Monsenhor Pardini, além de sacerdote era um cientista, inventava coisas.
Entre suas invenções, uma havia que eu, interessado no assunto, achava o máximo.
Era um invento tão mecanicamente simples que daria inveja a Arquimedes.
A aparência do invento era a de uma caixa de papelão, assim como uma caixa de sapatos. Uma fenda na tampa que dava o aspecto de um cofre.
O nome do invento era: máquina de perdoar.
O funcionamento era mecanicamente simples. Se alguém injuriasse você, uma injuria de difícil perdão era só colocar na fenda da caixa um cartão onde estava escrito: “eu perdoo fulano ou fulana pela injuria que me fez”. Aí era só guardar a caixa num saco de papel que devia ser posto longe dos olhos. Passado um mês a pessoa pegava o saco, tirava a caixa de dentro e conferia todos os cartões que lá estivessem. Relendo os cartões de perdão. Se tudo estivesse bem e você sentisse que realmente tinha perdoado mesmo a injúria era só tirar o cartão da caixa e jogar no lixo. Porém se você percebesse ao ler o cartão que ainda havia um forte sentimento de vingança, por exemplo, era só fechar a caixa com o cartão dentro. Um mês depois, abrir de novo, sentir e conferir. Se tudo estivesse resolvido, então, rasgar o cartão e mandar para o lixo.
Na primeira vez em que vi o invento, disse ao Monsenhor Pardini que a gente devia saber de alguém, que nos tinha ofendido, os sentimentos dele, depois que o perdoamos. Monsenhor Pardini deu um sorrisinho maroto e falou bem baixo:
-Perdão é um ato de você com você mesmo.
Uma tarde fria de junho, Monsenhor Pardini me convidou para um chá. Na verdade, o que ele queria era mostrar seu último invento. Mas antes que me mostrasse alguma coisa, tomamos chá de erva cidreira sem açúcar e falamos sobre a situação do país, coisas assim.
Lá pras tantas, Monsenhor Pardini veio com o seu mais novo invento. Era uma madeirinha em “T” que ele colocou em pé na mesa, bem a minha frente. Depois tirou de dentro de uma caixa uma porção de passarinhos de papelão, pintados com lápis de cor. Colocou os passarinhos encaixados no poleiro e disse:
-Esse é o meu último invento, mas só serve pra quem gosta do canto dos passarinhos.
Eu perguntei como funcionava e ele foi sucinto:
-Você arma o poleirinho com os passarinhos e fica olhando bem para eles. Quando um deles cantar, você guarda os outros na caixa e fica ouvindo o canto daquele passarinho. Depois muda pra outro e assim vai indo.
Eu fiquei um tanto intrigado e perguntei de onde saía o canto dos passarinhos. Monsenhor Pardini chegou bem perto de mim e deu uma cutucada com o indicador primeiro na minha cabeça e depois sobre o meu coração:
- Daqui e daqui! Não vai precisar prender passarinhos em gaiolas que é uma coisa que Deus não gosta.
Rimos muito e na hora em que fui embora ele me deu uma caixa com aquele seu último invento.
Cheguei em casa e montei o poleirinho e coloquei os passarinhos, só para ver como ficaria como decoração de minha sala. Era uma coisa bonita, meio infantil. Fiquei ali olhando e lembrando de Monsenhor Pardini. Então, de repente começo ouvir um canto de pássaro que não sabia de onde vinha. Olhei para o poleirinho e logo percebi que quem cantava era um passarinho de papelão amarelo como um canário. Guardei os outros na caixa e fiquei ouvindo só aquele.
Como cantava bonito! Igual um que meu avô tinha em sua casa e eu gostava de ouvir quando tinha meus cinco anos de idade. E fiquei ali ouvindo, um tempo enorme. Esqueci todos meus problemas com os maravilhosos passarinhos de Monsenhor Pardini.
Porém a experiência mais impressionante que tive com Monsenhor Pardini foi com: a máquina que vencia a morte.
Ele me chamou um dia e disse:
-Este é meu último invento. Depois disso não inventarei mais nada. Quero que seja o primeiro a experimentar “A Máquina que Vence A Morte”.
Então ele trouxe um cálice de vidro transparente, dentro dele umas bolinhas brancas, e explicou:
- Quando um ente amado e querido se for, você engole uma destas bolinhas e diz... Em mim você viverá, para sempre. Daí, você vai sentir aquela pessoa bem viva junto a você. Junto não, bem dentro de você e ali o ente querido ficará bem vivo, para sempre, vencendo a morte.
Bebemos vinho e nos despedimos, antes de sair eu disse a Monsenhor Pardini: não pare de inventar suas máquinas, continue. Ele me abraçou e disse rindo:
-Não, este é meu último invento.
Eu estava chegando do trabalho em casa cheio de problemas naquela noite. O telefone tocou e era a irmã do Monsenhor Pardini. Ela me avisou que ele tinha partido horas atrás.
Saí correndo de casa e fui até o velório. Lá estava ele sorrindo como sempre e em volta gente chorando muito, muitas pessoas. Saí dali e fui para casa, triste, muito triste mesmo. Cheguei a casa e tomei meia garrafa de vinho para diminuir a dor.
Olhei em cima do etagére e vi a máquina que vencia a morte. Descobri a taça e engoli uma bolinha daquelas.
Em pouco tempo, coloco um disco pra tocar, pego um lápis e um caderno, começo a inventar uma máquina que me faça viajar no tempo. Do passado para o futuro e do futuro de volta ao tempo presente. Quando termino o desenho, ouço uma risadinha conhecida. A risadinha de Monsenhor Pardini e uma voz que vinha bem lá de dentro de mim dizendo:
-Não disse que minha máquina vencia a morte?
(Ilustração: John Bellany - Time will Tell)
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