domingo, 25 de setembro de 2016

FUNDAMENTALISMO E A SUBVERSÃO DA CIÊNCIA, de Richard Dawkins








Os fundamentalistas sabem que estão certos porque leram a verdade num livro sagrado e sabem, desde o começo, que nada os afastará de sua crença. A verdade do livro sagrado é um axioma, não o produto final de um processo de raciocínio. O livro é a verdade e, se as provas parecem contradizê-lo, são as provas que devem ser rejeitadas, não o livro. Pelo contrário, as coisas em que eu, como cientista, acredito (a evolução, por exemplo), acredito não porque as li num livro sagrado, mas porque estudei as provas. É uma coisa bem diferente. As pessoas acreditam nos livros sobre evolução não porque eles sejam sagrados. Acreditam porque eles apresentam quantidades imensas de evidências mutuamente sustentadas. Quando um livro de ciência está errado, alguém acaba descobrindo o erro, e ele é corrigido nos livros subsequentes. Isso evidentemente não acontece com os livros sagrados.

Os filósofos, especialmente amadores, com aprendizado filosófico limitado, e mais especialmente ainda aqueles contaminados pelo "relativismo cultural", podem levantar nesse ponto mais uma cansativa bandeira: a crença dos cientistas nas evidências é por si só uma questão de fé fundamentalista. Já tratei disso em outros lugares, e só vou repetir brevemente meus argumentos aqui. Todos nós acreditamos em evidências em nossa vida, independentemente do que professemos quando vestimos nosso uniforme de filósofos amadores. Se sou acusado de assassinato, e o promotor pergunta, sério, se é verdade que eu estava em Chicago na noite do crime, não posso me safar com uma fuga filosófica: "Depende do que você quer dizer com verdade". Nem com uma alegação antropológica relativista: "Só seu sentido científico e ocidental de 'em' é que eu estava em Chicago. Os bongoleses têm um sentido completamente diferente de 'em', segundo o qual só se está 'em' um lugar se se é um ancião ungido com o direito de aspirar pó de escroto de bode".

Talvez os cientistas sejam fundamentalistas quando se trate de definir de um jeito meio abstrato o que "verdade" significa. Mas todo mundo é assim. Não sou mais fundamentalista quando digo que a evolução é uma verdade do que quando digo que é verdade que a Nova Zelândia fica no hemisfério sul. Acreditamos na evolução porque as evidências a sustentam, e a abandonaríamos num piscar de olhos se surgissem novas evidências que a desmentissem. Nenhum fundamentalista de verdade diria uma coisa dessas.

É muito fácil confundir fundamentalismo com paixão. Posso muito bem parecer apaixonado quando defendo a evolução diante do criacionismo fundamentalista, mas isso não acontece por causa de meu próprio fundamentalismo rival. Acontece porque as evidências da evolução são fortíssimas e fico apaixonadamente perturbado com o fato de meu oponente não conseguir enxergar isso - ou, o mais comum, recusar-se até a pensar nisso, porque contradiz seu livro sagrado. Minha paixão aumenta quando penso em tudo que os pobres fundamentalistas, e aqueles que eles influenciam, estão perdendo. As verdades da evolução, junto com muitas outras verdades científicas, são tão fascinantes e belas que é realmente trágico morrer tendo perdido tudo isso! É claro que isso me inflama. Como não inflamaria? Mas minha crença na evolução não é fundamentalismo, e não é fé, porque sei o que seria necessário para mudar de ideia, e mudaria satisfeito se fossem apresentadas as evidências necessárias.

Isso acontece. Já contei a história de um integrante respeitado do Departamento de Zoologia de Oxford, quando eu fazia graduação. Por anos ele tinha acreditado apaixonadamente, ensinando, que o complexo de Golgi (uma estrutura microscópica do interior das células) não existia: era uma fabricação, uma ilusão. Era costume no departamento ouvir, toda tarde de segunda-feira, uma palestra de um convidado sobre alguma pesquisa. Uma segunda-feira, o visitante foi um biólogo celular americano que apresentou evidências totalmente convincentes de que o complexo de Golgi existia. No fim da palestra, o senhor de Oxford foi até a frente da sala, apertou a mão do americano e disse, apaixonadamente: "Caro companheiro, gostaria de agradecer-lhe. Eu estava errado por todos esses quinze anos". Aplaudimos até ficar com as mãos vermelhas. Nenhum fundamentalista jamais diria isso. Na prática, nem todos os cientistas diriam. Mas todos os cientistas pelo menos declaram que isso é o ideal - diferentemente, digamos, de políticos, que talvez condenassem esse tipo de atitude, chamando-a de mudança de lado. A lembrança do incidente que descrevi ainda me provoca um nó na garganta.

