sábado, 29 de abril de 2017

WHAT THEN? / E DAÍ?, de W.B. Yeats







His chosen comrades thougth at school

He must grow a famous man;

He thought the same and lived by rule,

All his twenties crammed with toil;

'What then?', sang Plato's ghost, ''what then?'

Everything he wrote was read,

After certain years he won

Sufficient money for his need,

Friends that have been friends indeed;

'What then?', sang Plato's ghost, 'What then?'

All his happier dreams came true -

A small old house, wife, daughter, son,

Grounds where plum and cabbage grew,

Poets and Wits about him drew;

'What then?' sang Plato's ghost, 'what then?'

'The work is done,' grown old he thought,

'According to my boyish plan;

Let the fools rage, I swerved in nought,

Something to perfection brought;'

But louder sang that ghost 'What then?'



Tradução de Celso Japiassu:



Seus melhores amigos na escola

Achavam que ele iria ser famoso;

Ele também achava e assim se preparou,

Dedicou seus vinte anos ao labor;

"E daí?" cantou o fantasma de Platão, "e daí?"

Tudo o que escreveu, tudo foi lido,

Depois de algum tempo tinha ganho

Dinheiro para o que pudesse precisar,

Amigos que foram na verdade amigos;

"E daí?", cantou o fantasma de Platão,"e daí?"

Realizou seus mais felizes sonhos:

Uma antiga casinha, esposa e um casal de filhos,

Canteiros de ameixeira e couve,

Sábios e poetas em sua volta;

"E daí?", cantou o fantasma de Platão, "e daí?"

"Tudo está feito", disse ele quando velho,

“De acordo com meus sonhos de menino”;

Deixa os tolos com seu ódio, não me desviei,

Alguma coisa eu trouxe à perfeição";

"E daí?" - cantou mais alto a sombra de Platão.





(Ilustração: Max Beckmann - Maskenball)




quarta-feira, 26 de abril de 2017

A INTERNACIONALIZAÇÃO DO MUNDO, de Cristovam Buarque







Durante debate em uma Universidade, nos Estados Unidos, fui questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem americano introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Foi a primeira vez que um debatedor determinou a ótica humanista como o ponto de partida para uma resposta minha.

De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso.

Respondi que, como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, podia imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a Humanidade. 

Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Os ricos do mundo, no direito de queimar esse imenso patrimônio da Humanidade.

Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.

Durante o encontro em que recebi a pergunta, as Nações Unidas reuniam o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu disse que Nova York, como sede das Nações Unidas, deveria ser internacionalizada. Pelo menos Manhatan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza especifica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o pais onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.

Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa.



(Ilustração: Paulo Farias)



domingo, 23 de abril de 2017

OLHAR, de Glauco Mattoso






Eu sei que atrás do seu olhar havia

um outro olhar como uma chama escrava:

Sob o olhar de Raquel o olhar de Lia

no pórtico das órbitas velava.



Quando às vezes Raquel o olhar cravava

em alguém ou a alguém Raquel seguia

eram os olhos da irmã o que se via,

era o olhar da pastora que ali estava.



Debruça-se o pastor no olhar do filho.

Que é que via nos olhos que fitava?

Nos olhos bem-amados que é que via?



Por certo de Raquel o estranho brilho.

Mas atrás desse brilho bruxuleava

o olhar de Lia, Lia, sempre Lia.





(Ilustração: Ginette Beaulieu)




quinta-feira, 20 de abril de 2017

TERRA SONÂMBULA, de Milton Hatoum








Há dois anos, em julho, revisitei sem nostalgia "El Norte Grande", como os chilenos nomeiam o deserto. Depois voltei a Santiago e viajei de trem à região de Bío Bío, onde fiquei uns dias numa pequena cidade onde nasceram dois artistas chilenos: o poeta Nicanor Parra e o pianista Claudio Arrau.

No fim de uma tarde gelada, entrei num café da calle Arauco, conde uma moça morena olhava com ar pensativo um livro aberto sobre a mesinha. Aproveitei a pausa da leitura e perguntei onde ficava a casa de infância de Arrau. Percebeu meu sotaque e respondeu em português: "Muito perto daqui... Nada fica tão longe, só a África".

Estranhei a última frase, que terminava num continente. Falava com um leve sotaque brasileiro, e isso aumentou minha curiosidade. Me sentei ao lado dela e pedi um conhaque.

Disse que era moçambicana, conhecia as interpretações de Arrau e sabia que o famoso pianista, ainda criança, viajara com sua mãe à Alemanha.

"Foi embora do Chile quando tinha uns sete anos", disse Filomena. "Mais ou menos com essa idade, eu saí da África e vim para cá. Eu também queria ser pianista, mas não tive a sorte de Arrau..."

Ficou séria, como se estivesse arrependida do que acabara de dizer.

"Não foi uma questão de sorte. Eu não tinha o talento de Claudio Arrau nem tinha uma mãe para me levar à Alemanha. Meu pai fugiu do Chile poucos meses depois do golpe militar. Viajou para Moçambique e conheceu minha mãe durante a luta pela Independência. Depois começou a guerra civil. Sou filha dessa guerra e dessa aventura amorosa. Em 1990, vim com meu pai ao Chile..."

Mas você não esqueceu a língua materna.

"Estudei português com um professor brasileiro... Leio e falo bem, mas não consigo escrever corretamente, o espanhol se intromete... Meu pai aprendeu português e ronga uma língua africana... Minha mãe conversava comigo em ronga e português. Me formei em Santiago... Durante o inverno trabalho aqui, num hospital da cidade... Milhares de turistas vêm esquiar no sul... Cuido dos acidentados... Latino-americanos com fraturas, muitos são brasileiros... Ainda bem que os brasileiros não sabem o que é uma guerra fratricida... Nessa loucura assassina, não tem dia nem noite, tudo é pesadelo, sem sonhos..."

Você se lembra disso?

"Muitas lembranças daquele tempo foram apagadas... Às vezes, a memória morre para nos deixar vivos, para nos dar esperança. A lembrança mais forte? Uma manhã ensolarada... Minha mãe não acordou em casa... Eu não entendia isso... Uma criança de sete anos não pode entender. Ficava em casa com os meus parentes africanos e meu pai saía para procurar minha mãe... Meses e meses de busca... Ele me dizia que ela ia voltar... Até hoje, ninguém sabe o que aconteceu. Me lembro vagamente das acácias e do mar... E também das rezas das pessoas que pediam chuva, das vozes em outras línguas indígenas. Às vezes, sinto saudade de Maputo, uma saudade vaga, que eu não sei definir, não sei dizer... A leitura desse livro me levou de volta a Moçambique, ao sofrimento da guerra... Mas não é só a guerra. É um mundo de magia e horror, de morte e sabedoria, de tantas perdas e também de uma busca... A história de um menino, um dos personagens, é uma viagem às vozes da minha infância... Como se eu mesma reaprendesse a ler, a escrever, a sonhar... Os romances fazem isso, inventam vidas paralelas..."

Olhou para a escuridão lá fora, disse que nessa noite ia nevar nas montanhas.

Você se sente chilena ou moçambicana?

"Não sei", disse Filomena. "A pátria não é uma escolha? Um sentimento? Meu pai é chileno... Ele me diz isso com convicção. Moçambique é a pátria da minha mãe desaparecida. Dois países tão diferentes..."

Filomena pediu licença e se levantou: tinha que ir ao hospital, o plantão começava às sete.

"A casa onde nasceu Claudio Arrau é um museu... Você atravessa a Praça da Constituição e dobra à esquerda. Mas agora o museu não está aberto, só amanhã..."

Quando fechou o livro, li o título do romance de Mia Couto: Terra Sonâmbula.




