Manhã de 5 de outubro de 1941. Manhã de cobaltinas luminosidades. As nuvens em brancas manadas, passeavam nos céus de um azul cansado. Uma brisa amena, soprava os penachos de palmeiras, que como braços de turmalinas, saudavam o alvorecer doirado do astro-rei, que levantando-se preguiçosamente, lançava sua cabeleira incendiada pelas dobras assimétricas da terra. A cidade espreguiçando-se, deixava os mantos translúcidos da madrugada, abrindo as janelas de um dia alabastrino e brilhante. Já a lua se recolhera, puxando consigo o manto de estrelas de sua corte, vagarosamente até outras plagas.
Acorda a cidade Lavras. Sobre todas as maravilhas dessa manhã radiosa, pesava um esquisito véu de tristeza. As árvores pareciam se curvar dolentemente e a própria brisa parecia soluçar desamparada nas esquinas.
De alto a baixo, do Cruzeiro à Estação. Em todos os recantos, da Chacrinha ao Cascalho; nas altas rodas, nos asilos, nos quartéis, um sussurro medroso caminhava pausadamente, fazendo um eco macio e temeroso nos lares e nas praças, no comércio e nas repartições: Morrera a vovó Emerenciana...
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Muito cedo ainda, verdadeiras romarias, desciam as ladeiras íngremes da nossa Lavras, até à casinha modesta de Dona Emerenciana Pinto de Miranda. Ali naquela casa acolhedora, onde os pais e esposos, de todas as rodas, de todas as classes, procuraram por anos a fio a pessoa bondosa da nossa querida madrinha e vovó Emerenciana, uma torrente de lágrimas brotava desconsolada, inundando todos os corações e pondo o seu soluço de desconsolo em todos os peitos. Sobre a mesa, em seu ataúde florido, jazia inerte o corpo cansado daquela boa e idolatrada velhinha.
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Quantas noites, quantas madrugadas, quantos dias ensolarados ou chuvosos, não viram um esposo desesperado, esmurrar aquela porta simples e acolhedora da vovó lavrense: - Siá Emerenciana! Vem comigo, agora, bem depressa! Penso que é chegado o momento!... E nunca deixava de aflorar naqueles lábios a mesma frase consoladora: - Calma meu filho, Deus há de ajudar... com que certeza, com que convicção, vovó Emerenciana pronunciava pausadamente estas palavras. E com razão. Deus sempre ajudava. Era mais um filho de Lavras que nascia, sob os cuidados amorosos desta mãe de uma geração.
E quando o aviso do primeiro filho chegava a um lar recém-formado, era de se ver o sorriso da vovó Emerenciana, troçando do novo pai, que via em tudo aquilo uma situação desesperadora, como se somente em sua casa, em toda a existência da humanidade, acontecesse fato tão extraordinário: - Tenha calma, meu filho. Calma e paciência. Quando você nasceu, fui eu quem atendi à sua boa mamãe. E você não está aí forte e sensível? Quem sabe se esse filho seu que vai nascer, não virá também aqui um dia, em busca de minha ajuda? Calma meu filho, Deus há de ajudar.
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D. Emerenciana Pinto de Miranda, ou melhor, continuando com a familiaridade, vovó Emerenciana gozava da confiança de todos os médicos de Lavras, que viam na sua prática, no seu desvelo, as bases de uma verdadeira ciência. E a boa velhinha, dia após dia e noite após noite, levava aos lares desta “terra dos ipês e das escolas”, o seu sorriso amigo e a sua confiança altaneira.
Exercendo por uns quarenta anos a sua espinhosa profissão de parteira, vovó Emerenciana comparticipou nos trabalhos de dar à luz da vida cerca de quatro mil lavrenses. Soube ela também, ser na verdade vovó de todos eles, porquanto a sua dedicação não terminava com o final do trabalho profissional, mas, acompanhava os seus netinhos na vida, sempre com desvelo e atenção, fazendo questão absoluta de ser vovó e madrinha. E, sem exagero, era-o na verdade.
Vovó Emerenciana era comadre de meia Lavras. Vivia sempre a indagar pela saúde da comadre ou do compadre, pela situação do netinho. Era na verdade uma santa mulher.
Com que satisfação comparecia aos aniversários dos netinhos – e nunca deixavam de convidá-la – tomava mesmo parte ativa na festinha, preparava os doces, a mesa e nunca se esquecia de amassar uma gostosa rosca folhada para o apetite da garotada. Ah! A rosca folhada da vovó Emerenciana!
