“Você é preto demais, não vão te aprovar”, avisou o renomado Muniz Sodré. “Mas não desista”, acrescentou, em voz experiente e fraternal. O diálogo travado entre Sodré e um amigo pessoal – cujo sonho era ser aprovado num processo seletivo para professor numa universidade federal – foi revelado durante uma defesa de tese na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O conselho, vindo de ninguém menos do que Sodré, foi seguido à risca.
O trecho da conversa denuncia a profunda desigualdade que permeia as relações raciais travadas cotidianamente na sociedade brasileira. Seja implícita ou explicitamente, a mobilidade social – cujo principal elemento propulsor é o trabalho – é pautada pelo tom da pele mais escuro (ou, seja, pela raça à qual o indivíduo pertence). No Brasil, a meritocracia tem cor e é acionada segundo as circunstâncias e interesses. Mas para quem é preto/a (ou negro/a), parece que o mérito é sempre algo devido e o indivíduo é obrigado a, literalmente, correr atrás de uma conta que não lhe pertence.
O amigo de Sodré é um profissional brilhante e, rezemos, irá furar o cerco. Mas a que preço? Quantos outros/as profissionais negros/as brilhantes precisarão superar a si mesmos/as para ter o valor reconhecido? Quantos não desistirão no caminho? Quantos não aceitarão o sistema? Ou quantos sentirão que o cargo almejado, simplesmente, deixará de ter algum sentido ou relevância? Vale ressaltar que “furar o cerco” também implica em conquistar um bom ambiente de trabalho (ou seja, não ter aquele/a colega ou chefe que não aceita uma pessoa negra brilhante) e ter a “sorte” de ser contemplado/a com uma remuneração compatível com o cargo que exerce. De novo, a meritocracia vai sorrir somente para alguns com aquele sorriso do gato da Alice.
Outro dia ouvi de um aposentado negro e concursado numa importante empresa pública, uma história que também denuncia o mecanismo do racismo no ambiente do trabalho nas instituições. Lá pelos anos 1970, quando meu amigo ainda estava na ativa e assumiu um cargo de destaque no departamento de pessoal, notou que os/as candidatos/as negros/as eram substituídos/as por candidatos/as brancos/as, independente do resultado do concurso. Por exemplo, se um/a candidato/a negro/a fosse aprovado/a em primeiro lugar, o “sistema” chamava o/a candidato/a branco/a sem nenhuma vergonha alheia. O meu amigo, hoje aposentado, lutou durante anos para reverter este lamentável quadro. Atualmente, a tal empresa pública está implantando um sistema de gestão que prevê e pune a discriminação racial.
Ainda que possamos comemorar o exemplo dado por esta empresa pública, histórias como a contada por Muniz Sodré nos alertam para a persistência do problema na sociedade brasileira. Ser preto ou preta demais é um obstáculo para milhões de pessoas negras conquistarem um bom emprego e terem garantidos o direito à partilha do bem estar social.
É responsabilidade do Estado e também das organizações públicas e privadas eliminar toda e qualquer norma, prática e comportamento de discriminação nas relações cotidianas no trabalho seja na oferta de serviços, seja na relação entre profissionais. A sociedade brasileira tem o dever de destruir todo e qualquer mecanismo de racismo que gere situações de desvantagem para as pessoas negras exercerem o direito ao emprego público ou privado. Pretos e pretas demais, sim. E daí?
(Portal Áfricas)
(Ilustração: xfig african painter - Masila)
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