Parou diante de um edifício atarracado da Rua Réaumur e leu agastado, como lhe acontecia sempre: Jacques Delarue, tabelião, 2º andar. Tabelião! Entrou, tomou o elevador. "Espero que Odette não esteja, pensou".
Estava. Mathieu percebeu-a através da porta envidraçada da sala de estar. Estava sentada num sofá, elegante, alta e limpa até a insignificância. Lia. Jacques dizia de bom grado: "Odette é uma das poucas mulheres de Paris que acham tempo para ler".
- O Sr. Mathieu quer falar com madame? - indagou Rosa.
- Sim, quero dizer-lhe bom dia, mas previna meu irmão de que irei vê-lo no escritório dentro de alguns minutos.
Empurrou a porta. Odette ergueu seu belo rosto ingrato e pintado.
- Bom dia, Thieu - disse contente. - É minha visita que você veio fazer?
- Sua visita?
Ele contemplava com uma simpatia confusa aquela fronte alta e calma e aqueles olhos verdes. Era bela, sem dúvida, mas de uma beleza que parecia sonegar-se ao olhar. Acostumado a rostos como o de Lola, cuja sentido se impunha de imediato, brutalmente, Mathieu tentara cem vezes reter em conjunto aqueles traços escorregadios, mas escapavam, o conjunto desfazia-se a cada instante e o rosto de Odette guardava seu decepcionante mistério burguês.
- Gostaria que visita fosse para você - disse -, mas tenho que ver Jacques, preciso de um favor.
- Não tenha tanta pressa assim - disse Odette. - Jacques não vai fugir. Sente-se.
Arranjou-lhe um lugar ao lado dela.
- Cuidado - acrescentou sorrindo. - Um desses dias vou zangar-me. Você me esquece. Tenho direito de uma visita pessoal. Você prometeu.
- Você é que prometeu receber-me um destes dias.
- Como é delicado - disse ela, sorrindo -, não deve estar com a consciência tranquila.
Mathieu sentou-se. Gostava de Odette, mas não sabia nunca o que dizer-lhe.
- Como vai, Odette?
Pôs certo calor na voz para dissimular a vulgaridade da pergunta.
- Muito bem. Sabe aonde fui esta manhã? A Saint-Germain, com o carro, para ver Françoise. Isso me encantou.
- E Jacques.
- Muito trabalho, ultimamente. Quase não o vejo mais. Porém, sua saúde é extraordinária. Como sempre.
Mathieu sentiu bruscamente um profundo desprazer. "Ela pertence a Jacaques", pensou. Contemplava com mal estar o braço moreno e fino que saía de um vestido muito simples, apertado na cintura por um cordão vermelho, quase um vestido de mocinha. O braço, o vestido, o corpo por baixo do vestido, tudo pertencia a Jacques, como os móveis, a secretária de mogno, o sofá. Essa mulher discreta e pudica recendia a posse. Houve um silêncio e em seguida Mathieu voltou à voz quente e ligeiramente nasal que conservava para Odette.
- Muito lindo o seu vestido - observou.
- Oh! escute - disse Odette com um riso indignado -, deixe esse vestido sossegado. Todas as vezes que você me vê, fala de meus vestidos. Deixe isso e diga-me o que fez esta semana.
Mathieu riu. Sentia-se agora bem disposto.
- Pois é justamente a propósito desse vestido que quero falar.
- Meu Deus, que será?
- Estou pensando se você não deveria usar brincos com eles.
- Brincos?
Odette olhou-o de um modo singular.
- Acha vulgar? - indagou Mathieu.
- Não, absolutamente. Mas tornam o rosto indiscreto. - E acrescentou, sem transição, numa risada: - Você estaria por certo muito mais à vontade comigo se usasse brincos.
- Por quê? Não creio - disse Mathieu vagamente.
Estava surpreendido, pensava: "Realmente não é nada tola". Mas a inteligência de Odette era como sua beleza. Tinha algo esquivo.
Houve um silêncio. Mathieu não soube mais o que dizer. No entanto, não tinha vontade de sair. Gozava uma espécie de quietude. Odette disse gentilmente:
- Não devo retê-lo mais. Vá ver Jacques. Você parece preocupado.
