÍCIO
Machado de Assis
"(...) A fuga dos doidos do hospício é mais grave do que pode parecer à primeira vista. (...) Ou confiança nas leis, ou confiança nos homens, era convicção minha de que se podia viver tranqüilo fora do Hospício dos Alienados. No bonde, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta em dizer histórias extravagantes e opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos involuntariamente, e o interlocutor, supondo que era admiração, arregalava também os seus, e aumentava o desconcerto do discurso. Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Todas as histórias são possíveis, todas as opiniões respeitáveis. Quando o interlocutor, para melhor incutir uma idéia ou fato, me apertava muito o braço ou me puxava com força pela gola, longe de atribuir o gesto a simples loucura transitória, acreditava que era um modo particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me depressa dos fatos e das opiniões, não só por ter os braços mui sensíveis como porque não é com dois vinténs que um homem se veste neste tempo."
"(...) Agora, porém, que fugiram doidos do hospício e que outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora já o terão conseguido), perdi aquela antiga confiança que fazia ouvir tranqüilamente discursos e notícias."
"(...) Uma vez que se foge do hospício dos alienados (e não acuso por isso a administração), aonde acharei método para distinguir um louco de um homem de juízo? De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos. A própria pessoa, ou para dar mais claro exemplo, o próprio leitor deve desconfiar de si. (...) É sabido que a demência dá ao enfermo a visão de um estado estranho e contrário à realidade. Que saiu esta madrugada de um baile? Mas os outros convidados, os próprios noivos que saberão de si? Podem ser seus companheiros de Praia Vermelha. Este é o meu terror. O juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese."(ASSIS: 1994, 121-123)
DIÁRIO DO HOSPÍCIO
Lima Barreto
"(...) Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão."
"(...) Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quantos anos nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei porque não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério ¬ que mistério ¬ que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele. Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e na crendice do Hospício. Creio que ele não gostou."
"(...) Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só.
Há os que deliram; há os que se concentram num mutismo absoluto. Há também os que a moléstia mental faz perder a fala ou quase isso. Quando menino, muito vi loucos e, quando estudante, muito conversei com os outros que essas coisas de sandice estudavam sobre eles, mas, pela observação direta e pelo que li e ouvi dos entendidos, percebi bem a perplexidade deles em face de tão angustioso problema de nossa natureza. Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele; há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes observações, mas uma explicação da loucura não há."
"(...) Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente pueris. Todo o problema da origem é sempre insolúvel; mas não queria já que determinassem a origem, sem explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até hoje tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode."(BARRETO: 1993, 23-25, 39-40)
HOSPÍCIO É DEUS
Maura Lopes Cançado
"(...) O que me assombra na loucura é a distância ¬ os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim. Que mais? Morrer é imundo e humilhante. O morto é náuseo, e se observado, acusa alto a falta do que o distinguia. A morte anarquiza com toda dignidade do homem. Morrer é ser exposto aos cães covardemente. Conquanto nos dois estados encontro pontos de contato ¬ o principal é a distância. Ainda que só diante do louco tenha experimentado a sensação de eternidade. Nele não encontramos a falta. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de vibração. Junto dele estamos sós. Não sabendo situá-lo fica-se em dúvida: onde se acha a solidão? O louco é divino, na minha tentativa fraca e angustiante de compreensão. É eterno."
"(...) Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue ¬ e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro ¬ como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde ¬ paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o que, porque Hospício é deus."
"(...) Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade ¬ talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém ¬ parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. Isto talvez não tenha a mínima importância. Mas e eu? Serei obrigada a repetir sempre que não sei? É verdade: "NÃO SEI". Estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. É terrível, deus. Terrível.(...) Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhidas sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis emprestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. É hospício, deus ¬ e tenho frio." (CANÇADO: 1979, 28-30, 33-34)
ALA LATERAL
Lucienne Samôr
"(...) O meu maior erro foi ter nascido depois da morte de Sigmund Freud. Havia rompido relações comigo mesmo e não sabia porque o espelho me era indiferente. Pouco a pouco, quando comecei a compreender a minha insensibilidade é que realmente nasci e a luz brilhou revelando-me o escuro abismo."
