“Vais encontrar o mundo,
disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.”
Bastante experimentei
depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança
educada exoticamente na estufa de carinho que é o regímen do amor doméstico;
diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos
cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais
sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da
vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto,
com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje,
sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a
enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes
tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos
dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em
todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que
se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base
fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das
horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo
- a paisagem é a mesma de cada lado, beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
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Duas vezes fora visitar o
Ateneu antes da minha instalação.
Ateneu era o grande
colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um
diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o
jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos
de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na
preferência dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de
aclamações o bombo vistoso dos anúncios.
O Dr. Aristarco Argolo de
Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Norte, enchia o Império
com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas províncias,
conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à sustância, atochando a
imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados
às pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente
anônimos, caixões e mais caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as
escolas públicas de toda parte com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas,
em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador
dos esfaimados de alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não
procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea,
irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do
espírito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um benemérito. Não
admira que em dias de gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepções
da coroa, o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de
pedraria, opulentando a nobreza de todos os honoríficos berloques.
Nas ocasiões de aparato é
que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do
peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um
anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei - o autocrata excelso dos
silabários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo,
que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o
olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês,
penetrando de luz as almas circunstantes - era a educação da inteligência; o
queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das
consciências limpas - era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade
do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande
homem... não veem os côvados de Golias?! Retorça-se sobre tudo isto um par de
bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os
lábios, fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que tão belamente impunha como
o retraimento fecundo do seu espírito, - teremos esboçado, moralmente,
materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um personagem que, ao
primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz
e estranha: a obsessão da própria estátua.
Como tardasse a estátua,
Aristarco interinamente satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para
o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor da
mocidade brasileira.
A irradiação da reclame
alongava de tal modo os tentáculos através do país, que não havia família de
dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que
não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre
seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do
Ateneu.
Fiados nesta seleção
apuradora, que é comum o erro sensato de julgar melhores famílias as mais
ricas, sucedia que muitos, indiferentes mesmo e sorrindo do estardalhaço da
fama, lá mandavam os filhos. Assim entrei eu.
A primeira vez que vi o
estabelecimento, foi por uma festa de encerramento de trabalhos.
Transformara-se em
anfiteatro uma das grandes salas da frente do edifício, exatamente a que servia
de capela; paredes estucadas de suntuosos relevos, e o teto aprofundado em
largo medalhão, de magistral pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava
aos cachos deliciosos anjinhos, ostentando atrevimentos róseos de carne,
agitando os minúsculos pés e as mãozinhas, desatando fitas de gaze no ar.
Desarmado o oratório, construíram-se bancadas circulares, que encobriam o luxo
das paredes. Os alunos ocupavam a arquibancada. Como a maior concorrência
preferia sempre a exibição dos exercícios ginásticos, solenizada dias depois do
encerramento das aulas, a acomodação deixada aos circunstantes era pouco
espaçosa; e o público, pais e correspondentes em geral, porém mais numeroso do
que se esperava, tinha que transbordar da sala da festa para a imediata. Desta
antessala, trepado a uma cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me
informações. Diante da arquibancada, ostentava-se uma mesa de grosso pano verde
e borlas de ouro. Lá estava o diretor, o ministro do Império, a comissão dos
prêmios. Eu via e ouvia. Houve uma alocução comovente de Aristarco, houve
discursos de alunos e mestres; houve cantos, poesias declamadas em diversas
línguas. O espetáculo comunicava-me certo prazer respeitoso. O diretor, ao lado
do ministro, de acanhado físico, fazia-o incivilmente desaparecer na
brutalidade de um contraste escandaloso. Em grande tenue dos dias graves,
sentava-se elevado no seu orgulho como em um trono. A bela farda negra dos
alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração tímida de um militarismo
brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem. A letra dos
cantos, em coro dos falsetes indisciplinados da puberdade, os discursos,
visados pelo diretor, pançudos de sisudez, na boca irreverente da primeira
idade, como um Cendrillon mal feito da burguesia conservadora, recitados em
monotonia de realejo e gestos rodantes de manivela, ou exagerados, de voz cava
e caretas de tragédia fora de tempo, eu recebia tudo convictamente, como o
texto da bíblia do dever; e as banalidades profundamente lançadas como as
sábias máximas do ensino redentor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos
do estudo, mestres à frente, na investida heroica do obscurantismo, agarrando
pelos cabelos, derribando, calcando aos pés a Ignorância e o Vício, misérrimos
trambolhos, consternados e esperneantes.
Um discurso principalmente
impressionou-me. À direita da comissão dos prêmios, ficava a tribuna dos
oradores. Galgou-a firme, tesinho, o Venâncio, professor do colégio, a quarenta
mil réis por matéria, mas importante, sabendo falar grosso o timbre de
independência, mestiço de bronze, pequenino e tenaz, que havia de varar
carreira mais tarde. O discurso foi o confronto chapa dos torneios medievais
com o moderno certâmen das armas da inteligência, depois, uma preleção
pedagógica, tacheada de flores de retórica a martelo; e a apologia da vida de
colégio, seguindo-se a exaltação do Mestre em geral e a exaltação, em
particular, de Aristarco e do Ateneu. "O mestre, perorou Venâncio, é o
prolongamento do amor paterno, é o complemento da ternura das mães, o guia
zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa que vai às conquistas do saber
e da moralidade. Experimentado no labutar quotidiano da sagrada profissão, o
seu auxílio ampara-nos como a Providência na terra; escolta-nos assíduo como um
anjo de guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro.
Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o espírito (sorte de
sensação), e o espírito é a força que impele, o impulso que triunfa, o triunfo
que nobilita, o enobrecimento que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o
louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma do crente! A família é o
amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com o amor forte que
ensina e corrige, prepara-nos para a segurança íntima inapreciável da vontade.
Acima de Aristarco - Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus - Aristarco."
Um último gesto espaçoso,
como um jamegão no vácuo, arrematou o rapto de eloquência.
(O Ateneu)
(Ilustração: autor
desconhecido - garçon fouetté - moyen âge)
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