(OESP; 11/9/2015)



(Ilustração: Frank Benson; la lectora - 1910)

















segunda-feira, 17 de abril de 2017

SETE ANOS DE PASTOR JACÓ SERVIA, de Camões




                                              
                              

Sete anos de pastor Jacó servia

Labão, pai de Raquel serrana bela,

Mas não servia ao pai, servia a ela,

Que a ela só por prêmio pretendia.



Os dias na esperança de um só dia

Passava, contentando-se com vê-la:

Porém o pai usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.



Vendo o triste pastor que com enganos

Assim lhe era negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida,



Começou a servir outros sete anos,

Dizendo: Mais servira, se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida.





(Ilustração: Luca Giordano; 
Jacob and Rachel - c.1690)



sexta-feira, 14 de abril de 2017

MONTAIGNE, de André Gide






Montaigne é autor de um só livro: Ensaios. Mas nesse livro único, escrito sem estrutura preestabelecida, sem método, ao acaso dos acontecimentos e das leituras, procura entregar-se por inteiro aos seus leitores. Publica quatro edições sucessivas dos Ensaios. Ia dizer quatro moagens: a primeira, com 47 anos, em 1580. Volta ao texto, corrige-o, remata-o e, ao morrer (em 1592) deixa um exemplar da obra sobrecarregado de variantes e de acréscimos, que as edições posteriores têm que tomar em consideração. Entrementes Montaigne viaja pela Alemanha do Sul e pela Itália (1580-81) e desempenha, de 1581 a 1585, as importantes funções de Maire (1) de Bordéus. Essa experiencia da vida pública, nesses tempos assaz perturbados pelas guerras religiosas, essas observações colhidas nos países estrangeiros, Montaigne as comunicará a seus leitores para que delas se beneficiem.

Mas desde então, desviando o espírito dos negócios públicos para ocupar-se tão somente consigo mesmo (quero dizer com seu pensamento próprio), vai fechar-se em sua "livraria"(2). E até a morte não mais deixará o castelo de Périgord, onde nasceu. Escreve novos capítulos, que formarão o terceiro livro dos Ensaios; revê os dois primeiros, corrige-os, melhora-os, junta-lhes seiscentos acréscimos. Acontece-lhe também, tornando-o mais pesado, atravancar o texto original com montes de citações colhidas em suas constantes leituras, pois Montaigne continua persuadido de que tudo foi dito, e preocupado com mostrar que o espírito do homem em toda parte e em todos os tempos permanece igual em sua essência Essa abundância de citações, que tornam certos capítulos dos Ensaios um bolo compacto de autores gregos e latinos, nos induziria a duvidar da originalidade de Montaigne, não fosse ela viva a ponto de sobrepujar a mixórdia.

O exibicionismo erudito não era peculiar a Montaigne, nessa época em que a cultura grega e romana ainda subia à cabeça. Observa Gibbon, muito judiciosamente, que o estudo das letras antigas, bem anterior ao início do renascimento, antes retardou do que fez progredir o desenvolvimento intelectual dos povos do Ocidente. É que em tal estudo se procurava, então, menos uma inspiração e um trampolim do que modelos. A erudição no tempo de Bocácio e Rabelais pesava sobre as inteligências, e longe de ajudá-las a se libertarem as sufocava. A autoridade dos antigos, e em particular de Aristóteles, atolava a cultura numa rodeira, e durante o século XVI a Universidade de Paris quase que só formou pedantes e parlapatões

Não chega Montaigne a rebelar-se contra essa erudição livresca, mas soube tão bem assimilá-la, fazê-la sua, que em nada ela lhe perturba o pensamento. E nisso se diferencia dos demais. Quando muito, atendendo a moda do dia, atopeta seus escritos de citações. Mas observa: "De que nos vale ter o ventre cheio de viandas se não se digerem, se não se transformam em nós mesmos, se não nos engordam e fortalecem?" (Livro I, cap. 25). Também, e gostosamente, se compara às abelhas que "rapinam aqui e acolá as flores mas, em seguida, com seu furto fabricam o mel, que é exclusivamente seu".

O êxito dos Ensaios seria inexplicável sem a extraordinária personalidade do autor. Que novidade trazia ao mundo? O conhecimento de si mesmo; e qualquer outro conhecimento lhe parece incerto; mas o ser humano que descobre, e que nos revela, é tao autêntico, tão verdadeiro, que nele todos os leitores dos Ensaios se reconhecem.

Em cada época da história uma imagem convencional da humanidade tenta cobrir esse ser real. Montaigne afastará a fantasia para alcançar o essencial; se o consegue, fá-lo por um esforço assíduo de singular perspicácia: opondo a convenção, as crenças aceitas, aos conformismos, um espírito crítico sempre alerta, a um tempo flexível e tenso. Malabarista, com tudo divertido, sorridente, indulgente mas sem complacência, procura conhecer, porém não moralizar.

Para Montaigne o corpo importa tanto quanto o espírito; não separa um do outro e evita cuidadosamente apresentar-nos seu pensamento de um modo abstrato. É portanto muito importante vê-lo antes de ouvi-lo. Aliás, ele próprio nos fornece todos os elementos de seu retrato de corpo inteiro. Observemo-lo.

De estatura um pouco pequena, tem o rosto cheio sem ser gordo. Usa a barba toda, segundo a moda da época, mas não muito longa. Todos os sentidos são nele "inteiros , quase perfeitos. Embora tenha abusado, licenciosamente, de uma saúde robusta, esta se mantém garbosa, apenas de leve alterada pela pedra aos 47 anos. Seu andar é firme; seus gestos arrebatados; sua voz alta e sonora. Fala de bom grado, sempre com veemência, agitando-se muito. Come de tudo e com tal voracidade que lhe ocorre morder os dedos, pois nessa época ainda não se usavam garfos. Monta a cavalo seguidamente e mesmo em sua velhice as mais longas cavalgadas não o fadigam. Dormir, diz-nos, toma grande parte de sua vida.

A importância de um autor decorre não somente de seu valor próprio mas ainda, e em boa parte, da oportunidade de sua mensagem. Alguns há cuja mensagem têm hoje apenas uma importância histórica e já não repercute mais; em tempos idos terá acordado consciências, alimentado entusiasmo, provocado revoluções; não nos diz mais respeito. Os grandes autores são aqueles que não satisfazem somente as necessidades de um país e de uma época, mas fornecem um alimento suscetível de saciar as fomes diversas de nacionalidades diferentes e de gerações sucessivas. "Um leitor capaz descobre muitas vezes nos escritos de outrem qualidades diversas das que o autor neles pôs ou percebeu; e empresta-lhes assim sentidos e aspectos mais ricos", diz Montaigne (Livro I, cap. 25). Será ele próprio "capaz" e poderá responder as novas perguntas que podem ter em vista fazer-lhe os "leitores capazes" da jovem América? Quero crer que sim.

Em nossa época, em qualquer país, os espíritos construtores são particularmente apreciados; aquilo por que mais se felicita um autor é o fato de propor-nos um sistema bem ordenado, um método para a solução dos angustiosos problemas políticos, sociais e morais que atormentam, mais ou menos, todos os povos e cada um de nós em particular. Em verdade, Montaigne não nos traz nenhum método (de resto um método útil em sua época seria impraticável hoje em dia), nenhum sistema filosófico ou social. Nada menos ordenado que seu pensamento; deixa-o brincar ao acaso, vagabundear ao léu. E mesmo a sua dúvida perpétua, que levou Emerson a considerá-lo o mais perfeito representante do cepticismo (i. e., do anti-dogmatismo, do espírito de pesquisa e investigação), compara-se, já o disseram, a esses remédios purgativos que o paciente expele juntamente com as matérias por eles varridas. Porém, assim como muitos viram em seu "Que sais-je" a última palavra de sua sabedoria e do seu ensinamento, a mim tal conclusão não satisfaz. Não é o ceticismo o que me agrada nos Ensaios, nem é essa a lição que neles vou buscar. Um "leitor capaz" saberá encontrar em Montaigne mais e melhor do que dúvidas e interrogações

Quer parecer-me que, ante a pergunta atroz de Pilatos, cujo eco repercute através dos tempos:: "Que é a verdade?", Montaigne encampa, ainda que de um modo totalmente humano e profano, e em sentido muito diferente, a de uma resposta de Cristo: "Eu sou a verdade". Montaigne estima (é o que isso quer dizer) nada me ser possível conhecer realmente senão ele próprio. E é o que o induz a tanto falar de si; pois o conhecimento próprio lhe torna mais importante do que qualquer outro. "É preciso, escreve, tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas". (Livro 1, cap. 20). E para desmascarar-se ele se retrata. E como máscara, é mais do país e da época que do homem, sobretudo pela máscara é que as pesoas diferem; de maneira que, no indivíduo verdadeiramente desmascarado, poderemos reconhecer com facilidade nosso semelhante.