Mathieu levantou-se. Pensou que ia pedir dinheiro a Jacques e sentiu um formigamento na ponta dos dedos.
- Até logo, Odette - disse afetuosamente. - Não, não se levante. Voltarei para me despedir.
"Até que ponto será uma vítima?", indagava, batendo à porta de Jacques. "Com esse gênero de mulheres nunca se sabe".
- Entre - disse Jacques.
Levantou-se, atento e muito empertigado, e avançou para Mathieu.
- Bom dia, velho - disse com entusiasmo. - Como vais?
Parecia muito mais jovem do que Mathieu, embora fosse mais velho. Mathieu achava que ele estava engordando na cintura. No entanto, devia usar cinta.
- Bom dia - disse Mathieu com um sorriso afável.
Sentia-se em falta. Há vinte anos se sentia em falta quando via o irmão ou pensava nele..
- Então, Mathieu, que bons ventos?
Mathieu fez um gesto de aborrecimento.
- Alguma coisa não vai? - indagou Jacques. - Senta. Um uísque?
- Que vá - disse Mathieu. Sentou-se com um nó na garganta. Pensava: "Bebo o uísque e dou o fora sem dizer nada". Mas já era tarde. Jacques sabia muito bem o que ele queria e pensaria "Não teve coragem de dar a facada". Jacques permanecia de pé. Pegou a garrafa e serviu duas doses.
- É a última garrafa - disse -, mas não comprarei outra antes do outono. Digam o que quiserem, um bom gin fizz é bem melhor com calor, não acha?
Mathieu não respondeu. Olhava sem doçura aquele rosto rosado e fresco do rapaz. Jacques sorria inocentemente, toda a sua pessoa recendia a inocência, mas os olhos eram duros. "Banca o inocente", pensou Mathieu com raiva. "Sabe muito bem por que vim e está se fazendo de desentendido."
Disse rispidamente:
- Não te iludes, por certo, sabes que vim pedir-te dinheiro.
Agora não podia mais recuar. Já seu irmão arqueava as sobrancelhas com um ar de profunda surpresa. "Não me perdoará nada", pensou Mathieu irritado.
- Não, não imaginava isso, por que o suspeitaria? Queres insinuar que é esse o único fim de tuas visitas?
Sentou-se, sempre muito correto, cruzou as pernas com certa moleza como para compensar a rigidez do busto. Vestia um magnífico terno esporte de casimira inglesa.
- Não quero insinuar coisa alguma - disse Mathieu. Piscou e acrescentou apertando com força o copo: - Mas preciso de quatro mil francos de hoje para amanhã.
"Vai dizer não. Que recuse logo e que eu possa dar o fora!" Mas Jacques não se apressava. Era tabelião, tinha tempo.
- Quatro mil - disse, meneando a cabeça como um conhecedor. - Puxa!
Estendeu as pernas e olhou os sapatos com satisfação.
- Você me diverte, Thieu, você me diverte e você me instrui. Oh! não leve a mal o que estou dizendo - atalhou diante de um gesto de Mathieu. - Não quero criticar, não quero censurar tua conduta, mas afinal eu reflito, me interrogo, vejo isso de cima, como "filósofo", diria, se não estivesse falando com um filósofo. Sabes, quando penso em ti, fico mais convencido ainda de que não se deve ser um um homem de princípios. Você está cheio de princípios, mas não se submete a eles. Em teoria não há ninguém mais independente. Isto é muito bom. Você está acima das classes. Mas eu pergunto: que aconteceria se eu não existisse? Observe-se que, para mim, eu não tenho princípios, é até uma felicidade poder ajudar-te de quando em vez. Mas parece-me que com as tuas ideias eu faria questão de não dever nada a um horroroso burguês. Porque eu sou um horroroso burguês - acrescentou, rindo alegremente.
Continuou, sem parar de rir:
- E há pior, você, que cospe na família, você se aproveita do parentesco para dar facadas. Sim, porque afinal não virias a mim se eu não fosse teu irmão.
Assumiu um ar de sincero interesse:
- No fundo, bem no fundo, isso não te aborrece um pouco?
- Que posso fazer? - disse Mathieu, rindo igualmente.
