Finkler
fez por onde.
Foi
essa a conclusão de Tyler Finkler à época e também de Julian Treslove. Sam ia
ter o troco.
O
argumento de Tyler Finkler era mais forte. O marido estava trepando com outras
mulheres. Ou se não estivesse trepando com outras mulheres, poderia muito bem
estar trepando com outras mulheres, dado o volume de atenção que dispensava a
ela.
Para
Treslove, simplesmente Finkler teria o troco por ser finkler. Mas Treslove
também achava que uma mulher tão bonita quanto Tyler não devia ter de sofrer.
Tyler
Finkler. A falecida Tyler Finkler.
Lembrando-se dela enquanto tomava um segundo café, Treslove soltou um suspiro
profundo.
-
Sam está envolvido num projeto que lhe demanda muito - justificara para Tyler,
então. - É um sujeito ambicioso. Foi um garoto ambicioso.
-
Meu marido foi um garoto!
Treslove
sorrira sem jeito. Finkler não havia sido, com efeito, propriamente um garoto,
mas não lhe pareceu correto dizer isso à esposa enfurecida de Finkler.
Os
dois estavam deitados na cama de Treslove naquele subúrbio que ele insistia em
chamar de Hampstead. Não deveriam estar deitados na cama de Treslove em
subúrbio algum. Ambos sabiam disso. Mas Finkler fizera por onde.
Tyler
não ligara para Treslove a princípio para indagar se podia aparecer para
assistir ao primeiro programa da nova série do marido na TV de Treslove.
-
Claro - respondeu Treslove -, mas você não assistir com Sam?
-
Samuel está assistindo ao programa com a equipe, codinome amante.
Tyler
era a única pessoa que ainda chamava Sam de Samuel. Dava-lhe poder sobre o
marido, o poder de alguém que conhecera uma pessoa importante antes que ela se
tornasse uma pessoa importante. Às vezes, ela ia mais longe e o chamava de
Shmuelly para recordá-lo de suas origens, sempre que ele parecia correr o risco
de esquecê-las.
-
Oh - disse Treslove.
-
E o pior é que ela nem é a porra da diretora. Não passa de assistente de
produção.
-
Ah - disse Treslove, imaginando se Tyler estaria assistindo ao programa com
Sam, caso Sam, de forma mais convencional, estivesse trepando com a diretora.
Nunca se sabe exatamente onde se pisa quando se trata de finklers, homens ou
mulheres, e de questões que giram em torno de humilhação e prestígio. Os não
finklers pensam que todas as infidelidades são iguais, mas, por experiência,
Treslove sabia que os finklers são capazes de fazer concessões se o terceiro
por acaso for alguém importante. O príncipe Philip, Bill Clinton, até o papa.
Treslove esperava não estar estereotipando ninguém pensando assim.
-
Você vai trazer as crianças? - indagou Treslove.
-
As crianças? As crianças estão
estudando fora. Logo vão entrar na faculdade. Ao menos finja algum interesse,
Julian.
-
Não sou chegado a filhos - explicou ele. - Nem aos meus.
-
Bom, você não precisa se preocupar. Não vamos fazer filho nenhum. Meu corpo já
passou dessa fase.
-
Oh - disse Treslove.
Foi
a primeira pista de que e a mulher do seu amigo não veriam muita televisão
naquela noite.
-
Ah - disse ele para si mesmo, debaixo do chuveiro, como se fosse a vítima do que
quer que estivesse para acontecer, em lugar de um parceiro ativo na coisa toda.
Mas nunca houve a mais remota possibilidade de que pudesse ser capaz de
resistir a Tyler, por mais que ela o estivesse usando apenas para se vingar do
marido.
Embora
Tyler não fosse o tipo de mulher por quem normalmente se apaixonasse, ele se apaixonara
por ela mesmo assim na primeira vez que Sam a apresentou como esposa. Não via o
amigo havia algum tempo e não sabia que
ele estava namorando firme, muito menos que se casara. Mas esse um hábito de
Finkler: erguer a barra da própria vida um tiquinho, tão somente o bastante
para fazer Treslove se sentir intrigado e excluído, e depois baixá-la outra
vez.