Montaigne chega mesmo a pensar que o retrato que apresenta de si pode tornar-se de interesse tanto mais geral quanto mais particular se revelar; e é em razão dessa verdade profunda que tamanho interesse devotamos a seu retrato, pois "todo homem traz em si a forma total da condição humana" (Livro III, cap. 2). Há mais: Montaigne está convencido de que "o ser verdadeiro é o princípio de uma grande virtude" (Livro II, cap. 18), como diria Píndaro; e essas palavras admiráveis que Montaigne toma de Plutarco, o qual as tirou de Píndaro, eu as faço minhas; desejaria inscrevê-las no frontispício dos Ensaios, pois o que se exprime sobretudo nelas é que constitui o ensinamento que colho em toda a obra.

Entretanto não parece que Montaigne tenha desde logo percebido, ele próprio, o alcance e a ousadia dessa resolução tomada de só aceitar a si mesmo verdadeiro e só se retratar com fidelidade. Daí essa hesitação inicial de seu traço, esse abrigo que procura nos densos matagais da história, esse amontoado de citações e de exemplos (ia dizer de "autorizações"), esse titubear infindável. Interessa-se por si a princípio confusamente, sem saber com exatidão o que mais importa e apreensivo quanto ao que merece maior atenção, pois talvez seja o que mais omissível se apresenta e o que mais comumente se despreza. Tudo, nele próprio, permanece curioso a seus olhos, divertido e surpreendente. "Não vi no mundo monstro ou milagre mais manifesto do que eu mesmo; fazemo-nos ao estranho, qualquer que seja, pelo uso e pelo tempo, porém quanto mais me frequento e me conheço, mais a minha deformidade me espanta, menos entendo o que vai em mim". Bem divertido é ouvi-lo falar assim de sua deformidade, quando o que nele amamos é precisamente o que nos permite identificá-lo como igual a nós, homem simplesmente, homem comum.

É somente a partir do terceiro e último livro dos Ensaios (que não figura nas primeiras edições) que, em plena posse, não de si mesmo (não o estará nunca, nem ninguém o poderá estar jamais) mas de seu assunto, Montaigne não mais titubeia; sabe então o que quer dizer, o que importa dizer, e di-lo excelentemente, com uma graça na maneira, uma jovialidade, uma felicidade de expressao e uma sutileza incomparáveis.

"Os outros formam o homem (os moralistas), eu o relato", escreve (Livro III, cap. 2); e logo adiante mais sutilmente: "Não pinto o ser, pinto-lhe a passagem" (os alemães diriam o "werden"). Com efeito, Montaigne mostra-se sempre preocupado com o perpétuo fluxo de todas as coisas e, com tais palavras, aponta a instabilidade da personalidade humana, que nunca é e apenas toma consciência de si mesma num fugidio "devenir". Pelo menos, em meio ao desmoronamento de todas as outras, cresce essa certeza de que acerca do assunto de si mesmo, ele, Montaigne, é "o mais sábio homem vivo"; e de que "jamais nenhum outro chegou com maior precisão e amplitude ao fim proposto à sua tarefa", para a qual somente uma virtude se exige, "a fidelidade". E Montaigne acha que pode advertir: "esta aí se encontra, a mais sincera e a mais pura".

* * *

Creio provir o grande prazer que nos proporcionam os Ensaios do grande prazer que Montaigne experimentou ao escrevê-los e que sentimos, por assim dizer, em cada frase. De todos os capítulos que compoem os três livros dos Ensaios um só é francamente fastidioso; é o maior de todos, o único escrito com aplicação, sequência e cuidado na composição: o da "Apologia de Raymond de Sebonde", filósofo espanhol do século XV, que ensinou medicina na Universidade de Toulouse e de quem Montaigne traduzira penosamente a "Theologia Naturalis" a pedido de seu pai. "Foi uma tarefa bem estranha e nova para mim; mas gozando então a felicidade de uns lazeres e não podendo nada recusar às ordens do melhor dos pais, levei-a a cabo como pude" (Livro II, cap. 12). Esse capítulo, que se colocou entre os do segundo livro dos Ensaios, foi entretanto o primeiro que Montaigne escreveu. É dos mais célebres e mais amiúde citado, pois figura entre aqueles em que o pensamento de Montaigne, tão desordenado e naturalmente erradio, se esforça mais seriamente por desenvolver uma espécie de doutrina e por dar uma aparente consistência a seu inconsistente ceticismo. Mas, exatamente porque o refreia sem cessar, seu pensamento perde aqui toda a sua graça, todo o encanto delicioso de sua despreocupada ociosidade; sentimos que o dirige para um objetivo e seu pensamento nos agradará sobretudo quando, mais tarde, ele o deixar colher, ao acaso dos encontros, todas as flores dos atalhos inesperados pelos quais se aventura hesitante, sem traçado preconcebido. Compraz-me observar aqui que as obras mais felizes, mais belas, são também aquelas que o autor leve maior alegria e maior prazer em escrever, aquelas em que menos se sentem o esforço e o controle. Em matéria de arte de nada serve a "seriedade"; o prazer é o melhor dos guias. Em todos, ou em quase todos os outros escritos dos Ensaios, o pensamento de Montaigne permanece, por assim dizer, no estado fluido; tão hesitante, tão cambiante e mesmo contraditório que, com o correr dos tempos, todas as interpretações lhe puderam ser dadas. Alguns, como por exemplo Pascal e Kant, procuram descobrir um cristão em Montaigne; outros, como Emerson, veem nele um protótipo do cético; outros um precursor de Voltaire. Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espécie de preparação, de antecâmara, para a Ética de Spinoza. Porém Sainte-Beuve parece-me mais perto da verdade quando escreve: "A pretexto de se particularizar, de se enfeixar com suas manias singulares, atingiu um recanto de todos. E nesse seu retrato (no retrato que de si mesmo traçou com displicência, sem pressa, retocando-o sem cessar) foi, na medida mesmo em que se pormenorizou a si próprio, o melhor pintor, e o mais hábil, da maioria dos homens". "Ondulante e diverso" diria Montaigne de si mesmo. E também: "Todos trazem o seu bem em si" (Port-Royal; III, cap. 2).

