O terminal ferroviário no qual chegam os trens provenientes da Finlândia é hoje em dia um prediozinho de estuque mal conservado, de um cinzento cor de borracha e um tom de rosa sujo, com um galpão para trens sustentado por colunas finas que se ramificam ao encostarem no teto. Por um dos lados os trens chegam; no outro ficam as portas que dão para as salas de espera, o restaurante e o depósito de bagagens. É um prédio, cujo tamanho e forma seriam considerados, em qualquer país europeu mais moderno, apropriados para uma cidade de província e não para os esplendores de uma capital; porém, com seus bancos desgastados pelos muitos passageiros que neles esperaram, seus bolos e pães expostos com etiquetas em vitrines, é uma típica pequena estação ferroviária europeia, com aquela mesmice que caracteriza todas as instituições úteis que se espalharam por todos os lugares onde impera a classe média. Hoje em dia, as camponesas, com seus embrulhos e cestas e lenços amarrados na cabeça, esperam sentadas nos bancos, pacientes. Mas na época sobre a qual estou escrevendo, havia uma sala especial, com banheiro, reservada para o czar, e foi para lá que os camaradas que receberam Lenin o levaram quando seu trem chegou, tarde da noite, no dia 16 de abril. Na plataforma, ele fora recebido por homens que haviam saído de prisões ou voltado do exílio, em cujas faces escorriam lágrimas. Um socialista não bolchevique, N. Sukhanov, nos deixou um relato em primeira mão da chegada de Lenin. Ele entrou quase correndo na sala do czar.
Seu casaco estava desabotoado; seu rosto parecia congelado; carregava um grande buquê de rosas que havia acabado de receber. Ao defrontar-se com o menchevique Tchkheidze, presidente do Soviete de Petrogrado, parou de repente, como se esbarrasse num obstáculo inesperado. Tchkheidze, mantendo a expressão contrariada com a qual havia esperado a chegada de Lenin, dirigiu-se a ele no tom sentencioso de quem faz um discurso de boas-vindas convencional. Disse ele: “Camarada Lenin, em nome do Soviete de Petrogrado e de toda a revolução, damos-lhe as boas-vindas à Rússia... porém consideramos que no momento atual a principal tarefa da democracia revolucionária é defender nossa revolução contra todo tipo de ataque, tanto interno quanto externo. (...) Esperamos que você colabore conosco no sentido de trabalhar para este fim”. Segundo Sukhanov , Lenin ficou parado, “com uma expressão no rosto que parecia indicar que o que estava ocorrendo alguns metros a sua frente nada tinha a ver com ele; olhava de um lado para o outro; corria a vista pelo público a seu redor, e chegou mesmo a examinar o teto da ‘sala do czar’, ao mesmo tempo em que endireitava o buquê em suas mãos (o qual destoava bastante de sua figura)”. Por fim, desviando o rosto do comitê e sem responder diretamente ao discurso, dirigiu-se à multidão: “Caros camaradas, soldados, marinheiros e trabalhadores, tenho o prazer de congratulá-los pela vitória da revolução russa, saudá-los como a vanguarda do exército proletário internacional. (...) A guerra do banditismo imperialista é o começo da guerra civil na Europa. (...) Não tarda a hora em que, atendendo ao chamado de nosso camarada Karl Liebknecht, o povo apontará suas armas para os exploradores capitalistas. (...) Na Alemanha, tudo já está fermentando! Não hoje, mas amanhã, qualquer dia, pode ocorrer o colapso geral do capitalismo europeu. A revolução russa que vocês realizaram deu o golpe inicial e inaugurou uma nova era (...) Viva a Revolução Social Internacional!” Saiu da sala. Lá fora, na plataforma, um oficial aproximou-se e bateu continência. Lenin, surpreso, retribuiu a continência. O oficial deu a ordem, e um destacamento de marinheiros com baionetas ficou em posição de sentido. Holofotes iluminavam o local, e bandas tocavam a “Marselhesa”. Uma grande aclamação brotou de uma multidão que se formava ao redor da plataforma. “O que é isso?”, perguntou Lenin, dando um passo atrás. Disseram-lhe que eram as boas-vindas dos trabalhadores e marinheiros revolucionários: haviam gritado a palavra “Lenin”. Os marinheiros apresentaram armas, e seu comandante apresentou-se a Lenin. Cochicharam-lhe que queriam ouvi-lo falar. Lenin deu alguns passos e tirou o chapéu-coco. Começou: “Camaradas marinheiros, eu os saúdo sem saber ainda se vocês têm acreditado ou não em todas as promessas do Governo Provisório. Porém estou certo de que, quando eles lhes falam com palavras açucaradas, quando prometem mundos e fundos, estão enganando a vocês e a todo o povo russo. O povo precisa de paz; o povo precisa de pão; o povo precisa de terra. E eles lhes dão guerra, fome, nada de pão — deixam os proprietários continuarem controlando a terra. (...) Precisamos lutar pela revolução social, lutar até o fim, até a vitória completa do proletariado. Viva a revolução social mundial!”