Hoje talvez anoiteça
mais cedo ou
amanheça
maiscedo ou
anoitemanheça.
Hoje não é aqui
nem nunca.
Hoje só não pode ser ontem.
Hoje estou no Treviso
com o Edgar Koetz.
Hoje estou na Volunta
com Zina Loreto.
Hoje estou com o Paulo
na cidade-baixa.
Hoje no 111
estou lendo um romance
de uma bela menina.
Hoje a grande amizade
nasceu de um abraço
na Senhor dos Passos.
Hoje estou com o Grupo
num canto do Huberthus.
Hoje estou com o Mário
no Guaraxaim.
Hoje estou de volta
de onde nunca estive.
Hoje estou sarrafo,
muafo, afo.
Hoje cada instante
tem cara de inseto.
Hoje estou numa serra
entre roças e rios,
hoje sou acidente
e morri de repente.
Hoje cruzei o fundo
das águas extremas,
levaram Vicente.
Hoje sou um instante
vivendo no Leme.
Hoje tenho a cabeça
e os pés numa síntese.
Hoje sou o cavalo
dos meus desajustes.
Hoje sou o estrabismo
que encurva as distâncias.
Hoje estou neste bar
entre gente festiva.
Hoje estou nesta mesa
bebendo sozinho.
Hoje é quando não sei
mais notícias de mim.
Hoje tudo é possível.
Ontem, não.
Ontem, não.
Ontem não é possível.
Ontem não é possível.
Clarice morreu.
(Folha da Tarde, POA, 7 de janeiro de 1978)
(Ilustração: De
Chirico Clarice Lispector)
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