Julgo que o fato de ter aceito as inconsequências e as contradições de seu próprio eu constitui uma grande força em Montaigne. Logo no início do segundo livro dos Ensaios, a frase seguinte a um tempo nos desperta e nos alerta: "Os que se dedicam ao controle das ações humanas encontram o maior obstáculo em juntá-las e dar-lhes igual lustre, pois elas se contradizem comumente de tão estranha maneira, que parece impossível terem saído da mesma fonte" (Livro I, cap. 1). Essa inconsequência do ser humano nenhum dos grandes especialistas do coração, Shakespeare, Cervantes ou Racine, deixou de percebê-la até certo ponto. Mas, sem dúvida alguma, o estabelecimento provisório de uma psicologia algo sumária, de grandes linhas determinadas e fixas, se fazia necessário de início à construção de uma arte clássica. Era preciso que houvesse amorosos totalmente amorosos, avaros totalmente avaros, ciumentos inteiramente ciumentos, e não homens que fossem a um tempo um pouco tudo isso. Montaigne refere-se a esses "bons autores" (e o que diz se aplica aos que vieram depois, mais ainda do que aos que já conhecia) que "escolhem um caráter universal, e de acordo com a imagem, vão acertando e interpretando as ações do personagem; e se não conseguem torcê-las suficientemente apelam para a dissimulação" (Livro II, cap. 1). E acrescenta: "Augusto lhes escapou", assim como Saint-Evremont dirá mais tarde: "Há refolhos e meandros em nossa alma que lhe escaparam (a Plutarco)… julgou os homens grosseiramente e não percebeu a que ponto são contraditórios em si mesmos… O que lhe parecia inconsequente ele o atribuía a causas estranhas… que Montaigne compreendeu muito melhor". Sou de opinião que Montaigne soube ver muito mais do que apenas "a inconstância", como Saint-Evremont. Creio que, debaixo dessa palavra, se esconde em verdade o problema essencial, que só muito mais tarde será ventilado por Dostoiewsky, e em seguida por Proust. O que levará alguns a observarem: "O que aqui se coloca em debate é a própria noção do homem sobre a qual vivemos", noção que Freud e outros, na atualidade, procuram destruir. É, talvez, pelas súbitas luzes jogadas inopinadamente, e como que involuntariamente, sobre as fronteiras da personalidade e sobre a instabilidade do eu, que Montaigne me parece mais surpreendente. É por elas que nos toca mais diretamente.

Sem dúvida, os contemporâneos de Montaigne menosprezaram esses trechos que mais nos comovem hoje; não souberam vê-los ou, pelo menos, avaliar-lhes a importância. E talvez o próprio Montaigne, compartilhando dessa indiferença, assim como compartilhava da curiosidade de sua época pelo que já agora não nos interessa, dissesse, volvendo a terra hoje em dia: "Se me houvesse passado pela cabeça que isso vos preocuparia, diria muito mais!" Por que não o fizestes? Pois não nos importa que agradásseis a vossos contemporâneos, mas sim a nós mesmos. É, o mais das vezes, pelo que lhe censurou e desdenhou à sua época que um escritor consegue alcançar-nos através dos tempos. Faz-se mister uma perspicácia singular para discernir entre as preocupações do dia aquilo que poderá atrair o interesse das gerações porvindouras.

Antes a volúpia do que o amor parece ter desempenhado papel importante na vida de Montaigne. Casou, ao que se presume, sem grande entusiasmo, e se ainda assim foi bom marido, não deixou de escrever já no fim da vida: "Será talvez mais fácil privar-se por completo das relações sexuais, que permanecer sempre estritamente fiel ao dever em companhia de uma esposa" (Livro II, cap. 33), o que não comprova em absoluto que o tenha feito. Tinha um triste conceito das mulheres, e, passado o prazer que lhe davam, relegava-as aos cuidados do lar. Anotei, nos Ensaios, os trechos em que Montaigne a elas se refere; não há um só que não seja injurioso. Quanto aos filhos que teve, informa-nos sumariamente de que "morreram todos na primeira infância" (Livro II, cap. 8). Uma única filha escapa a tal infortúnio, e essas desgraças sucessivas não parecem tê-lo afeado demasiado.

Entretanto Montaigne não é incapaz de simpatia. Em especial pelos pequenos e humildes. "Dedico-me de bom grado aos pequenos, por uma natural compaixão que muito pode sobre mim" (Livro III, cap. 13). Mas, para equilíbrio de sua razão, é necessário que reaja imediatamente: "Compadeço-me ternamente das aflições alheias e choraria facilmente em companhia de outrem se soubesse chorar". (Livro II, cap. 11). La Rochefoucauld dirá, anos mais tarde, antecipando-se ao famoso "sejamos duros" de Nietzsche: "Sou pouco sensível à piedade e desejara não o ser em absoluto". Mas tais declaracões me comovem particularmente quando provêm daqueles que, como Montaigne ou Nietzsche, têm a alma naturalmente terna.

Da vida sentimental de Montaigne somente a amizade encontra oco em sua obra. A que consagrou a Etienne de la Boétie, três anos mais velho do que ele, e autor de uma única brochura Discours sur la servitude volontaire, parece ter tido em seu coração e em seu espírito um lugar considerável. Esse pequeno opúsculo não nos permite considerar La Boétie "o maior homem do século", como afirmava Montaigne, porém nos leva a compreender a natureza desse afeto do autor de Ensaios por uma alma extraordinariamente generosa e nobre.

Outra amizade ocupou também lugar especial na vida de Montaigne: a que dedicou a Maria de Gournay a quem chamava sua "filha por afinidade" "por certo querida muito mais que paternalmente, e conservada, no meu retiro e na minha solidão, como uma das melhores partes de meu próprio ser". É o que nos diz na velhice. E até acrescenta: "Somente a ela contemplo ainda neste mundo". Tinha ela apenas vinte anos, e Montaigne cinquenta e quatro, quando sentiu pelo autor dos Ensaios essa admiração e esse afeto "mais que excessivos". Seria indesculpável não nos referirmos a essa ligação puramente espiritual, porquanto foi graças aos cuidados de Mlle. de Gournay que pudemos ter a terceira e mais importante edição dos Ensaios (1595), publicada três anos após a morte de Montaigne. E à sua devoção devemos a conservação dos manuscritos que serviram mais tarde para estabelecer as mais completas edições

Por mais bela que tenha sido sua amizade por La Boétie, é-nos permitido pensar que talvez tivesse constrangido até certo ponto Montaigne. Podemos imaginar o que teria sido esse voluptuoso se não houvesse encontrado o amigo. E principalmente cabe-nos meditar sobre o que seria de seus Ensaios se La Boétie não morresse tão jovem (com 33 anos) e se tivesse continuado a exercer seu domínio sobre o espirito do amigo. Sainte-Beuve cita a propósito uma frase magnífica de Plínio, o Moço: "Perdi a testemunha de minha vida... temo viver doravante mais displicentemente". Mas essa displicência é o que mais admiramos em Montaigne. Diante de Lá Boétie fantasiava-se um pouco à moda antiga. É sincero, como sempre, pois está apaixonado de heroísmo, mas não aprecia, e dia a dia o apreciará menos que o homem se mostre afetado. E cada vez mais há de temer também que lhe seja necessário diminuir-se para subir. 

Em uns versos latinos que lhe envia, La Boétie escreve a Montaigne: "A ti, amigo, que nos temos inclinado tanto para os vícios como para as virtudes rutilantes, cabe combater com mais afinco". Tanto por tendência natural como por filosofia, uma vez desaparecido La Boétie, Montaigne procurará "combater" cada vez menos a si próprio. Nada repugna mais a Montaigne do que uma personalidade (ia dizer impersonalidade) fictícia laboriosamente alcançada e controlada de acordo com a decência, a moral, os costumes e quaisquer vestígios de preconceitos. Dir-se-ia que o ser verdadeiro, que tudo isso molesta, falseia ou desvirtua, tem para ele um valor místico, e que dele espera uma qualquer revelação. Bem compreendo quão fácil se torna aqui jogar com as palavras, ver apenas do ensinamento de Montaigne o conselho de entregar-se à natureza, de seguir cegamente os instintos e mesmo dar preferencia aos mais vis que sempre hão de parecer os mais sinceros, isto é, os mais naturais, aqueles que pela sua própria densidade se depositarao fielmente no fundo do recipiente, mesmo depois que os mais nobres transportes o hajam sacudido…

Acredito porém que seria mal compreender Montaigne, o qual, embora conceda a tais instintos que temos em comum com os animais uma parte porventura demasiado bela, sabe alçar seu vôo e não consente jamais em se tornar escravo ou vítima deles.