"(...) Houve tempo em que até andava pela casa, divertindo a todos, falando em Sigmund Freud. E todos diziam acreditar nele e os seus olhos tomavam um brilho novo e falavam no Sigmund Freud como se ele fosse chegar a qualquer momento.(...) Quando Sigmund Freud chegar, entrar por aquela porta, logo perguntará por mim e eu vou rir da estupidez deles. Vale a pena viver para esperar esse dia. Mas eu falei em morrer?"
"(...) Tenho medo, sabe, medo do que eles farão comigo. Outro dia fiquei sabendo que irão dar o meu cérebro para os cientistas estudarem. Não quero, não quero. Gritei isso para eles e não responderam nada. Não me levam a sério, por isso até fecharam os portões pra eu não falar com ninguém, inclusive pra não dizer que Sigmund Freud está viajando pra cá. Preciso fazer uma roupa nova, um terno sóbrio. Sim: sóbrio - para não espantar Sigmund Freud. Preciso ser discreto e ter paciência e não dizer tudo a ele de uma só vez. Sigmund Freud vai compreender e até vai me olhar com aquele olhar de compreensão. Ficarei calado. Depois direi tudo a ele e então tomará as providências necessárias. Sim, há providências necessárias a tomar - é importante. Por enquanto eu fico calado. Quero pegá-los desprevenidos. A surpresa é que é o essencial. Depois, bem, depois serei complacente porque não sou ruim. Eles me olharão e agradecerão a minha benevolência."
"(...) Hoje notei maior movimento na porta do quarto. Será que Sigmund Freud chegou e eles escondem isso de mim? É bem capaz. Bando de canalhas! Bois! Animais! Abram a porta, abram a porta, miseráveis! Sigmund Freud veio para me ver - ouviram - PARA ME VER! - o que é isso? Que gritaria é essa? Não se façam de desentendidos, eu sei muito bem que Sigmund Freud chegou. Os passos se arrastam depressa e depressa todos se agrupam. As vozes de timbre cada vez mais forte emitem ecos. Eles se mexem, se agitam, correm pelos corredores, descem e sobem escadas e eu não entendo nada. Dou um murro na porta com o punho fechado: - SIGMUND FREUD, como está VIENA, o senhor VALSEIA? Olha, a valsa não é privilégio nosso, o senhor há de desculpar, mas a nossa cultura está em déficit. Sabe? O lugar comum está tomando conta de tudo rapidamente. Desculpe a falta da VALSA. Aliás, o senhor veio foi para me ver, conversar comigo, me aconselhar como um amigo, não foi? Pois, olha: estou à sua espera há tanto tempo que perdi a conta ou esqueci de contar - esses lapsos são comuns em mim, mas não irão impressionar ao senhor, eu sei. Por isso é bom a gente ter um amigo: um amigo assim igual ao senhor substitui qualquer mulher. Mas por que esse barulho, essa agitação febril, esse telefone que sempre tilinta, esses ruídos surdos, disfarçados, esse barulho de ferros caindo num balde? Sigmund, está ouvindo? SIGMUND! Patife! Está me ouvindo ou está com eles? Eles não vão deixar o senhor falar, não vão - entende? Vem aqui que eu explico tudo; eu tenho tanta coisa para explicar: é preciso também que me expliquem muita coisa. Não sei porque quando vem gente aqui, dizem que eu fico na ala lateral; desde ontem que não vejo o sol porque joguei o prato de comida na cara da mulher. Sabe, Sigmund, aqui faz muito frio, é igual a VIENA". (SAMÔR:1975, 105-107, 113-115)
Referências bibliográficas:
1-Machado de Assis. "Fuga do Hospício". In: Crônicas Escolhidas. Ed. Ática, São Paulo, 1994.
2-Lima Barreto. Diário do Hospício. Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993.
3- Cançado, Maura Lopes. Hospício é Deus. Ed. Record, Rio de Janeiro, 1979.
4- Samôr, Lucienne. "Ala Lateral". In: O Olho Insano. Ed. Interlivros, Belo Horizonte, 1975.
(Ilustração: Honoré Daumier - Sancho and Don Quixote)