Ouvi primeiro o ruído de cascos pisando a grama, mas continuei deitado de bruços na esteira que havia estendido ao lado da barraca. Senti nitidamente o cheiro acre, muito próximo. Virei-me devagar, abri os olhos. O cavalo erguia-se interminável à minha frente. Em cima dele havia uma espingarda apontada para mim e atrás da espingarda um velhinho de chapéu de palha, que disse logo o seguinte:
— Filhos de uma puta.
Pois não — tentei eu, ainda entorpecido pela bebida do almoço. O velho encaminhou o cavalo até o fogão, abaixou-se na sela e inspecionou o que restava na lenha.
— Filhos de uma puta.
Os moirões — pensei, pondo-me de pé. E andando de costas, sem tirar os olhos do velho, fui até a entrada da barraca e chamei pelo Dr. Fontes.
— Fale, querida — disse ele lá de dentro.
— Depressa, doutor — pedi.
— Filhos de uma puta — repetiu o velho emputecido, agora examinando a cerca destruída.
— São os moirões — expliquei para o Dr. Fontes, que saía da barraca com o óculos torto na cara amarrotada, os cabelos em desordem.
— Calma — ponderou Dr. Fontes.
— Filhos de uma puta — insistiu o velho de pele vermelha curtida, ossudo.
Cainca apareceu fora da barraca, nu, com o calção na mão:
— Mas que porra é essa?
— Chega pra lá — ameaçou o velho lá de cima do cavalo.
Cainca enfiou o calção.
— Bem — disse eu — se é por causa dos moirões.
— E o senhor tem dúvida? Olha lá o que vocês fizeram com a cerca. Será que algum filho da puta ainda tem alguma dúvida?
— Filho da puta, não senhor — disse Cainca.
— Filho da puta, sim — confirmou o velho brandindo a espingarda.
— Filho da puta é a buceta da mãe.
O velho apontou a espingarda.
— Atira não — gritei, segurando Cainca pelas costas.
— Nada de violência — propôs o Dr. Fontes, colocando-se a meio caminho entre o velho e Cainca. — O senhor desculpe.
— Desculpar uma merda — intrometeu-se Cainca
— Cala essa boca podre, animal.
— Mas, doutor.
— Cala a boca.
— Cala a boca — disse eu também.
— Mas ele tá chamando a gente de filho da puta.
— Isso agora é secundário — disse o Dr. Fontes, tecnicamente.
— Pra mim não é.
— Sua mãe é uma santa — afiançou o Dr. Fontes. — Agora, cale-se.
Cainca acalmou-se. Soltei-o. Dr. Fontes dirigiu-se ao velho:
— Abaixe a arma, por favor.
—O quê?
— A espingarda, meu bravo. Olha — Dr. Fontes ergueu a mão forense — quanto aos moirões.
— Não quero conversa — cortou o velho.
— E o que é que o senhor quer então? — Cainca quis saber.
— Muita calma. — Dr. Fontes repetiu o mesmo gesto amistoso. — Eu quero dizer que retiramos os moirões, mas não vamos dar prejuízo a ninguém. Pelo amor de Deus.
O pessoal aqui é gente boa — observei eu modestamente.
— Gente boa? — O velho fez uma careta em cima do cavalo mantendo a espingarda firme na mão direita, enquanto a esquerda segurava a rédea de couro.
— O senhor está vendo — entornei. — Tudo aqui é gente boa. Viemos só dar uma pescada. E ninguém quer dar problema pra ninguém.
O velho relaxou-se um pouco, os olhos muito azuis no rosto fino e curtido de sol. Estávamos os três à sua frente, a cinco passos do cavalo acaboclado que assistia tudo em omisso silêncio.
— Tá certo — Cainca procurou ajudar, esforçando-se para imprimir à voz um tom sordidamente ameno e fraudulentamente conciliador. Tiramos os moirões. A gente errou, mas a gente paga.
Dr. Fontes meteu rápido a mão no bolso do macacão:
— É só o senhor falar quanto é, nós pagamos, pedimos desculpa se o senhor quiser — e pronto.
— Pagar? — rosnou o velho. — Pagar o quê?
— Os moirões, é evidente.
— Os moirões. Eu quero eles de volta.
Lá estavam os moirões, ou melhor, o resto dos moirões, metidos no fogáo cavado na terra e de onde ainda saía uma pífia fumaça. A dez metros da Rural, passava a cerca dividindo o campo imenso e montanhoso que se estendia verde pelo horizonte a fora, sem uma única árvore. Nada.
— Por favor — tornou o Dr. Fontes. — É só o senhor ter a bondade de dizer o valor dos moirões, nós pagamos.
— Quero os paus onde eles estavam — retrucou o velho. — Quero a cerca no mesmo lugar.
Mesmo assim, Dr. Fontes tirou um maço de notas da carteira. Mas não conseguiu sensibilizar o velho homem.
— Não quero saber de dinheiro — disse ele. — E só dar o dinheiro e está tudo resolvido? Invadir o terreno dos outros, arrebentar cerca, é?
— Nós estamos propondo um negócio correto — argumentou o Dr. Fontes. — Estamos propondo uma indenização. É o mesmo que refazer a cerca. E a gente paga até a mais, por causa do aborrecimento.
O velho encostou o cano da arma no pescoço imóvel do cavalo e ficou avaliando o Dr. Fontes com os seus enrugados olhos azuis.