É natural que, com tais idéias, Montaigne se sinta pouco disposto ao arrependimento, à contrição. "Envelheci de oito anos desde minhas primeiras publicações", escreve em 1588, "mas duvido de que me tenha corrigido em qualquer sentido" (Livro III, cap. 9). Mais ainda: "Minhas desordens nesse ponto (o desregramento dos costumes) desgostaram-me como deviam; eis tudo". (Livro II, cap. 11). Declarações dessa ordem abundam na última parte dos Ensaios. Posteriormente acrescenta, ainda, para maior indignação de muitos: "Se tivesse que reviver, tornaria a viver como vivi; nem lamento o passado nem temo o futuro" (Livro III, cap. 2). Em verdade, essas declaracões são nada menos que cristãs. Sempre que Montaigne alude ao cristianismo, fá-lo com a mais estranha, senão maliciosa impertinência. Ocupa-se amiúde com a religião, jamais com Cristo. Nem uma só vez cita-lhe a palavra. É de se duvidar que jamais haja lido os Evangelhos, ou melhor, é certo que nunca os leu seriamente. Quanto às suas reverências ante o catolicismo, exprimem elas, é evidente, muita prudência. Não se deve esquecer as instruções dadas em 1572 por Catarina de Medícis a Carlos IX e que provocaram o massacre dos protestantes em toda a França. O exemplo de Erasmo (falecido em 1536) o põe de sobreaviso. Compreende-se que não desejasse ser constrangido a escrever retratações. Bem sei que Erasmo não escreveu, finalmente, as suas, mas teve que prometer à Igreja fazê-lo. E essa simples promessa já não deixa de ser incomodativa. É preferível a astúcia. No capítulo intitulado Das preces, Montaigne multiplica os acréscimos conciliatórios nas edições de 1582 e 1595. Por ocasião de sua viagem, em 1581, presenteara o Papa Gregório XIII (fundador do calendário ainda em uso hoje) com um exemplar de seu livro. O Papa o felicita, porém com algumas restrições que o autor levará em consideração posteriormente. Montaigne insiste por demais, e através de inúmeras repetições, sobre sua perfeita ortodoxia e sua submissão à Igreja. Esta mostrava-se então assaz conciliatória. Pactuara com o desabrochar cultural do Renascimento. Erasmo, a despeito da acusação de ateísmo que fizera com que lhe condenassem os livros em Paris, fora indicado para o cardinalato; as obras de Maquiavel, tão profundamente irreligiosas, haviam sido impressas em Roma por ordem de Clemente VII.

A tolerância e o relaxamento instigavam os grandes líderes da Reforma a uma intransigência ainda maior. Com o catolicismo, Montaigne podia ajeitar-se; com o protestantismo, não. Ele aceitava a religião com a condição de se contentar ela com a fachada. O que escrevia acerca dos "príncipes mais capazes" ele o pensava também das autoridades eclesiásticas: "Todo respeito e toda submissão lhes são devidos, exceto os da inteligência; não cabe à minha razão curvar-se e dobrar-se mas sim a meus joelhos". (Livro III, cap. 8).

Para melhor proteger seu livro, sente a necessidade de ainda acrescentar algumas linhas tranquilizadoras, em que mal o reconhecemos, aqueles capítulos de seus Ensaios que mais se revelam suscetíveis de alertar os corações sinceramente cristãos. "Esse único fim de outra vida, felizmente imortal, merece que lealmente abandonemos comodidades e prazeres". Esse trecho que, aliás, permanece manuscrito e que só conhecemos depois de sua morte (Livro I, cap. 39), bem como outros semelhantes, parece colocar-se em sua obra à guiza de para-raio, ou melhor, como esses rótulos de xarope ou limonada que, em épocas de "regime seco", se grudam nas garrafas de whisky. Pois não lemos com efeito algumas linhas adiante que: "De unhas e dentes devemos agarrar-nos a esses prazeres da vida que os anos nos arrancam das mãos uns após outros". (Livro I, cap. 39). Esse trecho da primeira edição, mal mascarado pelas linhas acrescentadas, mostra-nos o verdadeiro Montaigne, o "inimigo jurado de qualquer falsificação" (Livro I, cap. 40). Tão cautelosa palinódia me indignaria se não pensasse ter ela sido imprescindível para que chegasse até nós a sua mercadoria. "Pode ter parecido excelente católico, escreve Sainte-Beuve, salvo por se ter mostrado muito pouco cristão". E assim com justeza se diria de Montaigne o que ele mesmo disse do imperador Julião: "Em matéria de religião era só trapaça; apelidaram-no o Apóstata, por haver abandonado a nossa; creio mais verosímil, entretanto, não a ter tido jamais no coração e, sim, a ter aceito por obediência às leis". E ajunta, citando Ammien Marcellin: "Há muito alimentava com ternura o paganismo em seu coração, mas não ousava abrir-se porque todo o seu exército era cristão". Por isso mesmo Julião o atrai tao fortemente.

O que Montaigne admira no catolicismo, o que lhe agrada e o que o leva a propugná-lo, é a ordem, a antiguidade. "Nesse debate em virtude do qual a França se vê jogada na guerra civil, o melhor e mais sábio partido é sem dúvida aquele que leva a manter a religião e a ordem antiga do país". (Livro II, cap. 19). Pois "todas as grandes mutações abalam o Estado e o desmantelam". E ainda "o mal antigo e mais conhecido é sempre mais suportável do que o mal recente e não experimentado ainda" (Livro III, cap. 9). Além de sua ignorância dos Evangelhos, não há onde procurar outras razões para explicar seu ódio aos reformadores protestantes. Montaigne deseja conservar tal qual é a religião da Igreja, a religião francesa; e não por acreditá-la a única boa, mas por considerar perigoso mudar.

Pelos mesmos motivos sentimos em toda a vida de Montaigne, através de todos os seus escritos, um constante amor à ordem e à medida, à preocupação do bem público e à resistência a deixar que, contra o interesse geral, prevaleça seu interesse particular. A retidão de seu julgamento e a defesa dessa retidão atilem mais do que tudo a seus olhos, e lhe parece dever se sobreporem a quaisquer considerações: "…antes romper com os negócios a sujeitar-lhes minha fé e minha consciência". Prefiro tomá-lo aqui ao pé da letra sem indagar se não se gaba demasiado; pois é necessário em nossos dias que tais palavras sejam ouvidas, como era necessário nos tempos agitados de Montaigne que algumas consciências íntegras mantivessem sua independência e sua autonomia acima das submissões gregárias e das covardes concordâncias. "Todas as generalizações são covardes e perigosas" (Livro III, Cap. 8) e mais ainda: "não há trem de vida mais estúpido e frágil do que aquele que se pauta pelas ordenações e disciplinas" (Livro III, cap. 13). Os trechos desse gênero abundam nos Ensaios e como me parecem da mais alta importância, sobretudo hoje, citarei ainda este: "O público exige que se traia e que se minta (ainda terá de acrescentar mais tarde e que se massacre); abdiquemos dessa incumbência em favor de outros mais obedientes e acomodatícios" (Livro III, cap. 1). Decididamente Montaigne se adaptava mal à política. Tampouco se mostraria hábil na direção dos negócios, e quando renunciou às suas funções de magistrado, ou mais tarde, ao deixar a "marie" de Bordéus, para ocupar-se exclusivamente de si mesmo, julgou com muito bom senso que assim é que melhor serviria o Estado. A humanidade inteira, ajunto eu, pois é preciso observar que a ideia de humanidade se coloca, em Montaigne, muito acima da ideia de Pátria. Depois de um extraordinário elogio à França, ou pelo menos a Paris "glória da França e um dos mais nobres ornamentos do mundo", que ele "ama de ternura até em suas verrugas e suas manchas" (Livro III, cap. 9), toma o cuidado de declarar a amizade mais alta que dedica ao gênero humano: "considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns" (idem). E diz mais: "As amizades puras que adquirimos sobreexcedem as que as ligações de clima e de sangue nos outorgam. A natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo". (idem).

