Passa da uma da manhã. A Missa do Galo foi longa e a fila para beijar os pés do Menino Jesus estende-se, procissão para além do pátio, até a esquina da Rua Glicério.
A Menina arregala os olhos para tudo: esta sua Noite de Gala. Delicia-se com o Hosana das Filhas de Maria e o presépio junto ao altar, onde chegará para beijar os pés do Deus feito Menino.
Não a incomoda, como às vezes ocorre, a mão esquecida da mãe sobre a sua, nem o ajuntamento, nem o olhar do "tio" que, meio-rude-meio-terno, afasta-lhe a outra mão que estava a explorar o nariz meio chato, nariz que é a primeira coisa que ela sente ao acordar, porque a avó o aperta de leve, todas as manhãs, afilando-o para que assuma a forma do nariz materno, para que perca a qualidade esborrachada, herança do pai, herança de negro. Apenas, a avó, nesse obstinado ato de esculpir um novo nariz, se esquece de arrebitar-lhe a ponta, de modo que com o passar dos anos ele se tomará afilado, sim, mas ligeiramente adunco.
—Tira a mão do nariz — diz o "tio". — É feio.
Ela consente. Peçam-lhe o que quiserem.
A fila anda mais rápido.
— Beijem o Deus Menino e deixem para rezar em volta do presépio; não vamos retardar a fila — adverte o Padre Romano, que a Menina acha muito bonito, assim, vestido de branco.
A poucos passos do altar a mãe se abaixa e avisa:
— Não encoste a boca no Menino Jesus. Beije de longe, que é a mesma coisa.
...Coisa que a Menina não obedece, porque tomada pelo Adeste Fidelis, porque feliz. Sabe que na volta a mãe e o "tio" Rodrigues serão os primeiros a entrar no kitchenette, sabe que ficará na portaria esperando, junto com a avó, enquanto os dois vão ver se os presentes já chegaram.
Sabe e não tem pressa, prolonga com delícia o gozo próximo.
Se a mãe a viu beijar de verdade os pés do Menino, se a viu encostar a boca onde todos encostam, fingiu que não.
A noite é sereno na volta, os quatro dobram a esquina da Rua Oscar Cintra, a Menina de mãos dadas com a avó, e entram no Edifício Ouro Branco.
A mãe passa altiva pelas louras oxigenadas e um marinheiro, todos aglomerados na portaria, tomando champanhe barato com o zelador. Passa altiva, braços dados com o "tio", que assume ares de carranca.
A avó, soltando a Menina, senta-se no banco de madeira, junto à árvore de Natal, armada perto dos elevadores.
A Menina acha bonitas aquelas moças decotadas, de cabelos cor de ouro; sorri de volta aos sorrisos, e também para o marinheiro Rosalvo, que uma vez lhe deu um chinezinho de louça, pelado.
— Eu queria ser bonita como a Nina — ela disse, um dia, à mãe, que comentou com o "tio" a urgência de sair daquele prédio, "antes que a Menina cresça e comece a entender".
Também agora a Menina queria ser Nina, a mais loura, a mais linda; queria ser Rosalvo, que a abraça.
O "tio" volta pelo corredor e avisa que os presentes chegaram. Estabanada ante o gozo iminente, a Menina dispara corredor afora, escorrega no capacho para deslumbrar-se com os jogos, a boneca, uma xícara com desenhos de flores, um vestido amarelo, tanta coisa, um carrossel com cinco cavalinhos que giram como no Parque Xangai.
Foi-se a surpresa, nada mais a esperar. A Menina sabe que agora virá o guaraná e avelã e amêndoas, sabe que virá o sono e então o dia, os dias.
Mas a noite acontece em outro tom: a avó se levanta da mesa e se apoia na guarda da cama, arfante, a mãe atrás. A Menina quer ir para as duas, o "tio" avisa que fique onde está.
— Rodrigues, corre aqui.
O "tio" se ergue, depois de repetir a ordem.
— Acode aqui, Rodrigues.
Não é a primeira vez da avó doente.
— Um táxi. Chama um táxi.
A Menina se agita. Ela pode ajudar? Não pode, e termina o guaraná que de repente perdeu o gosto. Com quem a deixarão dessa vez, se a vizinha, Dona Laura, viajou?
Demora.
A avó respira com dificuldade, dói só de olhar.
Demora.
A mãe reza, lamenta-se, "linda, a minha mãe", pensa a Menina.
Demora.
O "tio" volta, o táxi chegou. A Menina segue os três pelo corredor, a porta ficou aberta.
Na portaria, as mulheres e o marinheiro correm a ajudar. A mãe chama o zelador para pedir que fique com a filha, desiste ao vê-lo cambaleante e solícito.
Com quem deixar a Menina?
