- Eu não queria que
terminasse assim...
Ouvi muitas vezes a frequentadores
de cinema esse comentário ao filme a que acabavam de assistir. A fita lhes agradara
até certo trecho, ia tudo muito bem.. mas findava de um jeito que desiludira o
espectador. E, mais poderosa que tudo, erguia-se, dura e inflexível, a sua
inconformação:
- Eu não queria que
terminasse assim...
Não queria. Isto dizia ele
do filme como diria de um romance - no tempo em que o cinema americano ainda
não generalizara a pratica dos banalíssimos happy-ends. E tinha o direito de
não querer. A vida é um bem comum, de que participa cada um de nós de corpo e
alma. É domínio público, e todos têm o direito de opinar sobre ela, de querer
afeiçoá-la a seu gosto, conformá-la ao padrão do seu sentir pessoal. E, como
por vezes se malogram os esforços em tal sentido, resta o consolo, embora
inútil, do protesto, do "eu não queria...".
Isto me ocorre a propósito
de um poema - o "Rondó dos Cavalinhos", de Manuel Bandeira. Também na
poesia, que é vida, e vida funda, há da parte do leitor o direito de querer
torcer a direção das coisas, para ajeitá-las ao mundo particular da sua
sensibilidade. O leitor de poesia pode muito bem não querer que o poema tenha
acabado assim... E pode até não querer que o poeta haja sentido ou pensado
assim como pensou ou sentiu.
Este último caso é o meu em
relação àquele poema de Bandeira. Uns versos batizados "Rondó dos
Cavalinhos" e que principiam desta maneira:
Os cavalinhos correndo
- Que lembrança viriam
suscitar em mim? A de uma corrida de pequenos cavalos, ou mesmo de cavalos
grandes liricamente reduzidos a cavalinhos? Não. O que esses versos num momento
me trouxeram aos olhos foram os cavalinhos do carrossel ou trivoli, aqueles
cavalinhos de pau, firmemente presos, e em que no entanto a gente realizava as
mais prodigiosas viagens, imensas viagens circulares obrigadas a música de harmônica,
e com paisagens humanas – pessoas que em redor nos fitavam, encantadas, talvez
invejosas.
Ora, a imaginação,
escanchada nesses cavalinhos da meninice - que deram a Jorge de Lima um belo
poema -, não quis mais apear-se, não ouviu o apito que anunciava o fim da
corrida. A corrida era longa, muito longa, sem fim: "Os cavalinhos
correndo"... E, ao passo que o mundo se enchia desse lirismo infantil, a
gente grande, os homens feitos e práticos, alheios a cavalinhos, comiam,
grosseiros como cavalões:
E nós, cavalões, comendo...
E, enquanto isso,
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo
Sim, me enlouquecendo,
deixando-me "tonto", "gira". Os cavalinhos correm, giram, e
a cabeça gira, e Esmeralda anoita a alma do poeta:
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo.
O sol tão claro lá fora,
E em minh'alma -
anoitecendo!
O Sol. A Terra gira em torno
do Sol, como está girando em redor dos cavalinhos. E, cada vez com ímpeto
maior, lá se vão
Os cavalinhos correndo.
E nós, cavalões, comendo...
E, ao mesmo tempo,
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...
Os cavalinhos não param. E,
girando no cavalinho que não para de girar, vemos, nas voltas que dá o mundo, o
artista, o amigo, o do peito, partindo, irremediavelmente partindo, e os
vulgares, os infiéis, os neutros, ficando. E nesse desadoro de gerúndios -
"correndo", "comendo", "partindo",
"ficando", "anoitecendo", "enlouquecendo" - as
coisas se prolongam num indefinido girar, realizando nós, adultos, numa segunda
e melhor infância, uma demorada, interminável viagem de cavalinhos, sem o apito
do fim da corrida.
Nada de apito, senhores. A
viagem se prolonga, o rodar dos cavalinhos se prolonga – porque tudo é
prolongado. Até o nome de Alfonso Reyes: "Al-fon-so Re-yes
par-tin-do". E, para que tudo se prolongue mais, e não cesse tão cedo o
girar dos cavalinhos, surgiram aquelas novas reticências, depois
"ficando", além das que até então sucediam ao "correndo":
"E tanta gente ficando..." A demora desse "ficando"
dilata-se nos três pontinhos.
E, entretanto:
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...
Decididamente, é o mundo que
roda em torno do menino, é o girar da vida, é uma revista passada ao universo,
alongado pelas novas reticências do "avacalhando". O fascismo a
caminho da vitória: coisa grave, de fazer estacar os cavalinhos; mas os
cavalinhos são inocentes, liricamente ignorantes, são a infância feliz, os
cavalões são ávidos, querem comer bem, gozar a vida, e...
