Nós a trouxemos para casa
logo nos primeiros dias do mês de novembro, faz quinze anos. Tinha o rosto
miúdo, um tufo enroladinho de cabelos pretos, e os olhos já prometiam ser o que
são hoje: janelas escancaradas sob cílios longos. Chorava nas horas certas.
Costumava tomar a última mamadeira da noite, ou largar o peito da mãe, já
adormecida, e assim varava a madrugada até as primeiras luzes do dia.
Aprendeu a sorrir com a
precocidade das crianças que vão ser alegres, e ficamos surpresos ao ver que o
bebê descia do berço e ensaiava os passos na direção dos braços que o
aguardavam. Cresceu com jeito de carneirinho: um carneirinho macio que
gostávamos de carregar no colo, até que seus pés se desprenderam de todo e
buscaram o contato com o chão de cimento, conquistando a gloriosa sujeira da
infância.
Depois do banho, penteada,
perfume de sabonete, se encolhia junto às minhas mãos e me aquecia com o calor
de seu pijama de flanela.
Vejo-a de lancheira
cor-de-rosa descobrindo a primeira tarde na escola, jardim onde se reuniam
outras crianças de sua idade.
Um dia me trouxe um desenho
pintado com todos os lápis de cor que eu lhe havia dado. Eu disse: “Está muito bonito!
”.
E era verdade.
Ganhou cartilha. Descobriu a
música que as letras fazem quando se misturam a outras letras. Fez a primeira
composição com tinta, ficou com receio de tirar nota baixa, roeu as unhas, frequentou
uma escola-modelo no Bexiga (magnífico projeto de ensino depois reduzido à
expressão mais simples de uma escola como outra qualquer).
Nós a criamos com
simplicidade e ternura.
No íntimo, me recuso a
aceitar que todas essas coisas levaram apenas quinze anos para acontecer e
transformá-la na mocinha morena que misturou no tecido de seu temperamento uma
densa compreensão pelas pessoas e principalmente pelas crianças ainda bem pequenas,
que se agarram a ela como se tivesse visgo: compreensão e carinho misturados a
uma pitada de timidez muito mal disfarçada pela garra com que se atira às
decisões que aprendeu a tomar sozinha, senhora de seu nariz – aliás desafiante
e arrebitado.
Quinze anos.
Imaginava eu que nessa idade
as meninas morenas e loiras sonham sempre com longas festas, onde sempre
aparece um cara que, além de tocar uma baita bateria, consegue um equipamento
de luz negra, e tem um conjunto que faz um som da pesada, ou então chega com
duas caixas e um amplificador, e tudo fica muito louco até o momento solene da
valsa, com as meninas portando velas acesas e os rapazes com flores, enfim, a
zorra dos quinze anos que os pais curtem com tremor dentro do peito, isso
quando não se cotizam para o grande baile das debutantes, rigorosamente lindas,
apresentadas geralmente por um compenetrado colunista social ou por um artista
que, “… como anunciamos ao distinto público”, acedeu ao convite da cidade,
mesmo tendo de abandonar compromissos profissionais já assumidos, como a
filmagem dos vinte últimos capítulos da novela em que é personagem principal.
Quinze anos.
Onde terei errado na minha
função de pai?
Pois a menina de quinze anos
que carreguei no colo e que admirei através do vidro da maternidade na noite de
novembro em que a lâmpada cor-de-rosa se acendeu recusa com um sorriso
provocador qualquer coisa que lembre essa festa de aniversário. E apenas
deposita um beijo na minha testa, como se esse gesto bastasse para ela provar
que acaba de completar quinze anos.
Não sei onde foi buscar esse
despojamento e essa indiferença pela vaidade frágil que dura o tempo do spray
no ar.
Chego a me atemorizar. Penso
que, por desleixo ou falta de prática, falhei nalgum ponto – e criei a filha de
um operário, de um ferroviário, de um lutador de boxe que perdeu por pontos, de
um balconista das Casas Pernambucanas, de um lanterninha de cinema, ou – para
pensar o pior – criei a filha de um mero Cronista da Cidade.
Que Deus me perdoe se
falhei. E que Deus me abençoe se minha filha de quinze anos pensa exatamente
como deve pensar uma garota morena de quinze anos, sem os cacoetes e sem os
falsetes que nós, os adultos, gostamos de emprestar a essa idade própria das
decisões pessoais, quando se aprende a usar o dom – hoje raro e falsificado –
chamado: a liberdade de ser.
(Ilustração: Isabel Guerra - la luz)
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