sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

CASAL PERFEITO, de Lya Luft





Um dia me pediram para escrever sobre o “casal perfeito”: bom para quem gosta de desafios. Minha primeira providência foi cercar com aspas o vocábulo “perfeito”.

O que justificaria o rótulo sobre o qual eu devia escrever?

Imediatamente ocorreu-me que parceiro de um casal “perfeito” precisam se querer bem como se querem bem os bons amigos, e temperar esse afeto com a sensualidade que distingue amizade de amor. Duas pessoas que compreendem, sem ressentimentos nem cobranças, a inevitável dose de periculosidades do ser humano e sua dificuldade de comunicação. Em última análise, toda a sua complicação.

A melhor pareceria deve ser aquela em que um aceita o outro sem ter de se submeter a qualquer coisa pelo outro; em que um aprecia e admira o outro, mas tem por ele ternura e cuidados. Sobretudo aquela em que um parceiro não investe no outro todo os seus projetos, à primeira decepção passando de amor a rancor.

Se o outro servir de cabide para os nossos sonhos mais extravagantes de perfeição, o primeiro vento contrário derruba o pobre ídolo que não tem culpa de nada.

No casamento saudável há um propósito geral: quero passar com você o melhor de meus dias, construir com você uma relação gostosa, importante e definitiva.

É importante não correr para os braços do outro fugindo da chatice da família, da mesmice da solidão, do tédio. É essencial não se lançar no pescoço do outro caindo na armadilha do “enfim nunca mais só!”, porque numa união com expectativas exageradas decreta-se o começo do exílio.

Amor bom, além do mais, tem de suportar e superar a convivência diária.

A conta a pagar, a empregada que não veio, o filho doente, a filha complicada, a mãe com Alzheimer, o pai deprimido, ou o emprego sem graça e o patrão grosseiro. Quando cai aquela última gota – pode ser uma trivialíssima gota –, a gente explode. Quer matar e morrer, e nos damos conta: nada mais em nossa relação é como era no começo. Não é nem de longe como planejáramos que fosse.

Não queremos continuar assim, mas não sabemos o que fazer. Ou sabemos, mas nos parece inexequível.

Na verdade, na parceria amorosa como em tudo o mais recomeçamos tudo todos os dias. Então podemos tentar começar diferentes também aqui e agora. O cotidiano conforta, os seus pequenos rituais são os marcos de nossa vida mais segura, mas também traz desencanto e monotonia.

Precisamos de criatividade num relacionamento amoroso, dizem. O problema é que quando se fala em “criatividade” numa relação a maioria pensa logo em inovações no sexo, como se a solução estivesse em novas posições, outro perfume, artifícios exóticos.

Transar bem é resultado, não meio. Como deveriam ser os filhos: fruto de um afeto vivo, não instrumento para consertar o que está falido.

Passada a primeira fase de paixão (desculpem mas ela passa, o que não significa tédio nem fim do tesão), a gente começa a amar de outro jeito. Ou a amar melhor; ou: aí é que a gente começa a amar; a querer bem; a apreciar; a respeitar; a valorizar. A mimar; a sentir falta; a conceder espaço; a querer que o outro cresça e não fique grudado na gente.

“Se você ama alguém, deixe-o livre”, estava escrito no bilhetinho que foi um dos maiores presentes que me deu alguém entre tantos muitos outros bens.

Um pouco de lucidez e um bocado de maturidade (ah, que coisa boa, o tempo) há de mostrar se – e o quê – pode ser ainda conquistado a dois.

Isso entendido, chega o momento da definição: e agora, o que fazer? Investir, se há mais possibilidades do que vazio.

Como a gente desiste fácil – porque afinal somos guerreiros ou nem estaríamos mais aqui, e porque há os filhos, os compromissos, a casa, a grana e até ainda o afeto –, vamos criar um jeito de reconstruir o que parece esfarelado. Isto é: quando há vontade, afeto, quando resta interesse. Desde que seja uma reinvenção a dois, não a submissão de um e o exílio de outro. Pois o espaço entre opressor e oprimido é um vazio.

Mas quando realmente nada mais resta de positivo?

Laços podem ser reconstituídos, remendados ou cortados. O corte se faz com mais ou menos generosidade, carinho ou hostilidade e raiva – sempre com dor. Porém nenhuma união deveria ser a sentença definitiva de aniquilamento mútuo dentro de uma jaula.



(Perdas e ganhos)



(Ilustração: Edvard Munch - The Kiss)

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