Click
Do que fui testemunha naquele quarto, jamais pude dizer palavra. Eu era muda. Não surda ou cega, mas apenas muda. E quieta. Ou melhor, paralisada. A mim não foi dada a dádiva do grito no momento do desespero, tampouco a capacidade da fuga, no instante exato do pânico. Não. Tudo o que eu podia fazer era assistir, impotente.
E inerte, porém jamais omissa, presenciava a chegada daquilo que, inominável, surgia na noite sem pedir licença, deixando-se entrever apenas, através de uma brecha no véu com que me cobria os olhos.
Deixe a luz do quarto acesa, papai.
A menina choramingava baixinho no instante em que ele, o pai, escorregando a mão para dentro do quarto, alcançava o interruptor na parede.
Click
Deixe a luz acesa.
Dizia quase em um sussurro de medo confesso. Tinha pânico das sombras e da noite, e daqueles sons terríveis. Roncos que, partindo do quarto ao lado, insistiam em se manifestar no exato instante em que ela, menina, descobria o quanto, realmente, estava só.
Deixe a luz…
Ainda tentava implorar, sem suspeitar que é justamente a claridade que permite que se projetem os vultos em uma parede branca. Mais que isso, que sem luz não haveria manifestação alguma daquilo que os humanos entendem em chamar de sombras.
Deixe…
Era tudo que conseguia dizer antes que a porta se fechasse em um baque firme, abandonando-a na cama, envolta em cobertas e na mais terrível escuridão.
Nesse instante, a garotinha se certificava de estar bem enrolada em sua manta. Pés, cabeça, corpo, tudo apertado em uma espécie de casulo, seguro firme com as duas mãos pelo lado de dentro. A respiração ritmada. O ouvido em riste. E o calor aumentando aos poucos a temperatura naquele envelope de pano, insinuando pequenas gotas de suor que brotavam tímidas, primeiro nas mãos, depois na testa, para em seguida, caudalosas, escorrerem pelas costas, ensopando a camisola de flanela.
Quem sabe, cogitava, devesse colocar o nariz para fora de seu refúgio. Só o nariz. Desse modo, poderia sentir um pouco do ar fresco que circulava no exterior de seu esconderijo. E assim o fazia, cuidadosamente. Só o nariz. Mas, os olhos teimando em espiar o medo, lembravam-se logo daquele breu terrível que a envolvia em um outro casulo, ainda mais opressor que o de sua fortaleza de cobertores. Seu quarto.
Assim, era preciso que se enchesse de uma coragem urgente, a fim de conseguir insinuar a mão para fora da coberta. Uma só. E abrir espaço por um caminho já há muito conhecido, alcançando o fio que ficava ao lado de sua mesinha de cabeceira.
Click
Só então, apertando o botão, suspirava.
E pela fresta no tecido, um fio de luz amarelado e débil me revelava, finalmente, aquele seu inexprimível olhar.
Era nesta hora que ele surgia.
Sempre.
O Monstro.
A inominável criatura sem rosto que nos visitava todas as noites.
Todas.
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Mas pela manhã não.
Pela manhã erámos outras, as duas. Eu sem utilidade alguma e ela, a menina, um anjo doce a brincar sentada no topo mais alto de sua casinha improvisada na árvore.
Durante o dia, de nosso quarto, com a janela escancarada, eu conseguia espiar os seus brinquedos de panelinhas e historietas cantadas baixinho, no ouvido de suas bonecas. Quem saberia dizer que segredos confessava ali tão doce e meiga criança?
Papai?
Eu a via buscar no adulto que passava apressado e carregado de compras, a certeza cúmplice de que tudo estava bem. Ela olhava para o pai e acenava em um gesto rápido, quase de animação. Ele, por sua vez, devolvia-lhe o aceno, sem interromper o que fazia. E suspiravam. Ele, imaginávamos, pelo peso das compras em suas mãos. Ela, por supor que em seu mundo, ao menos nessa hora, tudo parecia bem. Tudo em seu lugar. Papai no trabalho e cuidando da casa. A menina entretida em seu modo de brincar. E eu, espiando atenta, o movimento do quintal. Tudo certo. Tudo como deveriam ser as coisas no pequeno mundo de uma criança.