Não ia travar uma discussão de ideias. Essas discussões acabavam sempre mal com Jacques. Mathieu perdia imediatamente o sangue-frio.
- Com efeito - disse Jacques secamente. - Mas não crês que com um pouco de organização...? É contrário a tuas ideias, sem dúvida. Não quero dizer que sejas culpado, veja bem. Para mim a culpa é dos teus princípios.
- Você sabe - retrucou Mathieu para dizer alguma coisa -, não ter princípios é ainda um princípio...
- Um mínimo! - disse Jacques.
"Agora", pensou Mathieu, "ele vai topar." Mas olhou o rosto cheio do irmão, sua fisionomia aberta, porém obstinada, e pensou inquieto. "Parece difícil". Felizmente Jacques retomava a palavra.
- Quatro mil - repetiu. - Uma necessidade súbita? Porque, enfim, na semana passada quando vieste aqui... me pedir um pequeno favor, não precisavas ainda.
- É - disse Mathieu - desde ontem...
Pensou rapidamente em Marcelle, reviu-a sinistra e nua no quarto cor de rosa e acrescentou num tom angustiado que surpreendeu a si próprio:
- Jacques, preciso do dinheiro.
Jacques encarou-o com curiosidade e Mathieu mordeu os lábios. Os dois irmãos não tinham por hábito exprimir assim com tanta vivacidade seus sentimentos.
- A esse ponto? Engraçado. Você... de costume pede dinheiro porque não sabe ou não quer organizar a sua vida, mas nunca teria imaginado... Naturalmente, não te pergunto nada - acrescentou com uma expressão ligeiramente interrogativa.
Mathieu hesitava. "Digo que é para os meus impostos? Não. Ele sabe que os paguei em maio."
- Marcelle está grávida - disse bruscamente.
Sentiu que corava e deu de ombros. Por que, afinal? Por que aquela vergonha súbita? Olhou o irmão de frente, com olhos agressivos. Jacques pareceu interessar-se.
- Vocês queriam um filho?
Fingia não compreender.
- Não - disse Mathieu, num tom ríspido. - Foi um acidente.
- Estava espantado - disse Jacques -, mas afinal você podia ter desejado levar até o fim tuas experiências à margem da ordem estabelecida.
- Pois não foi isso, em absoluto.
Houve um silêncio e Jacques indagou, muito à vontade:
- E quando será o casamento?
Mathieu enrubesceu de cólera. Como sempre, Jacques se recusava a encarar honestamente o problema, girava obstinadamente em torno, e durante esse tempo seu espírito procurava um ninho de águia de onde pudesse fixar um olhar agudo sobre a conduta dos outros. O que quer que se dissesse ou fizesse, o primeiro impulso dele era elevar-se acima do debate. Não sabia ver senão de cima, tinha a paixão dos ninhos de águia...
- Tomamos a decisão de fazê-la abortar - disse Mathieu com brutalidade.
Jacques não pestanejou.
- Já encontrou um médico? - indagou em tom neutro.
- Já.
- Um médico seguro? Segundo o que você me disse, a saúde dessa mulher é delicada.
- Tenho amigos que me garantem.
- Sim - disse Jacques -, sim, evidentemente.
Fechou os olhos um instante, abriu-os e juntou as mãos pelas pontas dos dedos.
- Em suma - disse -, se compreendo exatamente o que acontece é o seguinte: acabas de saber que tua amiga está grávida. Não queres casar por questões de princípios, mas te consideras com uma responsabilidade tão estrita quanto a do casamento. Não querendo nem casar nem prejudicar-lhe a reputação, resolveste fazê-la abortar nas melhores condições possíveis. Teus amigos recomendaram um médico de confiança, o qual exige quatro mil francos. Tens que arranjar o dinheiro. Não é isso?
- Exatamente! - disse Mathieu.
- E por que precisas do dinheiro de hoje para amanhã?
- O médico parte para a América dentro de oito dias.
- Bom - disse Jacques. - Compreendo.
Ergueu as mãos à altura dos olhos e encarou-as com a expressão precisa de quem fosse chegar às conclusões necessárias. Mas Mathieu não se iludiu. Um tabelião não conclui tão depressa assim. Jacques abaixara as mãos e as pousara nos joelhos. Afundara na poltrona e seus olhos já não brilhavam. Disse com voz mole:
- São muito severos neste momento na repressão ao aborto.
