Contemplo o rosto de Graciliano Ramos, morto: parece-me sereno, tranquilo, adormecido como está no fundo de sua ausência. Foi um revoltado, não um ressentido. Sabia que o mundo é mau, que os homens devoram-se, e ao terminar sua carreira sobre a terra, não esperava encontrar mais nada.
Estendido no caixão, coberto de flores — que paz todavia emana desse que fora homem de aparência brusca, personagem desabusado, franco, duro! A mim não enganou, jamais, o jeito de Graciliano: sempre o julguei como realmente era — honesto, incapaz de falsear, de mentir, de odiar gratuitamente quem quer que fosse. Não era um sentimental, um terno ser de fácil emoção, de nervos à flor da pele, de mesmo raras lágrimas. Longe disto, aprendera muito, tivera a experiência da luta, conhecera uma prisão injusta e longa: vira o que o homem pode fazer com o homem inerme…
Suas memórias contarão histórias implacáveis. Quantas vezes, num banco ao fundo da Livraria José Olympio, não me descreveu Graciliano episódios que presenciara e sofrera, numa época de má lembrança e em que não havia liberdade entre nós. Suas queixas pessoais — diga-se, em abono da verdade — não lhe punham na voz as cores do ódio, nem insistia nelas; odiava muito mais o que praticaram contra outros seres, à sua vista, sob o seu testemunho.
Cada qual com a sua experiência. A experiência de Graciliano Ramos fê-lo um revoltado — mas em toda parte há motivos de revolta; e creio mesmo, apesar dos pesares e do que viu o autor de Vidas secas, ainda existe no Brasil uma cordialidade que outros povos não conhecem mais.
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Esse morto sereno que meus olhos fixam celebrou as viagens dos párias — dos homens fugindo à inclemência das próprias terras desoladas, dos filhos das paragens madrastas onde não há o socorro elementar da água, onde o bicho humano debalde invoca o milagre dos céus impiedosos.
Foi um romancista de bandidos, de incompreendidos, de solitários e desgraçados, de gente infeliz e condenada a não inspirar piedade a ninguém. Foi um forte, nunca um fanático; os que o conheceram sabem que seu pudor sempre o manteve a distância do fanatismo, da beatitude. Não serviu, como escritor, a partido ou credo nenhum, religioso nem político, senão por coincidência. O que almejava era escrever bem, atender às regras do jogo literário. Não se orgulhava de nada, mas gostava que o consultassem sobre questões de sintaxe, sobre dificuldades da língua e da arte.
Esse modesto revolucionário era um escritor clássico, amante das leis do estilo e dos grandes modelos e exemplos…
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Jamais vingou, entre Graciliano e eu, o menor equívoco, o mínimo juízo mau. Em vão tentaram intrigar-nos, mesmo em público. Graciliano resistia: sabia-me alvo de ressentimentos inconfessáveis. Pouco se lhe dava, aliás, o que eu pensasse quanto à existência de Deus ou sobre a necessidade e a maneira de defender o homem humano nesta trágica conjuntura: e de minha parte, o comunismo de Graciliano não me arrepiava — parecia-me, ao contrário bem integrado e compreensível na revolta desse homem que a vida fizera desiludido de tudo. A adesão a um partido representava para ele o retorno a uma esperança de dias mais justos e melhores para a humanidade, mas em nada lhe solapava o senso de justiça — e o fato de alguém ser branco ou vermelho não ajudava nem prejudicava o seu julgamento e a sua consideração.
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Da última visita que fiz a Graciliano, guardo lembrança marcante: falou-me de seu passeio à Rússia, dos encontros e das surpresas que lá encontrara, das paisagens avistadas… Depois ficamos a rememorar episódios velhos, desde o nosso primeiro encontro, mal chegara ele ao Rio; generosamente, pela primeira vez, aludiu aos anos decorridos. Lembrou-se dos dois artigos que escrevi, em protesto contra a sua prisão, numa hora em que quase todos se calavam, mesmo os profissionais da contumélia e do insulto.
Saberia ele estar condenado à morte próxima? — indagava-me eu, a cada instante vendo-o acender o cigarro incessantemente e ouvindo-o conversar. Nunca o encontrara tão desempenado, tão bom palestrador, tão ameno, como nesse dia de domingo claro e festivo em que, já às vésperas do término de seus padecimentos, Graciliano fazia de conta que não sabia de nada, heroico em seu pudor… Mas não lhe faltava o conhecimento exato de seu mal, e já as grandes dores o atormentavam: ia morrer. Mas morria no seu natural, sem quebrar a linha de sua natureza áspera e intratável que guardava, porém, o ouro fino do amor dissimulado e escondido, negado e renegado.
(Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 mar. 1953, 1º Caderno, p. 2.)
(Ilustração: Graciliano Ramos no esquife em 1963 - foto de a. desconhecido)
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