Numa manhã de abril, acordei meio fissurado. Fiquei ali deitado, observando as sombras no teto de estuque branco. Me lembrei de um tempo muito remoto, quando eu deitava ao lado da minha mãe e ficava olhando as luzes da rua deslizarem do teto pras paredes. Senti uma saudade aguda dos apitos de trem, do som de piano ecoando na rua, de folhas secas.
Fissura de junk, quando moderada, sempre me traz de volta a magia da infância. “Nunca falha”, pensei. “É que nem um pico. Será que os outros junkies também curtem essa maravilha?”
Fui ao banheiro tomar um pico. Há tempos andava espetando a mesma veia. A agulha entupiu duas vezes. O sangue escorria pelo meu braço. O junk se espalhou pelo meu corpo, uma injeção de morte. O sonho acabara. Fiquei olhando o sangue escorrer do cotovelo pro pulso. Senti uma súbita compaixão pelas veias e tecidos violados. Enxuguei com carinho o sangue do meu braço.
— Vou cair fora disto — eu disse em voz alta.
Preparei uma solução de ópio e pedi ao Ike pra não aparecer por uns dias. Ele disse: — Tomara que você consiga, garoto. Tomara que você caia mesmo fora. Quero ficar paralítico se não estiver sendo sincero.
Em quarenta e oito horas a provisão de morfina no meu corpo se exauriu. A solução que eu havia preparado mal dava pra controlar a fissura. Tomei tudo, com duas pastilhas de nembutal, e dormi várias horas. Quando acordei, minha roupa estava empapada de suor. Meus olhos lacrimejavam e ardiam. O corpo todo estava dolorido e sensível. Me virei na cama, arqueando as costas e esticando pernas e braços. Daí, puxei as pernas e os joelhos e enfiei as mãos unidas entre as coxas. A pressão das mãos disparou o gatilho tênue de um orgasmo típico da fissura. Levantei e fui trocar de cueca.
Ainda tinha um pouco de ópio no fundo da garrafa. Dei um último gole e saí pra comprar quatro tubos de tabletes de codeína. Tomei a codeína com chá quente e me senti melhor.
Ike disse: — Você está indo rápido demais. Me deixa preparar uma solução pra você. — Eu o ouvia na cozinha, irradiando o processo: — Um pouquinho de canela, pro caso dele começar a vomitar… um pouco de salva pra caganeira… uns cravos pra limpar o sangue…
Eu nunca tinha provado nada tão ruim. Mas a beberagem baixou minha fissura a um nível tolerável e com isso eu me sentia meio de barato o tempo todo. Não era um barato de ópio; era um barato da privação. Junk é uma inoculação de morte que mantém o corpo em estado de emergência. Quando se suspende o junk, a emergência continua. As sensações se aguçam, o viciado adquire consciência dos seus trâmites viscerais num grau nada confortável, o movimento peristáltico torna-se incontrolável. Seja qual for a sua idade, o viciado em processo de desintoxicação se sujeita aos excessos emocionais de uma criança ou adolescente.
Depois de engolir por três dias a beberagem do Ike, caí no álcool. Eu nunca bebia quando estava no junk ou na fissura de junk. Porém, beber ópio é diferente de se aplicar o pozinho branco. Dá pra misturar ópio e bebida.
No começo, eu só bebia depois das cinco da tarde. Uma semana mais tarde, eu já estava bebendo às oito da manhã; passava o dia e a noite bêbado, e amanhecia de porre no dia seguinte.
Toda manhã, ao acordar, eu mandava ver benzedrina, sanicin e uma pedrinha de ópio, com café preto e um trago de tequila. Daí, deitava de novo e tentava reconstituir a noite anterior, e o dia também. Em geral, me dava um branco a partir do meio-dia. Às vezes, a gente acorda de um sonho e pensa: “Meu Deus, será que eu fiz mesmo isso?”. A fronteira entre o dizer e o pensar se torna ambígua. “Eu falei aquilo ou só pensei?”.
Não é comum um junky largar o bagulho por decisão própria. Eu nunca tinha largado antes, a não ser quando não conseguia nenhum tipo de junk e tinha que jogar a toalha. Ninguém consegue se rebaixar tanto quanto um junky que se curou sozinho.
Depois de dez dias de tratamento, minha deterioração era chocante. Minha roupa estava toda manchada e espessa, de tanta bebida derramada. Nunca tomava banho. Perdi peso, minhas mãos tremiam, andava derrubando coisas, tropeçando em cadeiras e levando tombos. Mas parecia ter energia e capacidade ilimitadas para encarar o bebum, o que nunca acontecera antes. Minhas emoções estavam estilhaçadas. Tive um acesso de sociabilidade incontrolável, que me levou a conversar com qualquer um em quem eu pudesse grudar. Fazia confissões íntimas desagradáveis a pessoas totalmente estranhas. Fazia, às vezes, propostas sexuais na lata a pessoas que não haviam demonstrado nenhum sinal de reciprocidade.
A cada tantos dias, Ike aparecia. — Tô contente de ver que você tá abandonando o junk, Bill. Quero ficar paralítico se não estiver dizendo a verdade. Mas, se você ficar muito fissurado e começar a vomitar, olha aqui cinco centigramas de morfina.
Ike não via com bons olhos minhas bebedeiras. — Você tá bebendo bem, hein? Tá ficando pirado, cara. Olha só a tua cara: horrível. Melhor voltar aos bagulhos do que beber desse jeito.
(Junky; tradução Companhia das Letras)
(Ilustração: Christiaan Tonnis ~ William S. Burroughs)
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