A vida é um processo de espera. Às vezes, as coisas simplesmente não acontecem no tempo esperado. Era angustiante aguardar. Teria tempo para? Pensava nisso enquanto refogava a cebola e o alho na manteiga, como orientava a receita. Cebola é a alma da comida, dizia sua mãe, metida a poeta. Quinhentos gramas de camarão. Duas xícaras de arroz arbóreo. Alho-poró. Um cálice de vinho branco seco. Um toque de laranja. Sal e pimenta a gosto. Será que risoto é uma boa escolha? Pelo menos, é prático. Deixou uma fresta na tampa. As panelas ficariam descansando, com o risoto já pronto, enquanto ia ao banheiro se maquiar.
Fez o contorno dos olhos com cuidado. Batom vermelho, no tom que todo homem gosta. Pernas depiladas. Meia-calça e espartilho pretos. Salto alto – o pé esquerdo, sabe-se lá por que razão, apertou um pouco. Unhas e cílios postiços – será que ele notaria? E se notasse, qual seria sua opinião sobre? Vestido discreto, preto – para combinar com a meia-calça –, curto, mas não demais. A intenção era valorizar sua bunda, redondinha, tamanho que quase cabe na mão de um homem. Sutiã com bojo – outra tática além dos cílios – para preencher o decote. Nas costas, as alças finas e uma abertura até o cóccix davam luz a sua pele limpa, lisa, apenas com algumas pintinhas, sem protuberância alguma.
Todo esse esforço, essa apresentação, óbvio, era para valorizar aquele momento, demonstrar a reverência que a noite merecia. Sabia que não passava de artimanha, estratagema, clichê, entretanto, queria agradar. Tudo que as pessoas fazem é para agradar as outras. Essa era outra lição de sua mãe. Os homens gostam de se sentir especiais, sabia muito bem disso. A ocasião era propícia para ressaltar e mostrar explicitamente sua intenção: não queria só sexo.
Gostava dele. Nunca estiveram a sós como ficariam hoje. Quando se beijaram, foi no trabalho, onde eram colegas. A partir disso, desencadearam-se diversos eventos que resultaram nessa noite. Eis a razão da tensão, pois havia ali, naquele apartamento de uma pessoa só, uma ânsia em ver tudo dando certo. Pouco importava o fato dele ser casado, com filhos – e qual será a desculpa que um homem casado e com filhos inventa para conseguir uma noite fora de casa? Futebol? Trabalho? Amigos? Não sabia, nem imaginava ao certo. O problema era dele, pensou. Também pensou o que essa noite traria como consequências para o futuro de ambos. Fim do casamento? Seriam somente amantes? Uma noite apenas? E no trabalho, não se falariam mais? Tinha o jantar, a casa e outros afazeres importantes para aquela noite que careciam de atenção. Era melhor parar com os devaneios tolos.
Seu telefone tocou. Era ele avisando que estava em um táxi. Dentro de alguns minutos, poderia descer para recebê-lo. A resposta, porém, foi negativa, pois estragaria a surpresa – toda a preparação, o vestido. O porteiro estava avisado. Bastava anunciar o nome e acessar o elevador. Segundo ele, aquilo estava errado, o porteiro poderia desconfiar. Porém, os dois concordaram que era uma bobagem. Afinal, qual era o problema em receber um amigo para jantar? É a coisa mais normal do mundo, falou. Mesmo assim, ele tentou retomar seu discurso estranho, dizendo que as pessoas não são trouxas, mas, enfim, tudo bem.
Ao desligar, a ânsia havia se transformado em um nervosismo absurdo, que tomava conta da situação. Já não se sentia mais confortável com as atitudes que tomou. Todo aquele clima e ambiente queriam dizer exatamente o quê? Não sabia a resposta. Não sabia e isso lhe afligia. Correu ao espelho. E a principal dúvida veio: por que, afinal, se vestiu de mulher? Se fora beijado como homem, por que se fantasiou para o principal momento? O principal motivo foi ter ouvido dele que seu rosto tinha traços femininos e que isso o atraía. Essa foi a razão, segundo seu colega de trabalho que estava a poucos instantes de entrar naquele apartamento, que o fez beijar um homem pela primeira vez em sua vida – agora, em um momento de serenidade, refletiu e teve dúvida se seria verdade ou algum tipo de mentira que homens casados atraídos por outros homens sempre contam. De qualquer forma, foi baseado nisso que resolveu se vestir de mulher, assumindo então seus traços. Acreditou que o baque seria menor. Entretanto, já não tinha certeza se a decisão foi correta, porque a surpresa poderia ser um risco. E se não o agradasse? Teria como consertar tudo e receber uma segunda chance? O sapato lhe apertava. Sentou no sofá. Retirou o pé esquerdo que o estava incomodando. O alívio de estar descalço – o pé vestido com a meia-calça ao tocar o laminado trazia uma sensação muito agradável – lhe fez esquecer um pouco de tudo. Até que a campainha tocou. Não conseguiu se erguer do sofá. O toque se repetiu mais duas vezes. Respirou fundo. Calçou outra vez os sapatos e foi até a porta atender o homem que tanto esperava.
(Um silêncio avassalador)
(Ilustração: René Magritte - the lovers)
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