Permanecemos sempre em débito para com Montaigne; como fala de tudo sem ordem nem método, cada qual respiga nele o que mais lhe apetece e, o que não raro, é o que outro menosprezou. Nenhum autor será mais facilmente invocado sem perigo de traição, pois ele próprio dá o exemplo e sem cessar se contradiz e se trai a si próprio. "Em verdade, não temo confessá-lo", diz ele, "em caso de necessidade acenderia facilmente uma vela a S. Miguel e outra à serpente" (Livro III, cap. 1). E por certo é isso coisa que há de agradar mais à serpente do que a S. Miguel. Eis porque Montaigne não foi nada apreciado pelos partidários, a quem não apreciava tampouco. Daí não ter ter sido muito acatado, depois de sua morte, pelo menos na França asperamente dividida pelos partidos. De 1595 (lembremos que faleceu em 1592) a 1635 houve apenas três ou quatro novas edições dos Ensaios. Foi no estrangeiro, na Itália, na Espanha, e sobretudo na Inglaterra, que Montaigne se tornou logo popular, durante esse período de desfavor, ou de indiferença, na França. Encontramos na obra de Bacon e na de Shakespeare vestígios indiscutíveis da influência dos Ensaios.

Afastando-se do cristianismo, é de Goethe que se aproxima por antecipação: "Amo, pois, a vida e a cultivo tal qual apeteceu a Deus outorgar-ma. A natureza é um guia amável, mas não menos prudente e justo". Essas frases, que figuram entre as últimas dos Ensaios, Goethe, mais tarde, as assinaria de bom grado sem dúvida. Assim remata a sabedoria de Montaigne. Nenhuma palavra inútil; e Montaigne muito cuidadosamente acresce à ideia de prudência, de justiça e de cultura a sua declaração de amor a vida.

O que principalmente Montaigne nos ensina é aquilo a que se deu muito depois o nome de liberalismo. E parece-me que, hoje em dia, em uma época que as convicçoes políticas ou religiosas dividem horrivelmente os homens e os jogam uns contra os outros, essa é a mais sábias das lições. "Nas dissenções atuais deste Estado", diz, "meu interesse não me leva a ignorar as qualidades louváveis de meus adversários nem as censuráveis daqueles que segui" (Livro III, cap. 10). Acrescenta pouco mais tarde: "Uma boa obra não perde seus encantos por demandar contra mim" (idem). E mais adiante, no último momento: "Querem que nossa persuasão e nossos juízos sirvam não à verdade, porém aos projetos de nosso desejo. Eu me inclinaria antes para a outra extremidade, tão grande é o medo que tenho de ser subornado pelo meu desejo. Tanto mais quanto desconfio um pouco sentimentalmente das coisas que desejo" (idem). Tais qualidades de espírito e de alma nunca foram tao desejáveis, e jamais prestariam maiores serviços, do que nestes tempos em que tanto se desprezam.

Essa rara e extraordinária propensão, de que nos entretém amiúde, para ouvir e aceitar a opinião de outrem, a ponto de deixá-la prevalecer contra a sua própria, o impediu de se aventurar mais avante no caminho que seria mais tarde o de Nietzsche. Retém-no também uma prudencia natural, que, para sua salvação, nunca abandona de bom grado. Teme as regiões desérticas e aquelas em que o ar se rarefaz demasiado. Mas uma irrequieta curiosidade lhe anda ao encalço, e, no campo das Ideias, comporta-se sempre como nas suas viagens. O secretário que o acompanhou então anotou em seu diário: "Nunca o vi (a Montaigne) menos cansado, nem menos queixoso de suas dores (sofria de pedras, o que não o impedia de permanecer a cavalo longas horas); por caminhos e pousadas mantinha o espírito atento a tudo o que encontrava e procurava sempre entreter-se com os estrangeiros, o que, creio eu, lhe atenuava os padecimentos". Declarava não ter outro projeto em vista senão o de passear por regiões desconhecidas. O mesmo diarista acrescenta: "Tão grande era seu prazer de viajar que detestava as vizinhanças dos lugares de pouso obrigatório". E tinha por hábito afirmar que "após uma noite agitada, ao lembrar-se pela manhã que devia visitar tal nova cidade, ou região, se levantava cheio de alegria". O próprio Montaigne escreve nos Ensaios: "Bem sei que tomado ao pé da letra esse prazer de viajar revela inquietude e irresolução; em verdade são estas as minhas qualidades dominantes. Confesso que somente no sonho e no desejo encontro algo que me prenda; só o desejo de variedade me satisfaz; e assim também a posse da diversidade". (Livro III, cap. 9).

Montaigne tinha cerca de cinquenta anos ao empreender a primeira e única grande viagem de sua vida: a viagem à Alemanha do Sul e à Itália. Durou ela dezassete meses; e talvez durasse mais ainda, dado o extremo prazer que sentia, se a sua eleição imprevista para a "Mairie" de Bordéus não o houvesse inesperadamente chamado à França. Desde então é para as ideias que transfere essa viva curiosidade que o empurrava para as estradas.

É muito edificante acompanhar, através das edições sucessivas dos Ensaios, a modificação de sua atitude ante a ideia da morte. Intitula um dos primeiros capítulos de seu livro: "De como filosofar é aprender a morrer". E aí lemos : " Com nada me entretive mais do que com imaginar a morte, mesmo na minha idade mais licenciosa". Tratar-se-ia de atenuar o horror dessas ideias domesticando-as. E na última edição de seus Ensaios, chega afinal a escrever: "Graças a Deus, posso ir-me quando Lhe aprouver, sem saudade de coisa alguma. Desprendo-me de tudo; logo me despedirei de todos, menos de mim. Nunca um homem se preparou mais pura e plenamente para deixar o mundo, nem se desprendeu dele mais completamente do que eu espero fazê-lo…", "e a vinda da morte não me trará nenhuma novidade" (Livro I, cap. 20). Essa morte ele quase chega a amá-la, como ama todas as coisas naturais.

Montaigne teve um fim muito cristão, é-nos relatado. Convenhamos em que não tomara esse caminho. É verdade que sua mulher e sua filha o assistiam em seus últimos instantes e sem dúvida o incitaram, por simpatia, como ocorre não raro, a morrer não dessa morte "quieta, solitária e recolhida, bem minha, adequada à minha vida retirada" (Livro III, cap. 9), que lhe "satisfizera", porém mais devotamente do que espontaneamente o tivera feito. Terá sido o pressentimento desse fim que o levou a escrever: "Se, entretanto, me coubesse escolher (a morte) eu preferiria, creio, o cavalo ao leito, e morrer fora de minha casa e longe dos meus" (idem).

Se me censurarem haver por demais acerado as ideias de Montaigne, eu responderei que inúmeros comentadores se preocupam com aparar-lhes as arestas. Nada mais fiz do que retirar os botões das pontas, desembrulhá-las da estopa que entulha um pouco os Ensaios e por vezes impede que os golpes nos atinjam. Mas a grande preocupação dos pedagogos, para com os autores audazes, mesmo quando já clássicos, é de torná-los inofensivos; ora, eu admiro a que ponto o trabalho dos anos já se encarrega naturalmente disso. Ao fim de muito pouco tempo o gume das mais novas ideias se gasta; por outro lado, uma espécie de adaptação permite manejá-las sem perigo de ferir-se.

Montaigne em sua viagem à Itália admira-se de encontrar os mais altivos monumentos da antiga Roma não raro semi-enterrados entre escombros. É pelo cimo que eles pouco a pouco se esboroam. Mas seus próprios escombros erguem mais alto o solo em que marchamos. E se, de nossos dias, tal ou qual campanário nos parece menos alto é porque o contemplamos de menos baixo.