- Eu sei - disse Mathieu -, de vez em quando ficam severos. Põem na cadeia uns pobres-diabos sem proteção, mas os grandes especialistas nunca são atingidos.
- Queres dizer com isso que há uma injustiça. Sou da mesma opinião. Mas não desaprovo inteiramente os resultados. Pela própria força das circunstâncias, pobres-diabos são ervanários ou "fazedores de anjos", que liquidam uma mulher com seus instrumentos sujos. As batidas estabelecem uma seleção. Já é alguma coisa.
- Enfim... - disse Mathieu já irritado. - Venho pedir quatro mil francos.
- E... - atalhou Jacques - tens certeza de que o aborto está de acordo com os teus princípios?
- Por que não?
- Não sei, você é que deve saber. Você é pacifista por respeito à vida humana, e vai destruir uma vida.
- Estou decidido. Aliás, eu sou pacifista, mas não respeito a vida humana. Você está confundindo.
- Ah! Pensei... - disse Jacques.
Considerava Mathieu com uma serenidade divertida.
- Eis que te enfias na pele de um infanticida. Não te vai bem a fantasia, Mathieu.
"Tem medo que me peguem", pensou Mathieu, "não me dará um franco." Fora preciso dizer-lhe: "Se pagares não correrás nenhum risco, irei ver um médico hábil e que não figura nas listas da polícia. Se recusares terei de mandar Marcelle a um charlatão e não garanto mais nada, porque a polícia os conhece a todos e pode de um momento para outro botar-lhes as mãos". Mas tais argumentos eram diretos demais para terem influência sobre Jacques. Mathieu disse simplesmente:
- Um aborto não é um infanticídio.
Jacques pegou um cigarro e acendeu.
- Sim - disse com displicência. - Um aborto não é um infanticídio, é um assassínio "metafísico".
Acrescentou com seriedade:
- Meu pobre Mathieu, não tenho objeções contra o assassínio metafísico, como não tenho contra outros crimes perfeitos. Mas que você cometa um assassínio metafísico, você, assim como você é... - estalou a língua numa censura - isso não, seria um desafinamento...
Acabou, Jacques recusava. Mathieu ia poder sair. Limpou a voz e indagou por descargo de consciência:
- Então não me ajudas?
- Compreenda-me - disse Jacques. - Não recuso ajudar. Mas seria realmente ajudar? Estou persuadido, de resto, que encontrarás com facilidade o dinheiro.
Levantou-se subitamente como se tivesse tomado uma decisão e pousou amistosamente a mão sobre o ombro do irmão.
- Escuta, Thieu - disse com calor -, vamos dizer que recusei. Não quero ajudar-te a mentir a ti mesmo. Mas vou propor outra coisa.
Mathieu que já se levantara tornou a sentar e sua velha cólera fraternal o invadiu. Aquela suave e decidida pressão sobre o ombro era-lhe intolerável. Inclinou a cabeça para trás e viu o rosto diminuído de Jacques.
- Mentir a mim mesmo? Ora, Jacques, diga que não quer se meter num negócio de aborto, que não aprova isso, que não tem dinheiro, está no seu direito e não terei rancor. Mas para que falar em mentira? Não há mentira nisso. Não quero um filho, acontece-me um, suprimo-o, eis tudo.
Jacques retirou a mão, deu alguns passos, refletiu. "Vai me fazer um discurso", pensou Mathieu, "eu não deveria ter topado a discussão."
- Mathieu - disse Jacques, com clareza -, conheço-te melhor do que pensas e agora estou assustado. Há muito eu temia algo semelhante. Essa criança que vai nascer é o resultado lógico de uma situação em que te meteste voluntariamente e queres suprimi-la porque não desejas arcar com as consequências de teus atos. Queres que te diga a verdade? Não mentes talvez a ti mesmo neste instante preciso, mas é tua vida inteira que se constrói sobre uma mentira.
- Não faça cerimônia - disse Mathieu -, esclareça-me acerca do que escondo a mim mesmo. - Sorria.