— Certo? É só o senhor falar quanto é. — Dr. Fontes animou-se, exibindo a dinheirama aberta nas mãos.
— Quero a cerca como estava — redarguiu o velho — do mesmo jeito, no mesmo lugar.
— Puta que os bunda — disse Cainca.
— Assim é pior — observei.
— Porra, mas não tem jeito de conversar com ele.
— Deixe ficar — pedi, e depois me dirigi ao velho: — olha, o Dr. Fontes é advogado. Ele entende dessas coisas.
— Adevogado? corrigiu o velho, medindo o Dr. Fontes, cuja elegância de bota e macacão desbotado não endossava sua jurídica condição.
— Advogado — entusiasmei-me — e dos melhores. O que ele está propondo é o que está na lei. Se alguém dá um prejuízo tem que indenizar a outra parte.
Esperei que o velho reagisse. Ele se inclinou um pouco para a frente. Tive a impressão, sondando sua cara toda sulcada e curtida, que ele agora não estava se sentindo bem. Continuei:
— Nós destruímos sua cerca sem má intenção. Agora temos que pagar, que indenizar o senhor. Assim o assunto fica encerrado. O senhor fala é tanto, e nós pagamos.
— Quero a minha cerca — respondeu o velho. Ao mesmo tempo em que levava a mão à barriga murcha. Seu rosto estava começando a suar
— Pra mim este papo tá furado — disse Cainca; foi até a Rural e apanhou a sacola que estava dependurada na porta aberta.
— Larga isso aí — ordenou o velho
— Largar, é? — Cainca enfiou a alça no pescoço.
— Um momento — pediu o Dr. Fontes, e encaminhou-se para Cainca
— Cainca, você está piorando a situação.
— Desculpe, doutor, mas estou puto da vida.
— Eu sei, rapaz. Deixe a sacola aí até a gente chegar a um acordo.
— Dr. Fontes, por favor: o senhor e o Moacir conversam com ele. Eu vou só conferir as linhas.
Cainca ajeitou a sacola, deu as costas para o velho, desceu o pequeno barranco até alcançar a margem do Paraopeba. Começava a entardecer, e os últimos raios de sol reverberavam na água encachoeirada. Olhei para o Dr. Fontes e vi que tínhamos pensado a mesma coisa.
— Bem—disse ele para o velho. — Vamos dar uma pescada enquanto o senhor decide.
— Pescada? — O velho estava tenso, com o rosto um pouco mais pálido e molhado de suor.
— Olha— explicou o Dr. Fontes apanhando o molinete encostado à barraca. — O que nós podemos fazer é isso: pagar a cerca. Não podemos fazer mais nada. Queira desculpar.
Apanhei o caixotinho de minhocuçu e segui o Dr. Fontes, que já se encaminhava para o rio.
— Para aí— gritou o velho, com o cavalo virado em nossa direção e a espingarda à altura do ombro.
Paramos no topo do barranco.
— O senhor não vai fazer uma bobagem — disse o Dr. Fontes.
— Pare — ordenou novamente, embora já estivéssemos parados. A espingarda tremia em suas mãos e seu rosto estava incrivelmente desbotado.
— Calma — Dr. Fontes ergueu a mão. — O senhor não vai atirar na gente por causa de três pedaços de pau.
Cainca subiu o barranco e veio para o nosso lado:
— Porra, será que o velho aí querendo foder a gente?
— Fica quieto — disse eu.
—Acho que nós temos — ia dizendo o Dr. Fontes, quando vimos a espingarda cair e, logo em seguida, o velho levantar os braços espasmódicos à altura do peito, desprender-se do cavalo, tombar de cabeça no chão, ficando com um dos pés agarrado no estribo.
Cainca precipitou-se para o cavalo e segurou as rédeas. Dr. Fontes amparou o corpo do velho, que agora estava sem chapéu, enquanto eu retirava sua botina do estribo. Dr. Fontes estendeu-o no chão. O corpo do velho tremia e, dentro da bocarra, de dentes podres e poucos, a língua parecia que estava dando um nó. Quietou-se em seguida, os olhos esbugalhados.
Dr. Fontes sentiu o pulso e depois pôs o ouvido no peito do velho e procurou escutar. Ergueu-se contrariado.
— Puta merda — disse ele.
— Por Deus — disse eu. — Tem certeza?
— Puta merda, se tenho.
— Olha de novo, doutor.
— Não há mais nada para olhar — disse o Dr. Fontes.
Cainca largou as rédeas do cavalo e foi logo juntando as nossas coisas que andavam pelo chão.
— Sacanagem — disse o Dr. Fontes, dirigindo-se para a barraca.
Enquanto Cainca recolhia as varas na beira do rio, ajudei o Dr. Fontes a desmanchar a barraca e dobrar a lona. Pusemos tudo dentro da Rural. Olhamos para o cavalo de cabeça baixa, omisso. Olhamos para o velho esparramado no chão, com os olhos fixos no céu todo azul, sem uma única nuvem. Olhamos em volta para ver se havia mais alguma coisa para recolher. Estava tudo certo.
— E agora, doutor? — disse eu.
— Agora?
— O que é que vamos fazer?
— Foda-se — disse o Dr. Fontes entrando na Rural.
(Os melhores contos)
(Ilustração: escultura de Elias Vitalino - homem a cavalo)
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