Notas:

(1) Cargo equivalente ao de Prefeito em nossa organização administrativa (N. do T.).
(2) Entre aspas no texto original. Livraria no francês do século XVI tinha o sentido de biblioteca. Em inglês é ainda o vocábulo usado "library" (N. do T.).


(Tradução de Sérgio Milliet;  Biblioteca do Pensamento Vivo)



(Ilustração: Anonymous - 17th century, Montaigne studies)




terça-feira, 11 de abril de 2017

CORRENTES, de Lila Ripoll







Tantos e tantos caminhos

e os meus pés aqui parados

na negativa de andar.

Cansei a boca e o desejo,

Desenrolei pensamentos,

Pedi, pedi que seguissem

E eles ficaram imóveis,

Como rocha junto ao mar.



Há correntes invisíveis

Enroladas no meu corpo.

– Ninguém as pode partir! –

Fico parada às estradas,

Encho a cabeça de sonhos,

Atiro as mãos para frente

Mas nunca posso seguir.



Minha roupa às vezes toma

A forma exata de um barco

Que morre por navegar.

Mas – ai! De mim! – faltam remos,

A água vem, vai e volta,

Molha meus pés invisíveis

E as correntes não me deixam.

– Meu destino é renunciar. –



Os caminhos estão claros

E há um convite sem medidas...

– Ah! Partir minhas correntes! –

Prisioneira do meu corpo,

Sobem ondas de desejos,

Descem ondas de esperança –

Vai e vem soturno e triste

Como a água das vertentes!



Pode a vida fechar todos

os caminhos que me abriu.

Meus pés não querem andar.

Falei sempre inutilmente...

Minha boca é um traço triste

Que perdeu seu movimento

De pedir... sem alcançar...





(Céu vazio: poesia, 1941)




(Ilustração: Isabel Guerra) 








domingo, 9 de abril de 2017

PALMATÓRIA, de James Joyce





O Padre Arnall entrou. E a aula de latim começou, tendo Stephen permanecido na sua carteira com os braços cruzados. O Padre Arnall distribuiu os cadernos de temas e declarou que estavam que era um escândalo e que deviam ser escritos outra vez, com as correções, já, já. Mas que o pior de todo era o de Fleming, porque as páginas estavam grudadas com um borrão; e o Padre Arnall dependurou-o por uma ponta e disse que era um insulto, fosse para que mestre fosse, ser-lhe entregue um tal caderno. Em seguida pediu a Jack Lawton declinar o substantivo mare: e Jack Lawton parou no ablativo singular e não houve jeito de saber prosseguir o plural.

- Você devia ter vergonha de si mesmo - disse o Padre Arnall, gravemente. - Justamente você, o primeiro da classe!

Depois do que, mandou o aluno seguinte; e o outro; e o outro. Nenhum soube. O Padre Arnall ficou parado, cada vez mais imóvel à medida que cada garoto tentava responder e errava. Mas a sua cara estava enfarruscada e os seus olhos chispavam, apesar de sua voz estar tão calma. Então perguntou a Fleming. E Fleming disse que aquela palavra não tinha plural. Repentinamente o Padre Arnall fechou o livro e gritou com ele:

- Ajoelhe-se já, lá no meio da classe. Você é um dos meninos mais vadios que já pude encontrar. Copiem os cadernos outra vez, vocês outros.

Fleming mexeu-se pesadamente do seu lugar e se ajoelhou entre os dois últimos bancos. Os demais meninos inclinaram-se sobre os seus cadernos de tema e começaram a escrever. Um silêncio enchia a sala da classe e Stephen, relanceando timidamente o olhar até o Padre Arnall assim de rosto duro, percebeu que o rosto dele estava um pouco vermelho por causa da zanga.

Ficar zangado, com raiva, seria um pecado para o Padre Arnall? Ou lhe seria permitido ficar zangado e com raiva quando os alunos eram preguiçosos, talvez isso os fazendo estudar melhor? Ou lhe seria perdoado por estar com raiva? Era porque lhe era permitido, visto como um padre sabe muito bem o que seja um pecado e não o deve cometer. Mas, se ele fizesse isso alguma vez por engano, que devia ele fazer para se confessar? Talvez fosse se confessar com o ministro. E caso o ministro cometesse pecado? Deveria confessar-se com o reitor; e o reitor com o provincial; e o provincial com o geral dos jesuítas. Chamava-se a isso a ordem; e tinha ouvido seu pai dizer que eram homens inteligentes, que poderiam se ter tornado pessoas importantes no mundo se não tivessem se tornado jesuítas. Imaginava o que o Padre Arnall e padreco Barret teriam sido e o que o Sr. McGlade e o Sr. Gleeson chegariam a ser se não se tivessem feito jesuítas. Era difícil pensar o que teriam sido porque a gente tinha que pensar neles de maneira muito outra, com diferentes casacos de cor e calças, com barbas e bigodes e diversos chapéus.

A porta abriu-se vagarosamente e se fechou. Um rápido sussurro correu pela classe: o prefeito das disciplinas! Houve um instante de silêncio mortal e, depois, o bater pesado de uma palmatória sobre a última carteira. O coração de Stephen fechou-se de medo.

- Algum menino daqui deseja palmatória, Padre Arnall? - exclamou o prefeito dos estudos. - Algum malandro preguiçoso desta classe deseja bolos?

Veio até o meio da classe e viu Fleming de joelhos.

- Olá! - gritou ele. - Que menino é este? Por que motivo está ele de joelhos? Menino, como é o teu nome.

- Fleming, sim senhor.

- Olá! Fleming! Um vadio, decerto. Basta olhar os olhos dele. Por que ele está de joelhos, Padre Arnall?

- Escreveu uma péssima lição de latim - disse o Padre Arnall - e errou todas as respostas de gramática.

- Mas tinha que errar! - gritou o prefeito dos estudos. - Tinha de errar! Um vadio nato! Estou vendo isso no canto dos olhos dele.

Golpeou a carteira com a palmatória e exclamou:

- De pé! Fleming! Levante-se, meu menino!

Fleming levantou-se, vagarosamente.

- Abra a mão - gritou o prefeito dos estudos.

Fleming estendeu a mão. A palmatória caiu sobre ela com um ruído de estalo: um, dois, três, quatro, cinco, seis.

- A outra mão!

A palmatória desceu agora em seis estalos rápidos e altos.

- Ajoelhe-se! - gritou o prefeito dos estudos.

Fleming ajoelhou-se, comprimindo as mãos nos sovacos, a face retorcida pela dor; mas Stephen sabia quão rijas eram as mãos dele porque Fleming estava sempre friccionando resina nelas. Mas talvez estivesse com muitas dores, porque o barulho da palmatória fora terrível. O coração de Stephen estava batendo e pulando.

- Já no trabalho, vocês todos! - exclamou o prefeito dos estudos. - Não queremos vadios, preguiçosos, malandros, aqui, seus vadios, seus preguiçosos, seus trapaceiros. Ao trabalho, estou dizendo. O Padre Dolan virá aqui ver vocês todos os dias. O Padre Dolan volta amanhã!

Fustigou um dos alunos, do lado, com a palmatória, dizendo:

- Você, garoto! Quando é que o Padre Dolan entrará aqui outra vez?

- Amanhã, sim senhor - disse a voz de Tom Furlong.

- Amanhã, e amanhã, e amanhã! - disse o prefeito dos estudos. - Guardem isso bem na memória. Todos os dias, o Padre Dolan. Vão escrevendo. Você, garoto, quem é você?

O coração de Stephen deu um repentino salto.

- Dedalus, senhor.

- Por que é que você não está escrevendo, como os outros?

- Eu... os meus...

E, de medo, não pôde falar.

- Por que é que ele não está escrevendo, Padre Arnall?

- Ele quebrou os óculos - disse o Padre Arnall - e eu o isentei de escrever a tarefa.