A
recém-casada sra. Finkler não era de fato bonita, mas era como se fosse, morena
e angulosa, com feições nas quais um homem descuidado poderá se cortar e olhos
impiedosamente sarcásticos. Embora houvesse pouca carne a lhe cobrir os ossos,
de alguma forma ela conseguia sugerir ocasiões voluptuosas. Sempre que Treslove
a encontrava, Tyler estava vestida como se fosse a um banquete oficial, onde
comeria pouco, falaria com segurança, dançaria com graça com quantos pares
precisasse dançar e atrairia olhares admiradores de todos os presentes. Era o
tipo de mulher da qual um homem de sucesso precisa. Competente, sociável,
altivamente elegante - desde que esse homem não a esquecesse por causa do
sucesso. A palavra úmida vinha à
mente de Treslove quando ele pensava em Tyler Finkler. O que o surpreendia, já
que sua superfície era árida. Mas Treslove imaginava como ela seria por baixo
da superfície, quando penetrasse seu sombrio mistério feminino. Ela habitava
algum lugar onde ele jamais estaria e onde ele provavelmente não deveria sequer
pensar em estar. Era a eterna mulher finkler. Daí jamais ter existido para
Treslove a mais remota possibilidade de recusar a oferta quando a recebeu. Ele
precisava descobrir como seria penetrar o mistério feminino sombrio e úmido de
uma finkleresa.
Os
dois ligaram a televisão, mas não assistiram a um único segmento do programa de
Sam.
-
Que grande mentiroso - disse ela, despindo um vestido que poderia ser usado
para assistir à condecoração do marido como cavaleiro. - Cadê aquela filosofia
todo quando não sirvo o jantar dele na hora certa? Cadê aquela filosofia toda
quando deveria estar com o pau dentro das calças por aí?
Treslove
nada disse. Era estranho estar diante da cara do amigo na tela da TV ao mesmo
tempo que segurava a mulher do amigo nos braços. Não que Tyler estivesse de
fato em seus braços. Tyler gostava
que fizessem amor a distância, como se não estivesse de fato acontecendo. Boa
parte do tempo, ela nem olhou para Treslove, trabalhando em seu pênis com a mão
atrás das costas, como se abotoasse um sutiã complicado ou lutasse com um vidro
difícil de abrir, enquanto comentava o marido, matraqueando incessantemente.
Preferia a luz acesa e não via qualquer virtude sensual no silêncio. Apenas
quando a penetrou - rapidamente, porque ela lhe disse que não lhe agradavam
intercursos longos - Treslove conseguiu de fato encontrar a sombria e cálida umidade finkleresa que antecipara. E ela
superou toda e qualquer expectativa.
Deitado
de costas, sentiu as lágrimas brotarem em seus olhos. E disse a ela que a
amava.
-
Não seja ridículo - rebateu Tyler. - Você nem sequer me conhece. Era com Sam
que você estava transando.
Ele
se sentou na cama.
-
Definitivamente não.
-
Não me importo. Por mim, tudo bem. A gente pode até repetir. E, se você se
excita por trepar com seu amigo, trepar ou lhe passar a perna, não há por que
tergiversar, por mim tudo bem.
Treslove
se apoiou no cotovelo para fitá-la, mas novamente ela lhe dera as costas. Ele
estendeu a mão para lhe acariciar os cabelos.
-
Não faça isso - objetou Tyler.
-
O que você não entende é que esta é a minha primeira vez.
-
A primeira vez que você transa? - Na verdade, ela não parecia muito surpresa.
-
A primeira vez... - Soava insosso agora que ele traduzia em palavras. - A
primeira vez... você sabe...
-
A primeira vez que você sacaneia Samuel? Eu não me preocuparia com isso. Ele
não pensaria duas vezes em fazer o mesmo com você. Provavelmente, até já fez.
Ele encara o fato como droit de
philosophe. Por ser um pensador, acha que tem o direito de foder quem bem
quiser.
-
Eu não quis dizer isso. Eu quis dizer que você a minha primeira...
Dava
para perceber que sua hesitação começava a irritá-la. A cama congelou ao redor
dela.
-
Primeira o quê? Desembuche. Mulher casada? Mãe? Esposa de um apresentador de
TV? Mulher sem diploma?
-
Você não tem diploma?
-
Primeira o quê, Julian?
Ele
engoliu a palavra duas ou três vezes, mas precisava ouvi-la da própria boca.
Dizer era quase tão doce em sua perversão quanto fazer.
-
Judia - conseguiu finalmente falar. - Judiiiiia - repetiu, demorando-se para
terminar, deixando as sílabas esquentarem em seus lábios.
Ela
se virou como se pela primeira vez precisasse ver como ele era, os lhos
brilhando com zombaria.
-
Judia? Você acha mesmo que sou uma judia?
-
E não é?
-
Essa é a pergunta mais gentil que você poderia me fazer. Mas de onde você tirou
a ideia de que eu seja o produto genuíno?
Treslove
não conseguiu pensar em algo para dizer, havia tanta coisa.
