Vinha devagar, ousado mas esquivo.
Começava e logo fugia de mim.
No início eu não via nada: só escutava vindo do céu um rufar, um ruflar, um tatalar de vento - e algo viajava nele.
Saí da cama, sentei-me no peitoril, e como os quartos ficavam no andar de cima podia ver longe. Abri e fechei portas enquanto todos dormiam, fui até o terraço: algo se preparava como uma celebração, nas lajes do pátio, nos canteiros de rosas, no gramado e na mata escura atrás de tudo isso.
Esfreguei os olhos para ver o que ali sobrevoava.
Depois de tanta espera e tanta busca, ele enfim chegava - para mim, para mim. No ar, no céu, enorme anjo ou demônio dourado, aquele por quem esperei.
Desci as escadas descalça, mas dessa vez vi apenas o rastro de seu voo baixo sobre o capim vazio.
De de novo e de novo eu fui chamada, me invocava aquele que queria ser descrito. Fui seduzida pelo que precisava acontecer e ser narrado em páginas e páginas de um futuro ainda impreciso.
Fui convocada.
Antes mesmo de abrir os olhos, eu sabia:
Está chegando. Hoje vou ser informada, iniciada, hoje vou contemplar o invisível, hoje vou recitar o inenarrável, hoje eu vou.
Mais uma vez saí da cama, nem me vesti porque não havia calor nem frio: havia silêncio e lua, mistura de jardim e maresia, e cheiro de cavalo. Avancei sem temor pelo gramado. Além do que minha vista podia alcançar, eu já enxergava.
Um cavalo cor de mel quer voar no meu sonho - ou no meu jardim.
Sob a lua, por cima da relva imóvel, ele começa a existir: estica o dorso, move os flancos, levanta a cabeça e fareja no ar a presença de uma menina que enfrenta o milagre. Sua crina esvoaça no vento apenas anunciado, porque ainda não é a tempestade.
Aparecem devagar as duas asas. Primeiro somente lhes diviso a linha do encaixe nos flancos - depois se destacam e desabrocham.
Tiritando na sua própria novidade, ele se desenha no vazio. O cavalo dourado brota do meu desejo: narinas nervosas, patas inquietas, é meu próprio coração que explode.
Num impulso forte ele bate as asas, primeiro ainda plantado na terra morna: hesitante.
Então começa a ventar mais, e ele se alça e sobe. O rufar das asas se mistura ao rumor do mar que não se vê, o mar impossível jaz a quilômetros e quilômetros dali, mas rumoreja aqui embaixo com água e conchas.
O voo sossegado vai por cima dos canteiros, das árvores e dos telhados, e todo o resto para: nem vez noturnas nem anjos ousam aparecer diante daquela majestade.
Só ele, o meu cavalo-anjo, volteia no céu. Faz rasantes sobre a terra. Em uma curva mais perto de mim, relincha. Sua respiração me comove. Ele suspira e arqueja.
Não vai longe. Não sai do território que estendo para ele com minha ansiedade e minhas alegrias, palavras e silêncios, no tempo sobreposto ao tempo natural.
Depois o vento enfim o leva, barco no mar perdido que há milhões de anos varria talvez este lugar.
Ele é a minha arte: vela, caravela do meu mar de dentro, e é também o fundo silencioso. Esse sentimento tão maior que eu, essa parte de mim que não me pertence, me define tanto.
Se lhe desse um nome, seria: Vidaminha.
Hoje sou adulta. Mas não se iludam: ainda saio da cama de madrugada para ver um cavalo em revoada no jardim quando venta.
Está em cada frase que escrevo.
Nesta mesma claridade de uma lua impossível, aprisionada na tela do meu computador, nesta noite verdadeira ou falsa, nesta hora nenhuma é que as coisas acontecem. Quando desabam paredes e abrem-se portas em tantos corredores dando para outros salões e novas portas, a fantasia senta-se ao pé de mim desembaraçando os cabelos.
O meu é o reino das palavras: aqui tudo pode ser dito - a cada um cabe inventar significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios.
Este é o lugar do impalpável que a muitos incomoda: são os que fecham meus livros sem ler, sacodem a cabeça - e não entenderão.
Porque eu falo para os da minha raça: os que além de racionais são também ilógicos, os bem estabelecidos que amam o imprevisível, os que na margem concreta enxergam mais que isso e não têm com quem o partilhar.
Por isso atuam nos palcos ou nos computadores ou nos ateliês, ou simplesmente vagam alertas pela sua casa quando os outros ancoraram no sono.
Sentindo-se guerreira ou mendiga, insuficiente ou esplêndida - esta que escreve não sou eu, mas algo que transborda dos meus contornos como o mar transbordava de uma concha naquela mão, na dourada infância.
E minha alma, esse cavalo alado, inocente menina ou feiticeira perversa, fará deste novelo de caos e luz o seu porto de partida, num sopro desenrolando infinitamente o nome que é todos os nomes e é a minha alegria:
Vidaminhavidaminhavidaminha...
(Mar de dentro)
(Ilustração: Mais Mkhitaryan)
Nenhum comentário:
Postar um comentário