- Quebrou? Que é que eu estou ouvindo? Que história é essa? Como é mesmo o seu nome?

- Dedalus, senhor.

- Saia pra cá, Dedalus. Seu trapaceirozinho preguiçoso. Estou vendo o fingimento na sua cara. Onde quebrou você os seus óculos?

Stephen tropeava no meio da aula, cego de medo e de atrapalhação.

- Onde foi que você quebrou os seus óculos? - tornou a perguntar o prefeito dos estudos.

- Na pista onde tem cinza, senhor.

- Olá! Na pista, hem? - exclamou o prefeito dos estudos. - Eu conheço essa manha.

Stephen ergueu os olhos com espanto e viu, por um instante, a cara macilenta e já avelhantada do Padre Dolan; uma cabeça raspada, cor de cera, com lanugens dos lados; os aros de aço dos seus óculos, e aqueles seus olhos sem cor olhando através dos vidros. Por que disse ele que conhecia aquela manha?

- Seu vadio, pequeno preguiçoso! - exclamou o prefeito dos estudos. - Quebrei os meus óculos! Já é muito velha essa manha! Ponha já a mão pra fora!

Stephen fechou os olhos e estendeu no ar a mão trêmula com a palma para cima. Sentiu o prefeito dos estudos tocá-la por um instante nos dedos, para esticá-la, e depois o roçar da manga da batina ao ser a palmatória erguida para bater. Um pancada ardente, zunindo, ressoou como um pesado cair de madeira se quebrando, fazendo a sua mão trêmula revirar toda como uma folha ao fogo; e o som e a dor encheram-lhe os olhos de lágrimas escaldantes. Todo os eu corpo tremia de medo; o seu braço arriava e a sua mão entortada e lívida abanava como uma folha solta no ar. Um grito saltou-lhe aos lábios, pedindo para acabar. Mas, apesar de as lágrimas lhe encherem os olhos e os seus membros tremerem de dor e de medo, reprimiu as lágrimas quentes e o grito que lhe queimava a garganta.

- A outra mão! - berrou o prefeito dos estudos.

Stephen encolheu a mão direita crescida, inchada e trêmula, e estendeu a esquerda. A manga da batina sibilou outra vez quando a palmatória subiu; e uma pancada alta e uma dor de enlouquecer, dor forte, ardente e ecoante, fez a sua mão contrair-se toda, com a palma e os dedos numa lívida e trêmula massa. O pranto escaldante rompeu-lhe dos olhos e, ardendo de vergonha, de desespero e de pavor, retirou a mão que dançava e, aterrorizado, rompeu num gemido de dor. O seu corpo sacudia todo num estertor de medo e, com vergonha e raiva, sentiu que o grito escaldante lhe surgia da garganta e que as lágrimas de fogo lhe caíam dos olhos pelas faces quentes.

- Ajoelhe-se - gritou o prefeito dos estudos.

Stephen ajoelhou-se logo, comprimindo as mãos feridas no peito. Pensar nelas machucadas e inchadas, ardendo, o fez de súbito se sentir tão amargurado, com tanta pena delas, como se não fossem suas, e sim de uma outra pessoa de quem ele tivesse muito dó. E como se ajoelhasse, acalmando os últimos soluços de sua garganta e sentido a dor ardida e crepitante ao apoiá-las nas ilharga, ficou pensando como as estendera viradas para cima e como o prefeito dos estudos as pegara para lhes esticar os dedos trêmulos, e como aquelas duas massas inchadas e vermelhas de palmas e falanges haviam tremido no ar, sem socorro.

- E se ponham todos já a trabalhar - gritou o prefeito dos estudos lá da porta. - O Padre Dolan há de vir todos os dias ver se algum menino, algum mal comportado vadio, está querendo bolos. Todos os dias. Todos os dias.

A porta fechou-se atrás dele.

A classe silenciosa continuou a copiar os temas. O Padre Arnall levantou-se da sua cadeira e veio por entre eles, ajudando os meninos com palavras delicadas e lhes mostrando os erros que haviam feito. A sua voz era muito branda e solícita. Depois voltou lá para o estrado, sentou-se e disse para Fleming e Stephen:

- Podem voltar para o seus lugares, vocês dois.

Fleming e Stephen ergueram-se, encaminhando-se para os seus bancos, e se sentaram. Stephen, rubro de vergonha, abriu correndo um livro com a mão fraca e se inclinou sobre ele, a face bem perto da página.

Era injusto e cruel, porque o médico lhe havia dito para não ler sem os óculos! E ele já escrevera para casa, aquela manhã mesmo, para que lhe mandassem um outro par. E o Padre Arnall tinha dito que ele não precisava estudar até que os novos vidros chegassem. Portanto, ter sido chamado de fingido diante da classe, e ter apanhado de palmatória quando sempre tirava o cartão de primeiro ou de segundo e era o chefe dos yorkistas! Como podia o prefeito dos estudos saber que era patranha? Tinha sentido os dedos dos prefeito tocarem-no quando apresentara a mão; até cuidara que lhe ia apertar as mãos num cumprimento, pois os dedos do prefeito estavam macios e firmes; mas depois, logo depois, tinha ouvido o zunido da manga da batina e a pancada. Fora crueldade, e não fora nada bonito fazê-lo ajoelhar-se no meio da classe, depois; e o Padre Arnall dissera a ambos que podiam voltar para o seus lugares, sem fazer nenhuma distinção entre eles. Escutava a voz baixa e amável do Padre Arnall enquanto ia corrigindo os temas; talvez agora ele estivesse arrependido, e desejasse tornar-se correto. Mas tinha sido cruel e injusto. E aquele rosto macilento do outro, aqueles olhos sem cor, por detrás dos óculos de aro de metal, tinham uma expressão cruel, porque ele havia esticado os dedos primeiro com os seus dedos fortes e macios, mas fora para ferir melhor e mais espalhafatosamente.

- Foi uma coisa mesquinha, é o que foi - disse Fleming no corredor quando as classes estavam passando para irem em fila para o refeitório. - Dar de palmatória num aluno que não fez nada!

- De fato, você quebrou os óculos por acidente, não foi? - indagou Roche Relaxadão.

Stephen sentiu seu coração encher-se com as palavras de Fleming, e não deu resposta.

- Claro que foi - disse Fleming. - Eu não aguentaria isso. Eu iria lá em cima dar queixa dele ao reitor.

- Isso mesmo - disse vivamente Cecil Thunder. - E eu vi como ele ergueu a palmatória acima do ombro! E não é permitido fazer isso.

- Os bolos machucaram muito? - perguntou Roche Relaxadão.

- Mas muito - respondeu Stephen.

- Comigo a coisa não ficava assim, com aquele careca, ou qualquer outro careca! Foi uma ação má e baixa, é o que foi. Eu iria diretamente lá em cima, contar a ele tudo, depois do jantar.

- É sim, vai. Isso, vai! - disse Cecil Thunder.

- Vá sim. Isso, suba até lá e faça queixa dele ao reitor, Dedalus - insistiu Roche, pois ele disse que amanhã havia de vir outra vez lhe dar de palmatória.

- Vá mesmo. Conte ao reitor - disseram todos.

E alguns alunos do segundo de Gramática tinham escutado; e um deles disse:

- O senado e povo romano declaram que Dedalus foi injustamente punido.

Fora injusto; fora cruel e mau; e, sentado no refeitório, sofria sem parar a recordação mesma dessa humilhação, até que começou a se perguntar se talvez, realmente, não haveria mesmo na sua cara qualquer coisa que lhe desse um ar de trapaceiro. E bem vontade teve de arranjar um espelho, para se olhar. Mas isso não podia ser: fora, sim, injusto, cruel e falso.



(Retrato do artista quando jovem; tradução de José Geraldo Vieira)



(Ilustração: Henry Jules Jean Geoffroy - La Sortie De L'ecole)