Como cientista, sou hostil à religião fundamentalista porque ela debocha ativamente do empreendimento científico. Ela nos ensina a não mudar de ideia, e a não querer saber de coisas emocionantes que estão aí para ser aprendidas. Ela subverte a ciência e mina o intelecto. O exemplo mais triste que conheço é o do geólogo americano Kurt Wise, que hoje dirige o Centro para Pesquisa das Origens no Bryan College, em Dayton, Tennnessee. Não é por acaso que o Bryan College tem esse nome por causa de William Jennings Bryan, promotor do "Julgamento do Macaco" contra o professor de ciências John Scopes, em Dayton, em 1925. Wise poderia ter realizado sua ambição de infância e ser professor de biologia numa universidade de verdade, uma universidade cujo lema fosse "Pense criticamente", em vez do oxímoro estampado no site da Bryan na internet: "Pense crítica e biblicamente". Ele, aliás, obteve um diploma de verdade na Universidade de Chicago, além de dois outros títulos em geologia e paleontologia em (nada menos que) Harvard, onde teve aulas com (ninguém menos que) Stephen Jay Gould. Era um jovem cientista altamente qualificado e promissor, que avançava para realizar o sonho de ensinar ciência e fazer pesquisas numa boa universidade.

Aí veio a tragédia. Ela veio não do exterior, mas de dentro da própria cabeça dele, uma cabeça fatalmente subvertida e enfraquecida por uma criação religiosa fundamentalista que exigia que ele acreditasse que a Terra - o objeto de seus estudos geológicos em Chicago e Harvard - tinha menos de 10 mil anos de idade. Ele era inteligente demais para não reconhecer a colisão frontal entre sua religião e sua ciência, e o conflito mental o deixou cada vez mais desconfortável. Um dia, sem conseguir suportar mais a tensão, atacou o problema com uma tesoura. Pegou uma Bíblia e a percorreu, retirando literalmente todos os versos que teriam que ser eliminados se a visão científica do mundo fosse verdadeira. No final desse exercício honesto e trabalhoso, sobrou tão pouco da Bíblia que:


por mais que eu tentasse, e mesmo com o benefício das margens intactas ao longo das páginas das Escrituras, vi que era impossível pegar a Bíblia sem que ela se partisse ao meio. Tive de tomar uma decisão entre a evolução e as Escrituras. Ou as Escrituras eram verdade e a evolução estava errada ou a evolução era verdade e eu tinha de jogar a Bíblia fora [...] Foi ali, naquela noite, que aceitei a Palavra de Deus e rejeitei tudo que a contradissesse, incluindo a evolução. Assim, com grande tristeza, lancei ao fogo todo os meus sonhos e as minhas esperanças na ciência.


Acho isso uma coisa terrivelmente triste; mas, se a história do complexo de Golgi me levou a lágrimas de admiração e júbilo, a história de Kurt Wise é só patética - patética e desprezível. A ferida, na carreira e na felicidade dele, fora autoinfligida, e era tão desnecessária, tão fácil de evitar. Ele só tinha que jogar a Bíblia fora. Ou interpretá-la em termos simbólicos, ou alegóricos, como fazem os teólogos. Em vez disso, tomou a atitude fundamentalista e jogou a ciência, a evidência e a razão fora, junto com todos os seus sonhos e esperanças.

Talvez de forma singular entre os fundamentalistas, Kurt Wise é honesto - de uma honestidade devastadora, dolorosa, chocante. Deem a ele o prêmio Templeton; ele pode ser o primeiro premiado realmente sincero. Wise leva à superfície o que está secretamente escondido, na cabeça dos fundamentalistas em geral, quando eles encontram evidências científicas que contradizem suas crenças. Ouça sua peroração:


Embora existam razões científicas para aceitar uma terra jovem, sou criacionista porque essa é minha compreensão das Escrituras. Como disse para meus professores anos atrás, quando eu estava na faculdade, se todas as evidências do universo se voltarem contra o criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, mas continuarei criacionista, porque é isso que a Palavra de Deus parece indicar. Essa é minha posição.


Ele parece estar citando Lutero, quando pregou suas teses na porta da igreja em Wittenburg, mas o pobre Kurt Wise me faz lembrar mais Winston Smith em 1984 - lutando desesperadamente para acreditar que dois mais dois é igual a cinco, se o Grande Irmão diz que é. Winston, porém, estava sendo torturado. O duplipensamento de Wise não vem do imperativo da tortura física, mas do imperativo - aparentemente tão inegável quanto, para algumas pessoas - da fé religiosa: pode-se defender que se trate de uma forma de tortura mental. E, se ele fez isso a um geólogo que estudou em Harvard, imagino o que é capaz de fazer a pessoas menos dotadas e menos aparelhadas.

A religião fundamentalista está determinada a arruinar a educação científica de inúmeros milhares de mentes jovens, inocentes e bem intencionadas. A religião não fundamentalista, "sensata", pode não estar fazendo isso. Mas está tornando o mundo seguro para o fundamentalismo ao ensinar as crianças, desde muito cedo, que a fé inquestionável é uma virtude.



(Deus, um delírio; tradução de Fernanda Ravagnani)




(Ilustração: Clovis Trouille - tableau pompier)


















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