— Você fica — o "tio" propõe à Mãe, que não responde, apenas olha todas aquelas pessoas coloridas, não tem muito tempo, a avó arqueja.
—
Se o problema é a Menina, pode deixar que eu tomo conta — diz Nina. — Deixe comigo... Senhora.
A mãe, altivez pejada, assente:
— Obrigada... Nina.
— Por nada... Senhora.
A Menina quer juntar a alegria de ficar com Nina a essa hora triste dos seus, da avó que parece um brinquedo quebrado, assim, encolhida.
A mãe avisa a Nina que a porta do kitchenette ficou aberta, agradece, olha a filha, sai. O táxi contorna a praça, entra na contramão na Rua Helena Zerrener e desaparece. Chuvisca.
A sós com tantos ídolos, a Menina quer rir.
— A tal pensa que tem o rei na barriga — ouve Nina dizer. — Grande senhora ela é, só porque tem um caso permanente.
As mulheres brincam com a Menina, inesperada boneca. Uma delas passa-lhe batom. Rosalvo, o marinheiro, promete-lhe uma tiara. De que cor? Azul. Você gosta de azul?
Gosta, a Menina diz que sim. A avó doente vai virando uma dor longínqua, com gosto de ontem; a alegria do agora vai contagiando a Menina, que não sente medo, como quando fica com Dona Laura, que logo a põe na cama e apaga a luz.
Nina deixa que ela experimente o champanhe, um gole só. A Menina quer... E adora.
O tempo não passa, de tão novo. É um olhar demoradamente para cada mulher, brincos, golas, saias, relógios, meias, é um gostar demais do uniforme azul-marinho de Rosalvo. Timidamente, a Menina aponta-lhe o quepe:
— "Seu" Rosalvo, deixa eu ver seu chapéu?
É bom que todos sorriam com ela, o centro, o miolo da flor cujo pólen é inteiro e somente para Nina, que se despede dos outros e, tomando a mão da Menina, pergunta cadê a chave.
— A porta ficou aberta.
— É mesmo.
A mão conducente de Nina é um suave caminho.
— Então é aqui que você mora? Que chique!
Nina é toda sorrisos, a Menina deslumbra-se mil vezes, mostra os presentes, oferece avelãs e amêndoas e nozes. As duas comem e brincam e riem e tudo parece assim, diferente.
— Agora, cama.
— Não.
— Já, gracinha.
O tempo se apaga, a Menina acorda e vê Nina sentada aos pés da cama, fumando, olhando. A luz acesa.
— Mamãe não voltou ainda, meu bem. Pode dormir de novo, que a Nina está aqui com você.
— Nina?
— Que é?
— Eu suei.
— Você o quê?
— Suei.
— Você... — Dos cabelos louros de Nina, que se abaixa para descobri-la, exala um perfume forte.
— Deixa eu ver... Ah, você fez pipi. Levanta daí.
Em pé, na cama, a Menina apoia-se na mulher, que lhe tira o vestido e a calcinha.
— Vamos trocar de roupa. — Erguendo-a nos braços, leva-a até o bidê. — Senta aí pra eu te lavar. Veja se a água está muito fria... Muito fria?
— Não.
— Bom. Então... Pronto.
A toalha não é tão macia quanto as mãos de Nina.
— Agora me diga onde estão suas roupas.
— Ali — a Menina aponta a cômoda.
— Vem.
Nina a coloca em pé sobre o colchão e abre a primeira gaveta.
— Nina, você foi na Missa do Galo beijar o Menino Jesus?
— Você é meu Menino Jesus, benzinho.
Risos. Nina encontra uma camiseta, uma calcinha:
— Tá bom assim?
— Tá.
— Deixa eu te vestir. Dá o pé, louro.
A Menina obedece e enlaça Nina, aspira com deleite o perfume dos cabelos claros. A mulher a aperta contra si. A Menina não quer soltar-se nunca mais.
— Você é meu Menino Jesus — Nina repete, repelindo-a com doçura.
— Jura?
— Juro.
— Você é linda, Nina. Linda como a Nossa Senhora.
— Não fala assim, gracinha. É pecado.
A Menina se atira no colo que ainda quer rejeitá-la, mas não consegue. E é como se algo nascesse, na noite sem idades.
O marinheiro Rosalvo bate levemente e entra. Com os olhos, Nina lhe pede silêncio. A Menina está quase dormindo. Rosalvo toca o ombro da mulher, deixa que a mão escorregue até os seios. Nina o repele com um tapa. A Menina se mexe um pouco, depois se abandona. Rosalvo volta a apoiar a mão no ombro de Nina, perguntando-se que bicho a terá mordido. Mas não ousa outro gesto e apenas fica ali, imóvel, olhando e olhando.
Num quintal da Rua Tabatinguera, o primeiro galo canta.
(Hiatos)
(Ilustração: Patrice
Murciano)
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