- O que escondes - disse Jacques - é que és um burguês envergonhado. Eu voltei à burguesia depois de inúmeros erros, fiz um casamento de conveniência, mas você é burguês por gosto, por temperamento, e é teu temperamento que te empurra para o casamento. Porque você está casado, Mathieu - disse ele com força.
- Isso é novidade - disse Mathieu.
- Sim, está casado, só que pretende o contrário por causa de suas teorias. Adquiriste hábitos com essa mulher. Quatro vezes por semana vais tranquilamente encontrá-la e passas a noite com ela. E isso dura há sete anos. Não tem mais nada de aventura. Você a estima, sente que tem obrigações para com ela, não a quer abandonar. Estou certo de que não procuras unicamente o prazer; por maior que tenha sido, deve ter-se embotado. Na realidade, deves sentar-te à noite junto dela e contar longamente os acontecimentos do dia, pedir conselhos nos momentos difíceis.
- Evidentemente - disse Mathieu, erguendo os ombros.
- Pois bem, podes dizer-me em que isso defere do casamento? O fato de não morarem juntos?
- A abstenção da coabitação - disse Mathieu, ironicamente. - Um nada!
- Imagino muito bem que para você essa abstenção não deve ser um grande sacrifício.
"Nunca dissera tanto", pensou Mathieu, "é um revide." Devia sair batendo a porta. Mas Mathieu sabia que ficaria até o fim. Sentia um desejo combativo e maldoso de conhecer a opinião do irmão.
- Para mim... - disse. - Por que diz que não deve ser um sacrifício para mim?
- Porque com isso você ganha a comodidade, uma aparência de liberdade. Tens todas as vantagens do casamento e aproveitas os princípios para recusar os inconvenientes. Recusas regularizar a situação, o que é muito fácil e cômodo, pois, se alguém sofre, não é você.
- Marcelle partilha minha ideias acerca do casamento - disse Mathieu, arrogante. Ouvia-se pronunciando nitidamente cada palavra e se achava profundamente desagradável.
- Oh! - disse Jacques - se não as tivesse, o orgulho a impediria de confessá-lo. sabes o que não entendo? Você, tão disposto sempre a profligar uma injustiça, você humilha essa mulher há anos, pelo mero prazer de afirmar que estás de acordo com teus princípios. Se realmente subordinasses tua vida a tuas ideias! Mas eu te repito, estás casado, tens um apartamento agradável, recebes bons vencimentos em dia certo, não tens nenhuma inquietação quanto ao futuro, porque o Estado te garante uma aposentadoria. E gostas desta vida calma, regrada, uma vida de funcionário.
- Escuta - disse Mathieu -, há um mal-entendido entre nós; pouco me importa ser não burguês. O que eu quero, apenas... - acabou a frase entre os dentes - é conservar a minha liberdade.
- Eu imaginava - disse Jacques - que a liberdade consistia em olhar de frente as situações em que a gente se meteu voluntariamente e aceitar as responsabilidades. Não é por certo tua opinião: condenas a sociedade capitalista e, entretanto, és funcionário nessa sociedade. Proclamas uma simpatia de princípio pelos comunistas, mas tens cuidado em não te comprometeres. Nunca votaste. Desprezas a classe burguesa e, no entanto, és um burguês, filho e irmão de burgueses, e vives como um burguês.
Mathieu fez um gesto, mas Jacques não se deixou interromper.
- Estás, no entanto, na idade da razão, meu caro Mathieu - disse com uma piedade ralhadora. - Mas isso você também o esconde, quer fazer-se de mais moço. Aliás... talvez seja injusto. Talvez não tenhas ainda a idade da razão, é uma idade moral, a que cheguei antes de ti.
"Pronto", pensou Mathieu, "vai-me falar de sua mocidade." Jacques era muito orgulhoso de sua juventude, era sua garantia, permitia-lhe defender o partido da ordem em boa consciência. Durante cinco anos macaqueara com aplicação as loucuras em voga, fora surrealista, tivera algumas aventuras lisonjeiras e chegara mesmo a respirar por vezes, antes do amor, um lenço embebido em éter. Um belo dia acertara o passo. Odette trazia-lhe seiscentos mil francos de dote. Ele escrevera a Mathieu: "É preciso ter a coragem de fazer como todo mundo para não ser como ninguém". E comprara um cartório.
