Numa manhã de Verão de 1925, o carteiro entregou uma carta em casa de todos os sábios da Alemanha e da Áustria. Apenas o tempo de a abrir: a ideia da ciência tranquila morrera, os sonhos e os gritos dos condenados enchiam de súbito os laboratórios e as bibliotecas. A carta era um ultimato:
"Agora é preciso escolher, estar conosco ou contra nós. Ao mesmo tempo que Hitler limpará a política, Hans Horbiger expulsará as falsas ciências. A doutrina do gelo eterno será o sinal da regeneração do povo alemão! Atenção! Coloquem-se do nosso lado antes que seja demasiado tarde!"
O homem que assim ousava ameaçar os sábios, Hans Horbiger, tinha sessenta e cinco anos. Era uma espécie de profeta furioso. Usava uma imensa barba branca e tinha uma letra capaz de desencorajar o melhor grafólogo. A sua doutrina começava a ser conhecida por um vasto público sob o nome de Well. Era uma explicação do cosmos em contradição com a astronomia e as matemáticas oficiais, mas que justificava antigos mitos. No entanto Horbiger considerava-se a ele próprio como um cientista. " Mas a ciência devia mudar de via e de métodos. “A ciência objetiva é uma invenção perniciosa, um totem de decadência". Pensava, como Hitler, "que a questão prévia a qualquer atividade científica é saber quem quer saber". Só o profeta pode reclamar a ciência, pois ele é, em virtude da inspiração, elevado a um nível superior de consciência. Era o que pretendia dizer o iniciado Rabelais ao escrever: "Ciência sem consciência é apenas ruína da alma." Ele pretendia dizer: ciência sem consciência superior. Tinham falsificado a sua mensagem, em proveito de uma pequena consciência humanista primária. Quando o profeta quer saber, pode então tratar-se de ciência, mas é uma coisa diferente daquilo a que vulgarmente se chama ciência. Por isso Hans Horbiger não podia suportar a menor dúvida, o menor esboço de contradição. Agitava-o um furor sagrado: "Têm confiança nas equações e não têm em mim!, berrava. De quanto tempo precisarão ainda para compreender que as matemáticas representam uma mensagem sem valor?"
Na Alemanha do Herr Doktor, cientista e técnica, Hans Horbiger, com gritos e murros, abria caminho ao saber inspirado, ao conhecimento irracional, às visões. Não era o único; mas nesse domínio era o que mais se distinguia. Hitler e Himmler tinham-se unido a um astrólogo, mas não o divulgavam. Esse astrólogo chamava-se Führer. Mais tarde, após a tomada do poder, e como que para afirmar a sua vontade, não só de reinar, como de "modificar a vida", eles próprios ousariam provocar os sábios. Nomeariam Führer "plenipotenciário das matemáticas, da astronomia e da física" .
De momento, Hans Horbiger organizava, nos domínios da inteligência, um sistema comparável ao dos agitadores políticos.
Parecia dispor de grandes possibilidades financeiras. Agia como um chefe de partido. Criava um movimento, com serviços de informações, recrutamento e quotizações, propagandistas e "agentes" escolhidos entre a juventude hitleriana. As paredes estavam cobertas de cartazes, inundavam os jornais de editais, distribuíam panfletos em massa, organizavam-se "meetings". As reuniões e conferências de astrónomos eram interrompidas pelos partidários que gritavam: "Fora os sábios ortodoxos! Sigam Horbiger!" Os professores eram molestados nas ruas. Os diretores dos institutos científicos recebiam cartões: "Quando ganharmos, o senhor e os seus semelhantes irão mendigar pelos passeios". Homens de negócios, industriais, antes de contratarem um empregado obrigavam-no a assinar uma declaração: "Juro ter confiança na teoria do gelo eterno". Horbiger escrevia aos grandes engenheiros: "Ou aprenderá a acreditar em mim, ou será tratado como inimigo".
Em poucos anos, o movimento publicou três grandes volumes de doutrina, quarenta livros populares, centenas de brochuras. Editavam um magazine mensal de grande tiragem: La Clé des Evénements Mondiales (A Chave dos Acontecimentos Mundiais). Já recrutara dezenas de milhares de aderentes. Viria a representar um papel importante na história das ideias e na própria história.
Ao princípio, os sábios protestavam, publicavam cartas e artigos para demonstrar as impossibilidades do sistema Horbiger. Depois alarmaram-se quando a Wel tomou proporções de um vasto movimento popular. A seguir à subida ao poder de Hitler a resistência diminuiu, embora as universidades continuassem a ensinar a astronomia ortodoxa. Sábios de renome aderiram à doutrina do gelo eterno, como, por exemplo, Lenard, que, juntamente com Roentgen, descobrira os raios X, o físico Oberth, e Stark, cujas investigações sobre a espectroscopia eram mundialmente conhecidas. Hitler protegia abertamente Horbiger e acreditava nele.
"Os nossos antepassados nórdicos tornaram-se fortes devido à neve e ao gelo, declarava um panfleto popular da Wel, e é esse motivo por que a crença no gelo mundial é a herança natural do homem nórdico. Um austríaco, Hitler, expulsou os políticos judeus, um segundo austríaco, Horbiger, expulsará os sábios judeus. Com a sua própria vida, o Führer provou que um amador é superior a um profissional. Foi preciso outro amador para nos dar uma compreensão completa do Universo."
Hitler e Horbiger "os dois maiores austríacos," encontraram-se várias vezes. O chefe nazi escutava aquele sábio visionário com deferência. Horbiger não admitia que o interrompessem no seu discurso e respondia com firmeza a Hitler: "Maul Zu!” Cala a boca! Levou ao extremo a convicção de Hitler: o povo alemão, no seu messianismo, era envenenado pela ciência ocidental, tacanha, debilitante, separada da carne e da alma. Criações recentes, como a psicanálise, a serologia e a relatividade eram máquinas de guerra dirigidas contra o espírito de Parsifal. A doutrina do gelo mundial forneceria o contraveneno necessário. Essa doutrina destruía a astronomia aceite: o resto do edifício desmoronar-se-ia em seguida por si próprio, e era preciso que se desmoronasse para que renascesse a magia, único valor dinâmico. Os teóricos do nacional-socialismo e os do gelo eterno reuniram-se em conferências: Rosenberg e Horbiger, rodeados pelos seus melhores discípulos.
A história da humanidade, tal como Horbiger a descrevia, com os grandes dilúvios e as migrações sucessivas, com os seus gigantes e os seus escravos, os seus sacrifícios e as suas epopeias, correspondia à teoria da raça ariana. As afinidades do pensamento de Horbiger com os temas orientais das eras antediluvianas, dos períodos de salvação da espécie e os períodos de punição apaixonaram Himmler. À medida que o pensamento de Horbiger se definia, revelavam-se correspondências com as visões de Nietzsche e a mitologia wagneriana. As origens fabulosas da raça ariana, que descera das montanhas habitadas pelos super-homens de outra era, destinada a mandar no planeta e nas estrelas, estavam estabelecidas. A doutrina de Horbiger associava-se intimamente ao pensamento do socialismo mágico, aos movimentos místicos do grupo nazi. Vinha fortalecer muito o que Jung viria a chamar mais tarde "a libido do sem-razão". Ela trazia algumas dessas "vitaminas da alma" contidas nos mitos.
(O Despertar dos Mágicos; tradução de Gina de Freitas)
(Ilustração: Felix Nussbaum - The Damned)
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