Em conjunto, os objetos formavam cenários. A impressão de espetáculo me perseguia por toda parte, com o sentimento de que tudo se desenrolava em meio a uma representação factícia e triste. Embora por vezes eu escapasse da visão enfadonha e opaca de um mundo incolor, sempre deparava com seu aspecto teatral, enfático e antiquado.
No contexto desse espetáculo geral, havia outros espetáculos assombrosos que me atraíam mais, posto que sua artificialidade e os atores que neles se apresentavam pareciam realmente compreender o sentido de mistificação do mundo. Só eles sabiam que, num universo espetacular e decorativo, a vida deveria ser representada com falsidade e ornamentação. Tais espetáculos eram o cinema e o panopticum.(*)
Ó sala de cinema B., longa e soturna como um submarino naufragado! As portas de entrada eram recobertas de espelhos de cristal que refletiam parte da rua de maneira que, já na entrada, havia um espetáculo gratuito, antes do da sala, constituído por essa tela surpreendente em que a rua surgia numa luz de sonho, esverdeada, com pessoas e charretes movendo-se sonâmbulas em suas águas.
Na sala reinava um cheiro fétido e ácido de banheiro público. O chão era cimentado e as poltronas, ao se mexerem, produziam rangidos que lembravam breves gritos de desespero. Diante da tela, uma galeria de vagabundo e cafajestes devorava sementes e comentava o filme em voz alta. As legendas eram escandidas por dezenas de vozes em uníssono, como se fossem exercícios de uma escola para adultos. Bem debaixo da tela agitava-se um trio composto por pianista, violinista e um velho judeu que tocava sem parar seu contrabaixo. O velho tinha ainda função de emitir diferentes ruídos que deveriam corresponder às ações que transcorriam na tela. Ele costumava berrar "cocorocó" sempre que aparecia o galo da empresa cinematográfica no início do filme e ainda me lembro de que, uma vez, quando a vida de Jesus estava sendo representada, ele se pôs a bater a caixa do contrabaixo freneticamente com o arco no momento da ressurreição, a fim de imitar os relâmpagos celestiais.
Eu vivia os episódios do filme com uma intensidade extraordinária, integrando-me à ação como um verdadeiro personagem da trama. Muitas vezes acontecia de o filme absorver tanto a minha atenção que eu me flagrava passeando pelos parques da tela, apoiado na balaustrada das varandas italiana por onde evoluía, pateticamente, Francesca Bertini, com os cabelos soltos e os braços agitados como echarpes.
Definitivamente, não há nenhuma diferença bem estabelecida entre a nossa pessoa real e nossos diferentes personagens interiores imaginários. Ao acender das luzes, durante o intervalo, a sala revelava um ar que vinha de longe. Havia no ambiente algo de precário e artificial, muito mais incerto e efêmero que o espetáculo da tela. Eu fechava os olhos e esperava até o ruído mecânico do aparelho anunciar que o filme continuaria; reencontrava então a sala na escuridão e todas as pessoas ao meu redor, indiretamente iluminadas pela tela, pálidas de transfiguradas como uma galeria de estátuas de mármore num museu ao luar da meia-noite.
Num determinado momento, o cinema começou a pegar fogo. A película se soltou e ardeu imediatamente, de modo que, durante alguns segundos, as chamas do incêndio apareceram na tela como uma espécie de aviso condescendente de que o cinema estava em chamas e, ao mesmo tempo, como uma continuação lógica do rolo do aparelho no sentido de apresentar as "atualidades" e cuja missão ele assim cumpria, num excesso de zelo, representando a derradeira e mais palpitante delas: a de seu próprio incêndio. Eclodiram de todas as partes clamores e gritos curtos de "Fogo! Fogo!" como disparos de revólver. O alarido que irrompeu na sala foi de tal magnitude que parecia que os espectadores, até então calados no escuro, não haviam feito outra coisa senão amontoar dentro de si berro e brados, como plácidos e inofensivos condensadores que explodem assim que o limite de sua capacidade de carregamento é ultrapassado.
Em poucos minutos, e antes que metade da sala fosse evacuada, o "incêndio" foi apagado. Os espectadores porém continuavam gritando como se tivesse de gastar, uma vez desencadeada, determinada quantidade de energia. Uma senhorita de rosto empoado como gesso berrava com estridência, olhando fixamente para meus olhos, sem mover-se ou dar um passo na direção da saída. Um cafajeste musculoso, convencido da utilidade de sua força em tais circunstâncias mas sem saber para onde direcioná-la, agarrava uma a uma as cadeiras de madeira e as arremessava contra a tela. Ouviu-se de repente um grande estrondo: uma delas atingira em cheio o contrabaixo do velho músico. O cinema era uma sucessão de surpresas.
(*) O panopticum era uma carroça ambulante de diversões, em que podiam ser vistas coisas e criaturas raras ou extraordinárias. Além disso, podiam-se ver também ilusionistas, levantadores de peso e equilibristas e, às vezes, figuras de cera. [N.T.]
(Acontecimentos na irrealidade imediata; tradução de Fernando Klabin)
(Ilustração: Francesca Bertini; 1892-1985; atriz do cinema mudo italiano de grande sucesso nos anos 20 do século passado - foto da internet, sem indicação de autoria)
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