sábado, 15 de setembro de 2018

VONTADE DE DESCOBRIR OS ESTADOS UNIDOS, de Chimamanda Ngozi Adichie





Cada onda de calor fazia Ifemelu se lembrar de sua primeira, no verão em que chegara. Era verão nos Estados Unidos, ela sabia, mas a vida toda pensara no “exterior” como um lugar de casacos de lã e neve, e como os Estados Unidos eram no “exterior” e suas ilusões eram tão fortes que não podiam ser abaladas pela razão, comprou o suéter mais grosso que encontrou no mercado Tejuosho para levar. Usou-o na viagem, fechando o zíper até em cima no interior murmurante do avião e abrindo-o quando saiu do aeroporto com tia Uju. O calor abrasador alarmou-a, assim como o velho Toyota hatch de tia Uju, que tinha uma mancha de ferrugem na lateral e tecido dos bancos descascado. Olhou com atenção para os prédio, carros e letreiros, todos opacos, decepcionantemente opacos; na paisagem de sua imaginação, as coisas mundanas dos Estados Unidos eram cobertas por um esmalte brilhante. O que deixou Ifemelu mais assustada foi o adolescente de boné parado diante do muro de tijolos com o rosto abaixado, o corpo inclinado para a frente e as mãos entre as pernas. Ela se virou para olhar de novo. 

“Olhe aquele menino”, disse. “Não sabia que as pessoas faziam esse tipo de coisa nos Estados Unidos.” 

“Você não sabia que as pessoas faziam xixi nos Estados Unidos?”, disse tia Uju, mal olhando para o menino antes de virar a cabeça na direção do sinal. 

“Ahn-hã, tia! Quis dizer que não sabia que faziam isso na rua. Que nem ele.” 

“Não fazem. Não é que nem na Nigéria, onde todo mundo faz. Ele pode ser preso por isso, mas este bairro não é bom, de qualquer jeito”, disse tia Uju seca. Havia algo de diferente nela. Ifemelu notara no primeiro instante no aeroporto, o cabelo mal trançado, as orelhas sem brincos, o abraço rápido e casual, como se fizesse semanas, e não anos, desde que tinham se visto pela última vez. 

“Eu devia estar estudando agora”, disse tia Uju sem tirar os olhos da rua. “Você sabe que minha prova está chegando.” 

Ifemelu não sabia que ainda faltava uma prova; ela achou que tia Uju estava apenas esperando o resultado. Mas disse: “Sei, sim”. 

O silêncio delas parecia cheio de farpas. Ifemelu sentiu vontade de pedir desculpas, embora não soubesse pelo quê. Talvez tia Uju lamentasse sua presença agora que estava ali, em seu carro resfolegante. 

O celular de tia Uju tocou. “Sim, é Uju.” Ela pronunciou iu-ju, como os americanos faziam. 

“É assim que você pronuncia seu nome agora?”, perguntou Ifemelu depois. 

“É assim que eles dizem.” 

Ifemelu quis dizer “Bom, esse não é seu nome”, mas engoliu as palavras. Disse, em igbo: “Não sabia que ia estar tão quente aqui”. 

“Estamos numa onda de calor, a primeira do verão”, disse tia Uju, como se a expressão onda de calor fosse algo que Ifemelu devesse compreender. Ela nunca tinha sentido um calor tão quente. Era um calor envolvente, sem piedade. Quando chegaram ao apartamento de um quarto de tia Uju, a maçaneta estava morna. Dike ficou de pé num pulo no chão acarpetado da sala, repleto de carrinhos de brinquedo e super-heróis, e abraçou Ifemelu como quem se lembrava dela. “Alma, esta é minha prima”, disse para a babá, uma mulher de pele branca e expressão cansada com cabelos negros presos num rabo de cavalo oleoso. Se Ifemelu tivesse conhecido Alma em Lagos, a teria considerado branca, mas ali aprenderia que Alma era hispânica, uma categoria americana que, para confundir, era tanto etnia quanto raça, e ela se lembraria de Alma quando, anos depois, escreveu um post para o blog chamado; “Entendendo a América para o negro não americano: o que significa hispânico”. 

Hispânicos são frequentes companheiros dos negros americanos nos índices de pobreza, um pequeno passo acima deles na hierarquia racial do país. A raça inclui a mulher de pele chocolate do Peru; os povos indígenas do México; pessoas com cara de mestiças da República Dominicana; pessoas mais branquinhas de Porto Rico; e o cara louro de olhos azuis da Argentina. Você só precisa falar espanhol e não ser da Espanha e, voilà, pertence a uma raça chamada hispânica. 

Mas naquela tarde, Ifemelu mal notou Alma, ou a sala onde havia apenas um sofá e uma televisão, ou a bicicleta encostada num canto, porque ficou absorta diante de Dike. Na última vez em que o vira, no dia em que tia Uju saíra apressada de Lagos, ele era uma criança de um ano chorando sem parar no aeroporto, como se entendesse a reviravolta que havia acabado de acontecer em sua vida, e agora estava ali, no primeiro ano, com um sotaque americano perfeito uma hiperfelicidade; o tipo de menino que nunca parava quieto e nunca parecia triste. 

“Por que você está de casaco? Está quente demais para usar casaco”, disse ele, rindo, ainda enlaçando-a num longo abraço. Ifemelu riu. Ele era tão pequeno, tão inocente e, no entanto, havia uma precocidade nele, mas uma precocidade solar; não acalentava intenções sombrias em relação aos adultos de seu mundo. Naquela noite, depois que ele e tia Uju deitaram na cama e Ifemelu se ajeitou no cobertor no chão, Dike disse: “Por que ela tem de dormir no chão, mãe? Nós três cabemos aqui”, como se intuísse a maneira como a prima estava se sentindo. Não havia nada de errado naquilo – afinal, ela dormia sobre tapetes quando visitava sua avó na aldeia –, mas finalmente estava nos Estados Unidos, na gloriosa América, e não tinha esperado dormir no chão. 

“Eu estou bem, Dike”, disse Ifemelu. 

Ele se levantou e deu seu travesseiro para ela. “Tome. É tão macio e gostoso.” 

“Dike, venha deitar. Deixe sua tia dormir”, disse tia Uju. 

Ifemelu não conseguiu dormir, sua mente estava alerta demais à novidade de tudo, e esperou até ouvir o ronco de tia Uju para sair do quarto e acender a luz da cozinha. Uma barata gorda estava na parede ao lado dos armários, movendo-se um pouco para cima e um pouco para baixo, como quem respira fundo. Se estivesse em sua cozinha em Lagos, Ifemelu teria procurado uma vassoura para matá-la, mas deixou a barata americana em paz e foi postar-se diante da janela da sala. Tia Uju tinha dito que aquela parte do Brooklyn chamava Flatlands. A rua lá embaixo era mal iluminada, ladeada não por árvores frondosas, mas por carros estacionados bem próximos uns dos outros, muito diferente da rua bonita do Cosby Show. Ifemelu ficou ali por bastante tempo, com o corpo inseguro, tomada por uma sensação de novidade. Mas também sentiu um frisson de expectativa, uma vontade de descobrir os Estados Unidos. 



(Americanah; tradução de Ligia Azevedo) 



(Ilustração: Archibald Motley - American Harlem Renaissance painter, 1891-1981: Bronzeville at Night, 1949)






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