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D. Emerenciana Pinto de Miranda nasceu nesta cidade de Lavras, a 16 de julho de 1865. Aqui passou toda a sua infância e mocidade. Contraiu matrimônio com Sr. Sidney de Paula Pinto em maio de 1881. Como esposa devotada, viveu sempre ao lado do seu marido, atravessando com ele os caminhos da vida; sorrindo com as suas alegrias e chorando com as suas tristezas.
Mãe carinhosa, deu ao mundo sete filhos que eram o adorno de sua vida de batalhadora.
Em 15 de maio de 1903, justamente ao completar-se o 22º aniversário de seu casamento, a morte entrou em sua casa, roubando-lhe dos braços ternos e amorosos o companheiro de sua vida. Falecia o seu marido Sidney de Paula Pinto.
Se D. Emerenciana foi uma boa vovó, uma ótima comadre, que mãe extraordinária não foi! Enviuvando-se 22 anos depois de casada, quando quase todos os filhos eram ainda crianças, cuidou ela da educação de todos eles, sempre lutando pela vida, dentro da carreira que a consagrou, fazendo dela o ídolo supremo dos lares lavrenses.
E galgou assim, vovó Emerenciana os degraus da vida. Sempre confiante e bondosa, arranjando cada dia que passava, mais um netinho para a sua já enorme família espiritual.
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E foi por tudo isto, que naquela manhã de sol, mesmo sob os augures de um dia belíssimo, toda a cidade se debruçava num pranto uníssono e sentido, fazendo verter do mais profundo do seu coração, lágrimas sinceras de dor e desconsolo. Era o 5 de outubro de 1941.
Se vovó Emerenciana, que viveu e batalhou como pobre, levando durante toda a sua vida um bálsamo a cada lar onde um novo ser despontava para ocupar um lugar ao sol, morreu e foi sepultada como u’a rica, no dizer do nosso amigo Bi Moreira. O seu enterramento foi uma verdadeira e sincera apoteose da riqueza de sentimentos de um povo agradecido, que, serpenteando pelas ruas tortuosas da cidade, levou até à última e eterna morada o corpo de vovó Emerenciana.
Examinando-se cada rosto daquele cortejo imenso, notava-se o pesar e o respeito, a dor e as lágrimas, que, num, num corolário constante, marcavam todos os semblantes. Toda a Lavras compareceu à última jornada de vovó Emerenciana sobre a terra. Empunhando as alças de seu caixão, lavrenses de quem ela ouvira o primeiro choro e a quem dera o primeiro banho, com seu desvelo maternal e amigo, caminhavam de olhar baixo, com o coração dilacerado pelo rude golpe do destino. De todas as janelas e portas da cidade, por onde passava aquela massa humana, como u’a mole de peregrinos seguindo o seu profeta, rostos demarcados pela tristeza, apareciam prendendo soluços, com os olhos queimados pelas lágrimas que então imperavam desconsoladas, baixando-se respeitosamente; passava o cortejo da gratidão e da saudade.
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De todas as esferas da atividade lavrense, surgiram as mais veementes homenagens àquela que soube palmilhar com carinho e desprendimento os sendeiros da existência. Todas as associações religiosas da cidade compareceram ao seu sepultamento, devidamente incorporadas, conduzindo os seus estandartes. A banda de música Euterpe-Operária, conduzida pelo seu maestro, prof. José Luiz de Mesquita, traduziu em notas musicais de pungentes marchas fúnebres, a tristeza e a dor reinante em todos os corações. E, a passos lentos, aquela multidão heterogênea, em absoluto silêncio, acompanhou confrangida, um corpo cuja alma já tomara assento no além infinito, junto ao trono do Senhor.
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Hoje, 5 de outubro de 1947, vemos passar o 6º aniversário de morte da inesquecível vovó Emerenciana. Os lavrenses, netos espirituais desta bondosa velhinha, voltam seus olhos para o azul dos céus, numa prece fervorosa e sincera, de onde brota, em florilégios vibrantes, um preito de agradecimento e uma saudade perene e imorredoura.
Vovó Emerenciana, ouve aí das alturas, a voz deste seu neto, que aqui da terra, contemplando pelos olhos da imaginação a sua glória, se curva num misto de respeito e saudade.
Escondido aqui no meu cantinho, desfrutando este lugar ao sol que a sua mão benfazeja ajudou a me proporcionar, eu quero deixar aqui, para você, boa e dedicada velhinha, para você, vovó Emerenciana, com uma saudade infinda e uma sinceridade tocante, o meu ei... O MEU EI PARA VOCÊ.
(O Meu Ei Para Você)
(Ilustração: Lavras, rua dr. Francisco Salles - década de 30)
Isaías gostei muito do seu texto, parabéns.
ResponderExcluirGostaria de replicar o seu texto no meu blog, com seu consentimento e claro com todas suas letras e sua referência.
Grande abraço.