Além da janela aberta é somente o espaço. E ela adivinha céu azul com chumaços de nuvens brancas, o mar e o espaço quadrado e concreto. Se estender longamente as pontas dos dedos, conseguirá tocá-lo.
Na cadeira do terraço, décimo andar qualquer, brinca de descobrir formas e cores.
Vermelho vibra como trombetas. A brisa macia encostando-lhe no rosto, isto é azul. Cor de rosa vem no riso das crianças. O verde, sobretudo. Verde som de onda e a onda, feita de mar. Já tinha estado num barco. Sentira, então, todas as cores juntas.
Desde que se haviam mudado para o edifício da praia, ela passa horas de sol no terraço, ouvindo o mar. Seu ouvido apurado consegue separar o verde dos outros ruídos de rua, fazendo-a feliz. Para sentir felicidade, precisa pouco.
No prédio defronte, altura um andar acima, as mãos do homem apoiam-se no parapeito do terraço. Não usa gravata e a camisa desabotoada diz que ele está sufocando. No tom do seu rosto, ela jamais conseguirá definir o pálido de abatimento e tristeza.
Para ele o mundo já está podre. Pequeno, sórdido e podre. Não acredita mais nas coisas e nas pessoas. Então, para que insistir entre elas? Debruçado, mede a distância que o separa do solo. Como ficariam seus sessenta anos de lutas esborrachados no chão?
*
O calor do sol queima. Ela deve trocar o alaranjado quente pela brancura da sala refrigerada. Faz um último esforço para sentir o som da onda. Se ficar bem quieta, o verde subirá até ela, separado de outros sons. Seus olhos muito abertos fixam o alto.
O olhar magoado de um homem cheio de desespero bate neles. Dois olhares encontrando-se no espaço. Um, abandonado. O outro, grande em fé.
Prolonga-se o encontro. Dura, enquanto ela ouve o mar e lágrimas de alegria escorrem-lhe pelo rosto.
Ele conserta o corpo, surpreendido, muito perto daquelas lágrimas. Alguém sofre com ele. Um ser humano chora, súplica muda falando alto. Surgem névoas de esperanças. Verdes também, as esperanças. Ele fecha os olhos e somente consegue abri-lo quando descobre que o mundo não está irremediavelmente perdido.
Conserva-se imóvel, o rosto ainda voltado para o seu lado. E se ele lhe sorrisse, num recado de ajuda e gratidão? Sente carinho, quase esquecido de sentir.
O olhar dela volta, profundo e expressivo, mas difícil de entender. Continuando a dizer coisas que ele jamais conseguirá alcançar.
Ela anda vagarosamente em direção à porta de vidro. Ele fica vendo-a sumir. Depois, entra também. Mas já é um homem salvo.
Precisa saber o nome. Quem é, o que faz. E de que modo agradecer-lhe a vida restituída. Veste o paletó e desce. Meia dúzia de passos até a calçada defronte.
O porteiro, desconfiado, compreensivo, sem querer compromissos:
- Aquela mocinha do décimo andar é filha do novo inquilino. Só hoje o senhor notou? Mas eles já estão ali há mais de um mês...
Há outra coisa maior que não ousa dizer. Acontece um pouco de silêncio. Finalmente revela, num tom que protege o anjo do décimo andar:
- Um encanto de menina, coitadinha. É pena ter nascido cega...
(Rio, 1958)
(Acontecências)
(Ilustração: Guennadi-Ulibin)
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