E assim era.
Ou ao menos durante o dia.
Na casa da árvore não havia lugar para monstros ou roncos assustadores. Ali, caminha, mesinha, cadeirinha, pratinho, fogão. Réplica perfeita de sua vida em um mundinho particular onde ela era a mamãe. E protegia a todos prometendo-lhes sempre que, ao contrário do que fizera a sua, jamais desapareceria dali.
Click
O primeiro sinal da aproximação da aberração, era o silêncio. No quarto ao lado, antes invadido por roncos capazes de fazer tremer toda a casa, uma espécie de vácuo antecedia o ranger das primeiras tábuas do assoalho. Uma a uma, as madeiras gemiam, denunciando a proximidade cadenciada daqueles passos.
Um, dois, três…
Ela contava baixinho.
Um a um, pouco a pouco, eles vinham.
Quatro…
Mais altos.
Cinco.
Mais próximos…
Seis.
E sabíamos que, embora lentos e arrastados como os pés de um velho em seus chinelos pelo chão, aproximavam-se mais excitados e ansiosos. A cada noite mais. A cada segundo. A cada passo.
Mas era só quando a maçaneta girava que a pequena se agarrava ao lençol em uma tentativa vã de, em uma batalha contra a criatura, impedir que esta lhe arrancasse a proteção. E apertava os lábios, os olhos e as unhas, com tal vigor, que o resultado, muitas vezes, era o de fazer com que o sangue brotasse fácil das palmas de suas mãos.
Sete, oito, nove…
E nada mais podia ser feito.
Por que não trancava a porta ou gritava, ou fugia buscando esconderijo em outros cantos de sua casa? Jamais saberei ao certo. Talvez imaginasse que ninguém escapa das garras de seu destino. Talvez temesse que a onipresença da criatura penetrasse furiosa os espaços ocultos de sua vida, o buraco da fechadura. Fazendo-se presente em cada canto e ainda mais furioso. Ainda mais demorado. Ainda mais.
E então se rendia.
Contando novamente, não mais os passos, mas dessa vez o tempo, abstraindo-se dele e daquilo que havia de mais lúgubre em sua existência. O inominável.
Click
A primeira coisa que a abominação fazia, era passar por mim com os seus dedos apressados, na tentativa vã de me desligar. Não queria luz. Talvez quisesse ocultar nas trevas, aquilo que fazia. Talvez tentasse apenas esconder seu rosto feio. Trazia o peito nu e a cabeça coberta com a própria camisa.
E era horrendo. Tanto quanto nos parece aquilo que não podemos enxergar. Ou mais.
Passava-me os dedos. Mas na pressa de obter o que vinha caçar, atrapalhava-se.
Click
E voltava a me ligar em um descuido, iluminando tudo, com raiva.
No atropelo, virava a menina de costas em sua cama e retirava da cabeça a camisa ensopada de um suor pegajoso que me nauseava a alma, jogando-a sobre mim.
Me encobria a visão, sem imaginar sequer que, naquelas horas, eu só teria meus olhos para ela.
E para os vultos infames que minha própria luz projetava na parede branca.
E assim era, durante todo o verão.
E em todas as noites.
E há muito tempo.
Em todas.
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Exceto em uma.
Naquela noite algo estava diferente. Chovia e um forte vento batia na janela, fazendo a persiana dançar com força contra o vidro. Era verão, mas o inesperado frio pegou a todos desavisados.
Papai fez sopa.
E a menina deitou mais cedo.
Deixe a luz…
Papai deixou.
Naquela noite, não houve roncos no quarto ao lado, tampouco passos excitados no ranger das tábuas corridas e velhas. Só o vento. E o bater contínuo da persiana contra o vidro, fazendo com que a pequena se levantasse e fosse até à janela.
Dali, ela podia divisar o pátio encharcado e a árvore com sua casinha, balançando forte e sem trégua. Puxou o fio da persiana a fim de amarrá-la firme, impedindo que se chocasse ao basculante com tanta violência.