- Não censuro tua mocidade - disse - Ao contrário. Você teve a sorte de evitar alguns maus passos. Mas afinal não lamento a minha, tampouco. No fundo, tínhamos ambos que esbanjar os instintos daquele velho pirata que foi nosso avô. Só que eu os esbanjei por atacado e você os está gastando no varejo. Tens ainda que atingir o fundo. Acho que a princípio você não era muito menos pirata do que eu. É o que te perde. Tua vida não passa de um perpétuo compromisso entre teu pendor, embora modesto, pela revolta e pela anarquia, e tuas tendências profundas que te empurram para a ordem, a saúde moral, a rotina quase. O resultado? Ficaste um velho estudante irresponsável. Mas, meu caro, olha bem para mim. Você tem trinta e quatro anos, seus cabelos já estão grisalhos - não tanto quanto os meus, é certo -, você nada mais tem de mocinho, não te vai bem a vida boêmia. Aliás, o que é isso, a boêmia? Era muito divertido há cem anos, agora... um punhado de desajustados sem perigo para ninguém e que perderam o trem, simplesmente. Você está na idade da razão, Mathieu, está ou deveria estar - repetiu distraidamente.
- Ora - disse Mathieu -, a idade da razão é a idade da resignação. Não me interessa, creia.
Mas Jacques não o escutava. Seu olhar tornou-se límpido e alegre e ele acrescentou:
- Escuta. Como te disse, vou fazer uma proposta. Se recusares, não te será difícil encontrar os quatro mil francos, isso não me causa remorso. Ponho dez mil francos à tua disposição se casares com tua amiga.
Mathieu previra o golpe. De qualquer maneira aquilo lhe fornecia uma saída digna.
- Agradeço, Jacques - disse levantando-se -, você é realmente muito bom, mas não serve. Não quero dizer que você esteja inteiramente errado, mas, se tiver de casar-me um dia, será quando sentir vontade de fazê-lo; agora, seria uma cabeçada estúpida para sair do buraco.
Jacques levantou-se igualmente.
- Reflete. Não há pressa. Tua mulher será muito bem recebida aqui; não preciso dizê-lo. Confio na tua escolha e Odette se sentirá feliz em tratá-la como amiga. Aliás, minha mulher ignora por completo a tua vida íntima.
- Já refleti - disse Mathieu.
- Como queiras - observou Jacques, cordialmente. "Será que ele está muito aborrecido?", pensou. E acrescentou: - Quando apareces?
- Vou almoçar domingo - disse Mathieu. - Adeus.
- Adeus - disse Jacques. - E... você sabe, se voltar atrás, minha proposta fica de pé!
Mathieu sorriu e saiu sem responder. Desceu a escada correndo. "Até que enfim! Até que enfim!" Não estava alegre, mas tinha vontade de cantar. Agora Jacques devia estar sentado à escrivaninha, o olhar perdido no vago, com um sorriso triste e grave: "Esse rapaz me inquieta, entretanto está na idade da razão..." Ou talvez tivesse ido ver Odette. "Mathieu me inquieta. Não posso dizer-te por quê. Mas ele não é sensato." Que diria ela? Desempenharia o papel de esposa refletida ou se restringiria a aprovar discretamente sem tirar o nariz de cima do livro?
"Diabo!", pensou Mathieu, "esqueci de dizer adeus a Odette". Teve remorso: estava com predisposição para o remorso. "Será verdade, será que mantenho Marcelle numa posição humilhante!" Lembrou-se das violentas manifestações de Marcelle contra o casamento. "Aliás, eu lhe propus casamento certa vez... Há cinco anos." Marcelle caçoara dele. "Será que sinto um complexo de inferioridade diante do meu irmão?" Não, não era isso. Por maior que fosse seu sentimento de culpa, Mathieu nunca deixara de se considerar com razão perante Jacques. "Sim", pensou. "Mas eu gosto desse salafrário. Quando não me envergonho diante dele, sinto vergonha por ele. Ah! a família é como a varíola, a gente tem quando criança e fica marcada para o resto da vida".
(A Idade da Razão; tradução de Sérgio Millet)
(Ilustração: Virginia Derryberry)
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