. “Foi extraordinário!”, afirma Sukhanov. “Para nós, que estávamos incessantemente ocupados, totalmente imersos no trabalho cotidiano da revolução, as necessidades do dia a dia, as coisas imediatamente urgentes que se tornam invisíveis ‘na história’”, foi como se uma luz deslumbrante se acendesse de repente. “A voz de Lenin, emergindo diretamente do vagão do trem, era uma ‘voz de fora’. Sobre nós, no meio da revolução, explodiu — a verdade, de modo algum dissonante, de modo algum violando seu contexto, porém uma nota nova, brusca, algo estonteante.” Foram surpreendidos pela consciência de “que Lenin estava inegavelmente com razão, não apenas ao nos afirmar que havia iniciado a revolução socialista mundial, não apenas ao ressaltar o vínculo indissolúvel entre a guerra mundial e o colapso do sistema imperialista, mas também ao enfatizar e destacar a própria ‘revolução mundial’, insistindo que deveríamos nos orientar por ela, e avaliar em termos dela todos os eventos da história contemporânea”. Tudo isso eles compreendiam agora, era inquestionável; porém o que não sabiam era se Lenin sabia de que modo essas ideias podiam ser postas em prática na política da revolução. Teria ele um conhecimento real da situação da Rússia? Mas no momento isso não importava. Tudo era tão extraordinário! A multidão carregou Lenin nos ombros até um dos carros blindados que aguardavam fora da estação. O Governo Provisório, que havia feito o possível no sentido de impedir a formação de multidões nas ruas, havia proibido a utilização desses carros, que se podiam transformar em fatores decisivos numa manifestação de massa; porém os bolcheviques não se importaram com a proibição. Lenin teve que fazer mais um discurso, em pé, sobre o carro blindado. A praça à frente da estação ficou abarrotada de gente: eram trabalhadores da indústria têxtil, metalúrgicos, soldados e marinheiros de origem camponesa. Não havia luz elétrica na praça, mas os holofotes iluminavam bandeiras vermelhas com dizeres em ouro. O carro blindado partiu da estação acompanhado de um séquito. Os outros carros diminuíram suas luzes para destacar as do carro de Lenin. Os faróis, mostravam a ele a guarda operária, enfileirada dos dois lados da estrada. Disse Krupskaia: “Aqueles que não presenciaram a revolução não podem imaginar sua beleza solene e grandiosa”. Os marinheiros eram da guarnição de Kronstadt; os holofotes eram da Fortaleza de Pedro e Paulo. Estavam indo para o Palácio Kchessinskaia, a casa da bailarina que fora amante do czar, da qual os bolcheviques, num gesto calculadamente simbólico que indignou a moradora, haviam se apropriado, transformando-a em sede do partido. Lá dentro havia uma profusão de espelhos grandes, candelabros de cristal, afrescos nos tetos, estofamentos de cetim, amplas escadarias e grandes armários brancos. Muitas das estátuas de bronze e dos cupidos de mármore haviam sido quebrados pelos invasores; porém os móveis da bailarina haviam sido cuidadosamente guardados e substituídos por mesas, cadeiras e bancos simples, colocados onde necessários, aqui e ali. Apenas um ou outro vaso chinês, perdido no meio dos jornais e manifestos, ainda atrapalhava a passagem. Queriam servir chá a Lenin e fazer discursos de boas-vindas, porém ele os fez falar sobre táticas. O palácio estava cercado por uma multidão que lhe pedia aos gritos um discurso. Lenin caminhou até uma sacada para ver as pessoas. Foi como se toda a rebelião sufocada sobre a qual se assentava aquela grande cidade plana e pesada, desde os tempos dos artesãos que Pedro, o Grande, enviara lá para trabalhar até morrer naqueles pântanos, numa única noite tivesse entrado em ebulição. E Lenin, que antes só havia falado em reuniões de partidos, perante plateias de estudantes marxistas e que desde 1905 quase nunca havia aparecido em público, agora falava à multidão com uma voz cheia de autoridade que canalizaria toda a energia dispersa daquela gente, conquistaria sua confiança abalada e seria subitamente ouvida em todo o mundo. Porém, de início, quando o ouviram naquela noite — diz Sukhanov , que estava no meio da multidão — havia indícios de que as pessoas estavam chocadas e assustadas. À medida que a voz rouquenha de Lenin falava de “capitalistas ladrões”, da “destruição dos povos europeus para engordar os lucros de uma quadrilha de exploradores”, e dizia que “a defesa da pátria significa na verdade a defesa dos capitalistas em detrimento de todos os outros” — à medida que estas frases explodiam como obuses, os próprios soldados da guarda de honra murmuravam: “O que é isso? O que ele está dizendo? Se ele descesse aqui, ele ia ver!”