Os cavalinhos correndo.
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda.
E em minh'alma -
anoitecendo!
No incessante voltear dos
cavalinhos, nessa excursão maravilhosa, os cavalões não largaram o talher. Já
passou Esmeralda com a sua funesta beleza; já desapareceu a claridade alta do
Sol, que não impediu o anoitecer da alma do poeta; já se partiu Alfonso Reyes;
já surgiu e se foi a política europeia, infestada de fascismo. Agora entra na
roda o Brasil, politicando. Coisa tão grave que a rapidez do giro se abranda um
pouco para o inquieto "Nossa!". O Brasil politicando - e a morte da
poesia... Agora a sombra vai tomando conta de tudo: tudo anoitece com aquele íntimo
anoitecer. O homem do trivoli faz soar o apito; a criança experimenta um súbito
e inexplicável cansaço. Que é isso? Há um pegajoso de suor no pescoço dos
cavalinhos. A viagem para. Anda lá fora, lá no alto, o Sol. Mas - o Brasil está
politicando, a poesia está morrendo, a beleza de Esmeralda está anoitecendo a
alma do poeta, a alma dos pequeninos cavaleiros. Que é isso? A vida parou?
Pararam os cavalinhos.
Ora, Manuel Bandeira, o
suposto dono do poema, disse-me que este nada tem que ver com os cavalinhos de
carrossel; refere-se aos cavalos do Jóquei Clube. Os versos foram escritos após
um almoço de despedida a Alfonso Reyes no restaurante do hipódromo da Gávea.
Enquanto se banqueteavam, os cavalões assistiam à corrida dos cavalos de carne
e osso, a alguma distância. Naturalmente a distância, aliada à ternura pelos
bichos que se matavam para gozo ou proveito dos homens, apequenava-os
poeticamente em cavalinhos. E, vendo aquilo, Bandeira teria começado a ver
também o mundo correr, girar, como giravam os animais na pista.
Assim, ou mais ou menos
assim, se formou o poema na fantasia de Bandeira. São estes os seus cavalinhos.
Os meus, porém, mesmo após a
explicação, continuam sendo os outros, os do trivoli. Segundo confissão do meu
amigo o poeta Emílio Moura, a sua interpretação do poema de Bandeira coincide
com a minha. Como os frequentadores de cinema não queriam que a fita
"acabasse assim", também eu não quero que o "Rondó dos
Cavalinhos" "seja assim" como Bandeira pensou. Para mim, eles
são o que eu senti, e sinto. Já vivi tanto com esses versos e esses cavalinhos
na cabeça, apurando e cristalizando aquela imagem da vida a andar à roda dos
cavalinhos que giram, enquanto a harmônica ("o harmônico", dizia a
gente) vai soluçando, e o rumor da festa vai crescendo, e o pessoal, à margem,
nos está invejando, aos velozes cavaleiros, que não me é possível desistir dos
meus direitos em favor de Bandeira. Não. Ele me deu também a mim, dando-o ao
mundo, o seu poema. Merece toda a gratidão o doador generoso; mas não pode
impor à doação outra cláusula senão a de que seja lembrado o seu nome. (E isso
mesmo, que adianta? Quem conhece o autor de tantas mil cantigas populares? Como
na Escritura, o poeta às vezes ganha a vida perdendo-a.) Quanto ao mais - que eu
ou qualquer outro leitor empreste ao seu poema esta ou aquela interpretação,
que o sinta deste ou daquele modo: nada pode Bandeira fazer contra isso. Não
pode, e não deve; pois justamente a riqueza e força de um poeta é tanto maior
quanto mais numerosas sejam as interpretações que a sua poesia possa acordar na
sensibilidade dos leitores, quanto mais numerosos os colaboradores que ele
venha a ter, pelo tempo fora. E não será, nalguns casos, a interpretação do
leitor preferível à do próprio autor? Não digo preferível por mais bela, por
mais lírica, somente; mas também pela possibilidade de ser a verdadeira,
estando a interpretação do próprio poeta relacionada com o sentimento que
determinou proximamente o poema, e que ainda se acha, mais ou menos, presente à
sua consciência, quando a inspiração inicial, profunda, lhe ficou mergulhada no
subconsciente - não vindo à tona no instante da realização poética - e coincide
com a exegeses do leitor.
Assim como assim, se há um
poema carregado de sugestões líricas bastantes para lhe assegurarem grande
colaboração dos leitores, será esse "Rondó dos Cavalinhos".
1947.
(Território lírico,
1958.)
(Ilustração: Leonid
Afremov - corrida de cavalos)
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