Nossa cultura tem
verdadeira obsessão pela ortografia, que se manifesta de diversas maneiras: a)
pela correção furiosa de qualquer erro; b) pelo riso que os erros provocam
(basta ver as reações às placas que circulam pela internet); c) pela
insistência em exercícios escolares de ortografia e por seu peso na avaliação;
d) pela identificação da reforma ortográfica com reforma da língua (todos os
jornais e muitos intelectuais caíram nessa); e) pela onda recente do emprego 'clínico'
da noção de consciência fonológica; f) por último, na verdade reunindo todas as
manifestações anteriores, pelo fato de ‘analfabeto’ significar ignorante.
Vou comentar alguns
exemplos. No início do governo FHC, a crise na educação era representada, em
uma propaganda, pela grafia ‘educasão’. À medida que se anunciavam medidas
saneadoras, o ‘s’ se movimentava e finalmente se transformava em um ‘ç’. O
sentido é óbvio: os problemas da educação são representados por um erro de
ortografia e as soluções são representadas por uma grafia correta, corrigida. A
quem ocorreria representar problemas escolares por meio de um erro de geografia
ou de aritmética?
Há poucos dias, decidiu-se
que o nome da bola da Copa de 2014 será ‘brazuca’. Houve diversas críticas, uma
delas ao fato de que a escolha do ‘z’ se deve em parte a questões
mercadológicas (‘brazuca’ facilitaria o registro, questão pela qual passam
todas as marcas e outros ‘objetos’, como sites e até logins). Também se
criticou a decisão pelo fato de que ‘brazuca' (independentemente da grafia) tem
sentido pejorativo (equivalente a ‘portuga’ para ‘português’, disseram diversos
colunistas). Mas também houve manifestações de receio de que, de novo, nossa
língua estivesse correndo riscos em decorrências de grafias erradas!
Aparentemente, as manifestações eram sinceras.
Eventualmente, publico
textos (semelhantes a este) com algum erro. Lembro-me de um em que escrevi
‘serrado’ por ‘cerrado’. Em poucos minutos, uma dezena de leitores corrigia meu
erro e alguns faziam suposições estranhas: que eu teria dito que uma vasta
região do país fora ‘serrada’...
Seria de extremo interesse
haver clareza em relação a essa questão. Em primeiro lugar, sempre vale a pena
ressaltar que a invenção de sistemas de escrita de tipo alfabético é uma
complexa tarefa. Não basta representar o ‘mesmo som’ pela mesma letra (ainda há
quem proponha saídas assim, em épocas de reformas: que se escreva, por exemplo,
‘ezemplo’, ‘eseto’, ‘faka’, ‘sereja’, ‘jente’ etc.). Suponha-se que estivéssemos
inventando uma escrita para o português falado no Brasil. Não é fácil decidir
se a última letra de palavras como ‘final’ e ‘Brasil’ deve ser ‘u’ (como a
maioria fala) ou ‘l’.
Se o fundamento fosse o
som produzido quando essas palavras são proferidas, a solução deveria ser um
‘u’ final para a maior parte da população (a variação de pronúncia é por si um
impedimento para essa solução). A solução criaria um problema para palavras
como ‘finalidade’, nas quais um ‘l’ aparece (na verdade, reaparece). Ou seja:
considerando famílias de palavras, é-se levado a uma análise que conclui que o
‘u’ final de ‘final’ não é um ‘u’, mas um ‘l’ (como o de ‘Brasil’ – como o
provam ‘brasileiro’, ‘brasilidade’ etc.).
Este é, na verdade, um
caso simples, comparado com as questões suscitadas por palavras cujos traços
históricos, por uma ou outra razão, parece interessante preservar (como o ‘h’
de ‘homem’ e de ‘hoje’, o ‘sc’ de ‘ascender’ e, para muitos portugueses, por
exemplo, o ‘c’ de ‘facto’).
Em segundo lugar, não é
necessário ver no erro de grafia sintomas de derrocada da língua ou do
pensamento. Basta considerar, por exemplo, que muitos casos de ‘problemas’
decorrentes de grafia errada simplesmente desaparecem quando não se trata de
escrita, mas de fala. Se sugiro ‘plantar soja no cerrado’, ninguém pode
adivinhar se grafaria a palavra com ‘s’ ou com ‘c’. O fato de não se distinguir
‘serrado’ de ‘cerrado’ não produz nenhum problema de interpretação.
Além disso, o fato de que
muitos cidadãos, mesmo que nunca escrevam nada, assim que são confrontados com
qualquer erro, logo fazem uma correção (e tripudiam!), indica que o erro não
impede a leitura, a compreensão (‘cesta-feira’ logo é reescrito ‘sexta-feira’,
o que indica que, com base em alguns critérios, descobre-se o que o trecho
significa, a despeito de grafia). Ou seja, um erro de grafia é um erro, mas é
só um erro de grafia. Nem destrói a língua nem impede a compreensão. Ou não
mais que outros fatores.
É urgente que a escola dê
ao erro de grafia seu justo estatuto. Isso evitaria que a grafia deixasse de
ser ensinada, por um lado, e, por outro, que seja quase o único (ou mesmo o
mais importante) critério de avaliação de um texto.
Comento outro fato: caso
alguém decida ler as autorizações oficiais (da Inquisição e da Coroa) para a
publicação de Os lusíadas, vai encontrar grafias como as seguintes: ‘declarão’,
‘descobrio’, ‘aver’, ‘licença/licẽnça’,
‘imprimir/emprimir’, ‘diãte’, ‘cõ’, ‘valhão’, ‘algũs’, ‘hũa’, ‘nẽ’,
‘mãdado’, ‘fizerão’, ‘bõs’, ‘custumes’, ‘toda via’, ‘conhecendoa’. Convenhamos,
é uma boa lista de erros que poderiam ser encontrados num caderno de aluno da
terceira ou quarta série.
O que isso significa? Duas
coisas, pelo menos: a) que, quando não havia lei ortográfica, a escrita dos
profissionais era variável, isto é, não uniforme –eventualmente, encontram-se
até mesmo duas grafias para a mesma palavra a pouca distância uma da outra;
maior uniformidade pode ser vista nas edições, porque as editoras tinham sua
política de escrita e b) que os ‘erros’ de ontem e de hoje são muito
semelhantes; de fato, alguns se repetem totalmente.
Deveriam ser razões para
que se tentasse compreender o que é a escrita alfabética (um misto de análise,
de história, de acordo político, de política editorial, pelo menos). E que dificilmente
os erros são sintomas de deficiências neurológicas. São apenas sintomas da
relação nada óbvia entre sons e letras, especialmente se se consideram as
pronúncias populares.
Quando se diz que há no
Brasil cerca de 20% de disléxicos, e dado que muitos diagnósticos são fundados
na falta de domínio da grafia oficial, provavelmente o índice releva graves
deficiências de análise da escrita, um desconhecimento mais ou menos elementar
das razões que levam alguém a escrever errado.
(Ilustração:Idade Média
monges copistas)
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