segunda-feira, 14 de maio de 2018

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI, de Chico de Assis








Monsenhor Pardini, além de sacerdote era um cientista, inventava coisas. 

Entre suas invenções, uma havia que eu, interessado no assunto, achava o máximo. 

Era um invento tão mecanicamente simples que daria inveja a Arquimedes. 

A aparência do invento era a de uma caixa de papelão, assim como uma caixa de sapatos. Uma fenda na tampa que dava o aspecto de um cofre. 

O nome do invento era: máquina de perdoar. 

O funcionamento era mecanicamente simples. Se alguém injuriasse você, uma injuria de difícil perdão era só colocar na fenda da caixa um cartão onde estava escrito: “eu perdoo fulano ou fulana pela injuria que me fez”. Aí era só guardar a caixa num saco de papel que devia ser posto longe dos olhos. Passado um mês a pessoa pegava o saco, tirava a caixa de dentro e conferia todos os cartões que lá estivessem. Relendo os cartões de perdão. Se tudo estivesse bem e você sentisse que realmente tinha perdoado mesmo a injúria era só tirar o cartão da caixa e jogar no lixo. Porém se você percebesse ao ler o cartão que ainda havia um forte sentimento de vingança, por exemplo, era só fechar a caixa com o cartão dentro. Um mês depois, abrir de novo, sentir e conferir. Se tudo estivesse resolvido, então, rasgar o cartão e mandar para o lixo. 

Na primeira vez em que vi o invento, disse ao Monsenhor Pardini que a gente devia saber de alguém, que nos tinha ofendido, os sentimentos dele, depois que o perdoamos. Monsenhor Pardini deu um sorrisinho maroto e falou bem baixo: 

-Perdão é um ato de você com você mesmo. 

Uma tarde fria de junho, Monsenhor Pardini me convidou para um chá. Na verdade, o que ele queria era mostrar seu último invento. Mas antes que me mostrasse alguma coisa, tomamos chá de erva cidreira sem açúcar e falamos sobre a situação do país, coisas assim. 

Lá pras tantas, Monsenhor Pardini veio com o seu mais novo invento. Era uma madeirinha em “T” que ele colocou em pé na mesa, bem a minha frente. Depois tirou de dentro de uma caixa uma porção de passarinhos de papelão, pintados com lápis de cor. Colocou os passarinhos encaixados no poleiro e disse: 

-Esse é o meu último invento, mas só serve pra quem gosta do canto dos passarinhos. 

Eu perguntei como funcionava e ele foi sucinto: 

-Você arma o poleirinho com os passarinhos e fica olhando bem para eles. Quando um deles cantar, você guarda os outros na caixa e fica ouvindo o canto daquele passarinho. Depois muda pra outro e assim vai indo. 

Eu fiquei um tanto intrigado e perguntei de onde saía o canto dos passarinhos. Monsenhor Pardini chegou bem perto de mim e deu uma cutucada com o indicador primeiro na minha cabeça e depois sobre o meu coração: 

- Daqui e daqui! Não vai precisar prender passarinhos em gaiolas que é uma coisa que Deus não gosta. 

Rimos muito e na hora em que fui embora ele me deu uma caixa com aquele seu último invento. 

Cheguei em casa e montei o poleirinho e coloquei os passarinhos, só para ver como ficaria como decoração de minha sala. Era uma coisa bonita, meio infantil. Fiquei ali olhando e lembrando de Monsenhor Pardini. Então, de repente começo ouvir um canto de pássaro que não sabia de onde vinha. Olhei para o poleirinho e logo percebi que quem cantava era um passarinho de papelão amarelo como um canário. Guardei os outros na caixa e fiquei ouvindo só aquele. 

Como cantava bonito! Igual um que meu avô tinha em sua casa e eu gostava de ouvir quando tinha meus cinco anos de idade. E fiquei ali ouvindo, um tempo enorme. Esqueci todos meus problemas com os maravilhosos passarinhos de Monsenhor Pardini. 

Porém a experiência mais impressionante que tive com Monsenhor Pardini foi com: a máquina que vencia a morte. 

Ele me chamou um dia e disse: 

-Este é meu último invento. Depois disso não inventarei mais nada. Quero que seja o primeiro a experimentar “A Máquina que Vence A Morte”. 

Então ele trouxe um cálice de vidro transparente, dentro dele umas bolinhas brancas, e explicou: 

- Quando um ente amado e querido se for, você engole uma destas bolinhas e diz... Em mim você viverá, para sempre. Daí, você vai sentir aquela pessoa bem viva junto a você. Junto não, bem dentro de você e ali o ente querido ficará bem vivo, para sempre, vencendo a morte. 

Bebemos vinho e nos despedimos, antes de sair eu disse a Monsenhor Pardini: não pare de inventar suas máquinas, continue. Ele me abraçou e disse rindo: 

-Não, este é meu último invento. 

Eu estava chegando do trabalho em casa cheio de problemas naquela noite. O telefone tocou e era a irmã do Monsenhor Pardini. Ela me avisou que ele tinha partido horas atrás. 

Saí correndo de casa e fui até o velório. Lá estava ele sorrindo como sempre e em volta gente chorando muito, muitas pessoas. Saí dali e fui para casa, triste, muito triste mesmo. Cheguei a casa e tomei meia garrafa de vinho para diminuir a dor. 

Olhei em cima do etagére e vi a máquina que vencia a morte. Descobri a taça e engoli uma bolinha daquelas. 

Em pouco tempo, coloco um disco pra tocar, pego um lápis e um caderno, começo a inventar uma máquina que me faça viajar no tempo. Do passado para o futuro e do futuro de volta ao tempo presente. Quando termino o desenho, ouço uma risadinha conhecida. A risadinha de Monsenhor Pardini e uma voz que vinha bem lá de dentro de mim dizendo: 

-Não disse que minha máquina vencia a morte? 



(Ilustração: John Bellany - Time will Tell)



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