. Porém, diz Sukhanov, quando Lenin veio falar-lhes face a face, eles não cumpriram suas ameaças, e jamais tentaram fazê-lo posteriormente. Lenin entrou no palácio, porém teve de voltar à sacada para fazer um segundo discurso. Quando voltou para dentro, decidiu-se realizar uma assembleia. No grande salão de festas, os longos discursos de boas-vindas se repetiram. Segundo Trotski, Lenin suportou aquela torrente de retórica “como um pedestre impaciente parado à porta de um edifício esperando que a chuva pare”. De vez em quando consultava seu relógio. Quando chegou sua vez, falou durante duas horas, e encheu sua plateia de confusão e terror. Disse ele: “Na viagem para cá com meus camaradas, eu julgava que fôssemos levados da estação diretamente para a Fortaleza de Pedro e Paulo. Pelo visto, nossa situação é bem outra. Mas não vamos perder a esperança de que ainda venhamos a passar por essa experiência”. Fez pouco caso dos planos de reforma agrária e outras medidas legais propostas pelo Soviete, e afirmou que os próprios camponeses deveriam se organizar e se apossar da terra sem intervenção governamental. Nas cidades, os operários armados deviam assumir o controle das fábricas. Ignorou a maioria do Soviete, e repreendeu severamente os próprios bolcheviques. A revolução proletária estava iminente: não deviam dar o menor apoio ao Governo Provisório. “Não precisamos de nenhuma república parlamentar. Não precisamos de nenhuma democracia burguesa. Não precisamos de nenhum governo além do Soviete de Delegados de Trabalhadores, Soldados e Camponeses!” O discurso, segundo Sukhanov, apesar de seu “conteúdo desconcertante e sua eloquência lúcida e brilhante”, não apresentava, contudo, “uma coisa: uma análise das ‘premissas objetivas’ das fundações socioeconômicas para o socialismo na Rússia”. Porém Sukhanov acrescenta: “Saí na rua como se tivesse acabado de levar uma pancada na cabeça. Apenas uma coisa estava clara: não havia como eu, que não era membro do partido, concordar com Lenin. Deliciado, enchi os pulmões de um ar que já continha o frescor da primavera. Estava prestes a amanhecer; o dia já havia chegado”. Um jovem oficial de marinha bolchevique que participou da assembleia escreveu: “As palavras de Ilitch abriram um Rubicão entre as táticas de ontem e as de hoje”. Porém os líderes, em sua maioria, ficaram estupefatos. O discurso não foi discutido naquela noite; mas a indignação explodiria no dia seguinte, quando Lenin soltou outra bomba numa assembleia geral dos social-democratas. Declarou um dos bolcheviques: “Lenin acaba de apresentar sua candidatura a um trono europeu que está vago há trinta anos: o trono de Bakunin. Com novo fraseado, Lenin está nos contando a mesma velha história de sempre: as velhas ideias desacreditadas do anarquismo primitivo. O Lenin social-democrata, o Lenin marxista, o Lenin líder de nossa social-democracia militante — este Lenin não existe mais!”. E o esquerdista Bogdanov, que estava sentado bem junto à plataforma, repreendeu a plateia com fúria: “Vocês deviam se envergonhar de aplaudir essas tolices! Vocês estão agindo de modo vergonhoso! E ainda se dizem marxistas!”. O objetivo do discurso de Lenin fora impedir que se concretizasse a proposta de fusão dos bolcheviques com os mencheviques; porém naquele momento a impressão que se tinha era a de que o efeito seria justamente o de empurrar os bolcheviques para o lado oposto. A muitos dos próprios bolcheviques parecia — tal como parecera a muitos dos adversários de Lenin após o cisma de 1903 — que Lenin havia simplesmente conseguido colocar-se num beco sem saída.
Na noite da chegada, escreve Krupskaia, após a recepção no Palácio Kchessinskaia, ela e Lenin foram “para casa, onde nos esperavam os nossos, Anna Ilinichna e Mark Timofeievitch”. Maria Ilinichna estava morando com a irmã e o cunhado. Deram a Vladimir Ilitch e Nadia um quarto separado; e lá encontraram, penduradas sobre as camas pelo filho de criação de Anna, as palavras finais do Manifesto comunista: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”. Krupskaia comenta que praticamente não falou com Ilitch. “Tudo foi compreendido sem palavras.”
(Rumo à Estação Finlândia; tradução de Paulo Henrique Britto)
(Ilustração: Lenin discursa para operários)
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