-
Tudo - foi o que, afinal, achou como resposta. Lembrou-se de ter ido a um bar
mitzvah de algum dos filhos de Finkler, mas, como não tinha certeza de qual
deles, permaneceu calado a esse respeito.
-
Bom, o seu tudo é nada - disse ela.
Ele
estava amargamente desconcertado. Tyler não nascera judia? Então o que era aquela sombria umidade na qual
penetrara?
Ela
fez beicinho para ele (e isso por
acaso não era tipicamente judeu?).
-
Você acha, honestamente, que Samuel se casaria com uma judia?
-
Bom, não pensei que não casasse.
-
Então, você conhece muito pouco o meu marido. É atrás das gentias que ele
corre. Sempre correu. Você devia saber disso. Ele transou com judias. Nasceu
judeu. Elas não podem rejeitá-lo. Então, por que perder tempo com elas? Ele
teria se casado comigo na igreja se eu pedisse. Ficou ligeiramente furioso
comigo porque não pedi.
-
Então, por que você não pediu?
Ela
riu. Um ruído rouco de uma garganta seca.
-
Porque sou uma outra versão dele, só isso. Cada um de nós queria conquistar o
universo do outro. Ele queria que as goyim
o amassem. Eu queria ser amada pelos judeus. E gostava da ideia de ter filhos
judeus. Achava que eles se sairiam melhor na escola. E, cara, não que se saíram
mesmo?
(Ela
se orgulhava deles - isso também não
era tipicamente judeu?).
Treslove
estava perplexo.
-
Pode-se ter filhos judeus sem ser judia?
-
Não aos olhos dos ortodoxos. Não é fácil, de todo jeito. Mas nós fizemos um
casamento liberal. Até precisei me converter para isso. Durante dois anos eu
investi, aprendi como administrar um lar judeu, como ser uma mãe judia. Me
pergunte qualquer coisa que queira saber sobre judaísmo que eu respondo. Como
preparar uma galinha kosher, como
acender as velas do shabbes, o que
fazer em um mikva. Você quer que lhe
diga como uma boa judia sabe que sua menstruação acabou? Conheço mais a cultura
judaica do que todas as judias echt
de Hampstead juntas.
Treslove
se abstraiu, mentalmente juntando todas as judias não judias de Hampstead, mas o que perguntou foi:
-
O que é um mikva?
-
Um banho ritual. A gente vai lá para se purificar para o nosso marido judeu,
que morre se encostar numa gota de sangue da gente.
-
Sam quis que você fizesse isso?
-
Samuel não, eu quis. Samuel não estava nem aí. Achava uma barbárie essa
preocupação com o sangue menstrual, do qual, a bem da verdade, ele gosta um
bocado, o tarado. Fui ao mikva por
mim mesma. Achei calmante. Sou a parte judia do casal, mesmo tendo nascido
católica. Sou a princesa judia sobre a qual se lê nos contos de fada, só que
não sou judia. A ironia é que...
-
Ele trepa com as shiksas?
-
Óbvio demais. Ainda sou uma shiksa para
ele. Se ele quiser o proibido, pode tê-lo em casa. A ironia é que ele trepa com
as judias. Esse cocô da Ronit Kravitz, a assistente de produção. Eu não me
espantaria se ele a convertesse.
-
Acho que você tinha dito que ela já é judia.
-
Convertê-la ao cristianismo, seu pateta.
Treslove
calou-se. Havia tanta coisa que ele não entendia. E tanta coisa para deixá-lo
nervoso. Sentiu que haviam lhe dado um prêmio que há muito almejava, mas apenas
para tirá-lo dele antes que sequer encontrasse um lugar para exibi-lo. Tyler
Finkler não era uma finkler! Consequentemente, o profundo, úmido e sombrio
mistério de uma mulher finkler continuava, estritamente falando - e esse era um
conceito estrito, afinal -, desconhecido para ele.
Ela
começou a se vestir.
-
Espero não ter decepcionado você - disse Tyler.
-
Me decepcionado? Imagine. Você vem ver o segundo programa aqui?
-
Reflita a respeito.
-
O que há para refletir?
-
Ah, você sabe... - respondeu ela.
Tyler
não o beijou ao sair.
Mas
voltou-se da porta, para fitá-lo.
-
Um sábio conselho: não deixem que peguem você falando "judiiiiia" -
avisou, imitando a forma lânguida como ele pronunciara a palavra. - Elas não
gostam.
(A
Questão Finkler, tradução de Regina
Lyra)
(Ilustração: Angel Zárraga - la femme et le pantin)
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