Relutante, ela entra na Delegacia de Mulheres.
- "Pois não."
diz a detetive de plantão.
- "Eu queria uma
informação."
- "Pode falar."
- "Eu queria saber
onde é que eu posso levar a televisão que meu marido quebrou pra fazer um exame
de objeto delito."
- "A senhora está
brincando comigo."
- "Não, não. Estou
falando sério."
- "Mas, minha
senhora..."
- "Primeiro foi meu
radinho de pilha que eu levava pra cozinha. Um dia eu disse a ele que não
aceitava mais que ele me tratasse mal na frente dos parentes dele. Ele
jogou meu radinho na rua e o ônibus
passou em cima dele. Só sobrou a capinha de couro cor-de-rosa. Tinha sido
presente do dia dos namorados. Antes de casar, né? Porque agora, ele não me dá
presentes mais. Diz que é invenção de judeu, que presente não tinha que ter
data marcada pra dar, que a gente dá é na hora que está com vontade. Dez anos
de casamento! O único presente que ele me deu foi há uns cinco anos. Um
aparelho de som. Mas só ele sabe mexer na aparelhagem. Eu não entendo aqueles
botões todos e ele disse que é melhor eu não mexer pra não estragar."
- "Minha senhora, tem
muita gente lá fora esperando..."
- "O som, ele quebrou
no dia que eu reclamei que eu vivia socada em casa, que ele saía todas as
sexta-feiras pra tomar chopinho, e que eu só ia a aniversário de criança em
casa de parentes e, mesmo assim, quase sempre sozinha porque ele estava sempre
cansado."
- "Ele alguma vez
bateu na senhora?"
- "NÃO, nunca! Só um
empurrão e um tapinha de leve. Toda vez que eu falo o que ele não quer escutar,
ele ameaça me bater. Mas eu não tenho medo não. Eu queria que ele me batesse
pra marcar, pra eu poder mostrar pra todo mundo. Pra senhora, principalmente.
Mas ele só aponta pra mim com a mão fechada, como se fosse dar um soco, e diz
"ai que vontade de quebrar você todinha. Cala essa boca que eu ainda te
arrebento. Um dia eu não aguento e te estraçalho." Mas bater nunca. Ele já
quebrou o telefone. Ah! o sem fio também, o rádio relógio..."
- "Mas então o que a
senhora veio fazer aqui?"
- "Pedir informação
pra fazer exame da minha televisão."
- "Eu acho que a
senhora veio ao lugar errado."
- "Mas não é aqui que
protegem as mulheres de seus maridos violentos?"
- "E televisão é
mulher?"
- "Não é, mas fala. E
ele tem ódio quando eu começo a falar que eu não tenho obrigação de catar as
meias que ele joga no chão; que eu não tenho obrigação de ir ao banco e
enfrentar fila pra ele; que eu não tenho obrigação de guardar suas roupas,
arrumar suas gavetas, limpar seus sapatos, esvaziar seu cinzeiro e guardar as
garrafas que ele esvazia. O dia que ele quebrou o toca-fita, eu tinha falado
que minha boca ninguém fechava. Ele tem mania de mandar eu calar a boca, mas eu
não calo. Se eu não posso gritar com ele, ele também não pode gritar comigo. A
senhora não acha?"
- "Até agora, eu não
consegui entender o que eu posso fazer pela senhora."
- "A senhora não
entendeu ainda? Eu corro risco de vida. A televisão era a única coisa que ainda
falava lá em casa. Agora só eu falo... porque as crianças só falam o que ele
quer escutar. A televisão não, ela fala um monte de coisas que ele não gosta de
ouvir. Fala, por exemplo, de orgasmo feminino que ele acha que não existe, fala
de diálogo entre os pais e os filhos, de alcoolismo... Fala sobre tudo que o
incomoda. Eu também o incomodo. Eu sei. Eu sou a próxima vítima. Eu sou o único
objeto falante que sobrou, entende?"