E foi nesse instante que o encontrou.
Envolto em muita poeira, o papel se enrolava no vão entre o trilho e a vidraça. Puxou a ponta do canudo com um grampo de cabelo e o desenrolou. Era um bilhete, eu especulava enquanto a via examinar seu conteúdo.
Um desenho.
No rodapé, a assinatura.
Com amor, mamãe.
Pude ver quando aquelas pequenas mãos trêmulas depositaram o papel sobre a mesinha onde eu ficava.
Um desenho.
Mamãe fora embora há mais de um ano. Diziam que morreu, que sumiu, que não se falasse mais nela. Mas a menina sabia que não. Fora embora e apenas isso. Saíra pelo portão do pátio, carregando maleta e se detendo apenas por um minuto para olhar para trás. Para o quarto da pequena. Para ela. Para mim. Rápida e pálida. Para nunca mais.
Com amor, mamãe.
E agora, aquele desenho era tudo que tínhamos dela. Riscos esquemáticos em forma talvez de um mapa. Talvez de um tesouro. Quem sabe, o caminho para uma saída secreta que nos salvaria das garras da besta. Talvez, apenas riscos desconexos, atestando em sua loucura o real motivo da fuga. Talvez.
Click
Naquela manhã, a pequenina não foi até à árvore. Chovia ainda mais e papai, sempre zeloso, não queria que sua filhinha ficasse doente ou com febre.
Ficou no quarto.
Algo, de fato, estava diferente.
Pude ver quando a criança puxou a cadeira e abriu cuidadosamente a gaveta de sua escrivaninha. Ali, algo que, quando a mãe ainda vivia com ela, costumava ser o maior de seus tesouros. Seu brinquedo preferido em todo o mundo. Lápis de colorir, estilete para fazer a ponta, borracha e papel.
Na época, costumavam ficar sentadas por horas a fio. Juntas, desenhavam de tudo. Coisas lindas, anjos e fadas. E outras coisas. Bichos que, naquele tempo, eram os únicos monstros presentes na vida da pequenina. Minúsculos insetos, aranhas que eclodiam de ovos depositados em teias inacessíveis, grudadas ao teto alto da casa.
A garotinha temia aqueles ovos negros e cabeludos. E a mãe ensinava-lhe que ali, dentro dos ovinhos, viviam apenas pequenos bebês. Bichos de oito patas que eclodiriam para a vida no momento certo. Aranhas que povoavam histórias, que povoavam ilustrações. Monstrinhos de uma espécie sem veneno e cujo único mal era o de atrair mosquitos e outros seres alados, que grudavam em suas teias a fim de alimentar e proteger seus bebês.
Puxou uma folha em branco. Uma só. Se me perguntassem por que ela deixara de desenhar após a partida de mamãe, eu diria não saber. Talvez aquilo a deixasse triste. Talvez tivesse perdido o sentido, a graça. Talvez, não tivesse mais um adulto com quem se conectar através da cor.
O desenho.
Esticou o bilhete enigmático ao lado da folha branca.
Com amor, mamãe.
Contornou as letras com os dedinhos e puxou o lápis de dentro do estojo. Um a um. Vermelho, preto, marrom.
E desenhou.
No papel, como em um surto furioso, fazia brotar figuras sombrias. Pai e filhinha de mãos atadas, iluminados por um sol marrom. Em um outro, mamãe segurava sua maleta no portão. Tinha os olhos tristes pintados de vermelho. Depois desenhou seu quarto, escuro. E sobre a mesinha, ao lado da cama, eu, com uma luz tremulante e coberta por uma camisa. Pelo buraco da fechadura, o peito nu e cabeludo do monstro. E, enfim, em um espasmo, desenhou a criatura. Não uma aranha, mas aquela sem cabeça e vertendo suor pelo pescoço, em um esguicho pútrido, violento, inumano.
Foi então que, súbita, puxou o bilhete da mãe para mais perto de si e se deteve por alguns minutos, examinando-o. E começou a reproduzi-lo. Primeiro uma cópia, depois outra, e outra mais, para, em seguida, produzir uma variante sem fim de desenhos em cores e tamanhos diversos.
Aquele esquema parecia-lhe uma espécie de recado em código. Um mapa. Uma teia de amor deixada pela mãe a fim de lhe dizer algo.
Mas o quê?
Na trama, viam-se linhas retas formando caminhos, em um tipo de labirinto. Lembrava da história que a mãe contava sobre Ariadne, a heroína que escapara do intrincado espaço, esticando um fio que percorria o caminho até à saída. Seu caminho.
Um labirinto era uma espécie de teia.
Sua vida também.
Cogitava hipóteses, desenhando suas réplicas repetidas vezes e com pequenas variações. Por vezes, o final de uma linha se unia a outra, por outras, a borracha abria um novo caminho onde, antes, havia uma linha contínua. Em certos trechos, traços inclinados formavam um padrão de sobre desce, como em um monitor de coração e vida.
Nesses monitores, sabia pois já vira com seu avô, a morte era representada por uma linha reta. A vida pelo sobe e desce das inclinações.
Mas o que tudo aquilo queria dizer?
Com amor, mamãe.
Segurou firme o estilete a fim de apontar o lápis. E passando a lâmina diversas vezes pela madeira, tinha o olhar distante, quase fugidio.
E não pareceu perceber quando, descascando toda a lapiseira, restou-lhe apenas um pequeno cotoco de madeira já sem ponta alguma. Tampouco percebeu que a chuva já cessara há algumas horas. E que, no horizonte, aos poucos, o arrebol já se insinuava tingindo o céu com seus tons avermelhados.
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Já estava escuro quando, sentando-se ao meu lado, trocou a lâmina do estilete por uma outra. Nova. Mais afiada. E puxou, delicadamente o bilhetinho da mãe, para perto de minha luz.
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Desligou-me.
O fim de tarde, ainda permitia que a claridade penetrasse o espaço. Caminhou até à porta e fez algo terminantemente proibido naquela casa. Trancou a fechadura, dando um único giro na chave, resoluta.
Pude perceber que tremia quando puxou a tomada que me conectava à parede. E, pela primeira vez em muitos anos pude notar que sorria. Não o sorriso escancarado da criança inocente, que vive seus dias sem preocupações ou temores. Não. Era um sorriso nervoso. Desses de quem sabe que em seu mundo existe algo a se temer, algo de que se fugir.
Esticou o fio e, com cuidado, passou o estilete entre o canal que o dividia em duas metades. Dois polos separados e distintos entre si. Um positivo, o outro, negativo. E desencapou um deles. Depois o outro. Em seguida, abrindo o parafuso com a ponta do estilete, não teve problema algum para desmontar o interruptor. E encaixou ali, a parte desencapada de um dos fios. Um só. Separou o outro com a habilidade de um cirurgião.
Trabalhava lenta e precisamente, a respiração acelerada, os olhos arregalados, as mãos firmes e atentas.
Quando se deu por satisfeita, o trabalho por terminado, já era noite.
Levantou-se com um ar estranho. Algo nela estava mudado, algo que não saberia dizer se era bom ou ruim. Caminhou até à porta e, em um movimento único, girou a chave liberando a tranca.
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Tomou seu banho.
Deitou em sua cama.
E esperou.
Deixe a luz do quarto acesa, papai.
Não deixou.
E aguardou o momento de me apertar o botão, a fim de me manter acesa, como em todas as outras noites daqueles hediondos verões. Naquela, porém, não precisaria se enrolar em lençol ou proteção alguma. Naquela noite, sabia muito bem o que fazia. Como se protegeria.
Na palma da mão, apertava com força, seu amuleto. O bilhete de mamãe dobrado dezenas de vezes, em um pequeno quadrado.
E esperou ansiosa o momento em que os roncos no quarto ao lado cessariam, acompanhando atenta cada passo arrastado no ranger forte de nosso longo corredor.
Sabia que não tinha mais volta.
Um, dois…
Não havia mais tempo para voltar atrás. A fera já vinha em seu encalço.