- "Mas televisão
quebrada não é caso pra Delegacia de Mulher."
- "A senhora não
entende? Por favor! Ele quebrou a televisão. Eu sou a televisão. Eu não existo
sem a televisão. Quando eu ligo a televisão, eu tenho o corpo bonito, a
sexualidade desreprimida, roupas lindas, amantes afetuosos... Eu sou
revolucionária, contestadora, intelectual, política, executiva, repórter,
artista, heroína, independente, segura, dona de mim... Eu vejo o noticiário e
finjo que faço parte desta cidade, deste estado, deste país, deste mundo. Mas
agora, eu não sou nada. Eu sou só a mulher do meu marido. E que eu nem sei se é
só meu ou se divido com outras."
- "Mas minha senhora.
Não é crime quebrar um objeto. Não se faz exame de corpo delito em objetos, só
em pessoas."
- "E se ele me
quebrasse? Eu poderia fazer exame de corpo delito?"
- "Claro. E nós
chamaríamos seu marido aqui e abriríamos um inquérito. Mas a senhora mesma
disse que ele não te agride."
- "Mas então eu não
estou entendendo mais nada. A televisão lá em casa sempre foi mais gente do que
eu. Eu sim é que fui e sou objeto. Ele não olha pra mim, ele olha pra
televisão. Ele não conversa comigo, mas com a televisão ele conversa. Quando
aparece um político ele diz, "demagogo, sem vergonha". Se aparece uma
mulher bonita, ele diz, "isso é que é mulher!" Se aparece uma mulher
inteligente no programa da Hebe falando do machismo do homem brasileiro, ele
logo diz, "essa aí devia estar choferando um fogão ou um tanque de
roupa." Mas, se eu tento conversar, ele finge de surdo ou então diz, sem
tirar os olhos da televisão, "pera aí que eu quero ouvir", e aponta
pra televisão. Se eu começo a conversar com as crianças ou com alguém no
telefone, ele aumenta o volume da televisão. A senhora não acha que a televisão
é muito mais gente do que eu?"
- "Olha minha
senhora, a única coisa que eu posso te dizer é que não podemos fazer nada pra
te ajudar. Não há leis protegendo objetos da agressão de seus donos."
- "Mas quebrar coisas
que falam não é crime?"
- "Não."
- "Mas ele pode me
quebrar."
- "A senhora vai me
desculpar, mas não podemos trabalhar com hipóteses. Se em quinze anos de
casada, ele nunca agrediu a senhora, não será agora que ele vai fazê-lo, não
é?"
- "Mas isso também é
uma hipótese."
- "A próxima, por
favor."
Vencida pelo argumento da autoridade, a mulher foi para
casa. O marido que havia avisado que não viria para o jantar chegara primeiro e
a olhava desconfiado. A televisão continuava calada. Ela correu para a cozinha
e foi ajudar a empregada no preparo do jantar. Da sala o marido, em silêncio,
furava-lhe com os olhos. Quando ela colocou a sopa fumegante na mesa, ele virou
a sopeira em cima dela sem dizer uma palavra. Ela soltou um grito de dor logo
abafado pelo soco que lhe rachava os dentes e outro que lhe sangrava o nariz.
Assim que tomou um fôlego, ela gritou que iria denunciá-lo na Delegacia de
Mulheres. Ele pegou o revólver e deu-lhe um tiro na boca. A morte arregalou-lhe
os olhos que se fixaram no aparelho de televisão quebrado. As crianças, que
estavam na casa do vizinho, entraram correndo e encontraram o pai, atônito,
olhando para o retrato de casamento em cima do aparelho de televisão. A filha
mais nova abraçou o pai e disse, "não chora papai, ela está caladinha, do
jeitinho que o senhor gosta."
(Ilustração: Gottardo Ciapanna -
tentazioni di santo Antonio, detalhe)
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