Três, quatro…
Finalmente o pegaria e poderia, enfim, contar tudo a papai, sem temer que desacreditasse dela. Talvez, quem sabe, a mãe pudesse voltar a viver com eles e seríamos, os quatro, felizes para sempre.
Cinco, seis, sete…
Olhou-me apreensiva temendo, talvez, a falha ou o medo no momento final.
Oito, nove…
E a maçaneta girava, afastando a porta e abrindo-a lenta, em direção à parede.
Dez.
A aberração estava lá. Presente e assustadora, como nunca. Parecia intuir que algo diferente pairava no ar daquele aposento.
Passou por mim a mão apressada e pude sentir, naquele átimo, o suor frio que escorria por entre os pelos de seus dedos de demônio. Retirou a camisa molhada, pronto a atirá-la sobre mim.
Mas minha luz já estava apagada.
E foi nesse instante que aconteceu.
Em um golpe rápido, a menina rolou para baixo da cama, empurrando a luminária em direção ao demônio.
Pude sentir quando, no susto, seu polegar firme, sua garra de abominação, apertou-me o interruptor. E então, em um terrível puxão, pude sentir que se agarrava a mim. Firme. Frenético. Em pânico. Em dor. E o nosso mundo explodiu.
Curto-circuito.
Um corpo humano começa a perceber a passagem de uma corrente elétrica a partir de 1 mA.
Quando atinge 14 mA, a eletricidade é capaz de excitar os nervos a tal ponto, que lhes provoca contrações musculares permanentes, criando um efeito de agarramento que impede a vítima de se soltar do circuito.
O corpo humano é sensível à corrente elétrica. Seus efeitos, no organismo humano, passam rapidamente das contrações simples para as violentas, das queimaduras leves para as severas. E, logo, a dor terrível evolui para a morte. Nem sempre, antes disso, a vítima perde os sentidos.
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Naquela noite, a criança sabia o que estava fazendo.
Naquela noite, quando o curto-circuito se precipitou, ela saiu de seu quarto fechando a porta, tentando não se preocupar com os urros lancinantes de bicho atrás de si. Não sabia dizer o que sentia. Medo, coragem, um misto de alívio e desespero.
Talvez, quem sabe, sentisse pena da coisa.
Talvez não sentisse nada.
Mas, de algum modo, sabia exatamente aquilo que precisava ser feito. Sabia do que precisava. Sabia como. E o pior, sabia o porquê.
E esperou até que tudo fosse silêncio.
Naquela noite, chamas altas consumiram seu quarto. E o monstro.
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O dia já clareava no momento em que os bombeiros arrombaram a porta da casa.
Encontraram a menina, já não mais uma criança, sentada na sala, olhando para o teto, absorta. E tiveram dificuldades para lhe abrir as mãos cerradas, segurando firme o bilhete da mãe. Um elaborado circuito elétrico desenhado fina e caprichosamente com lápis de colorir.
Em seu quarto, restos mortais de um demônio carbonizado. No chão do aposento, ao lado da cama, grudada à luminária, a única coisa que sobrara da besta carbonizada. A arcada dentária.
Do depoimento da pequena, não conseguiram apreender muita coisa.
Quem conseguiria?
Apenas eu comungava com ela cada momento de agonia e de dor.
Tudo o que compreenderam foram frases soltas, ditas entre um soluço e outro.
Que o monstro, por algum motivo, só aparecia no verão.
Que quando tudo começou, tinha apenas 7 anos.
Quando pôde se livrar do horror somava no dedo e ao todo, 12 anos.
E finalmente, dito em uma voz fria de quem entende que a vida real pode ser milhares de vezes mais feia e dolorosa que a da fantasia. Que na casa, naquela noite, não havia adulto algum.
E que, naquele instante, ali mesmo, nascia um monstro.
Não pude ver minha garotinha, tampouco me despedir de seu amor, mas sei o que vi e jamais esquecerei daquele olhar, no momento exato em que, antes de fechar a porta, finalmente conseguimos encarar os olhos da agora suplicante abominação.
Era papai.
No teto da sala, só a menina percebeu quando a pequena aranha rompeu o ovo.
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(Ilustração: Henry Fuseli - an incubus leaving two sleeping girls)