Desde que a bula papal de Bonifácio VIII proibiu a dissecação de cadáveres, obter corpos era um trabalho perigoso. Mas havia em Pádua, naqueles tempos, uma espécie de mercado clandestino de mortos, cujo membro mais solvente era Juliano Batista, que pôs, de certa maneira, as coisas em ordem. Depois da passagem de Marco Antonio della Torre pela Cátedra de Anatomia da Universidade, seus discípulos não vacilavam em abrir sepulturas, saquear os necrotérios dos hospitais e até despendurar defuntos das forcas exemplares. O próprio Marco Antonio teve que refrear a turba de pequenos anatomistas para que não assassinassem passantes durante a noite. Tanto era o afã, que precisavam cuidar-se uns dos outros; tanta era a necrofilia, que o mais alto elogio a que uma mulher podia aspirar era:
- Que belo cadáver tendes - diziam antes de degolá-la.
O seu predecessor mais remoto, Mundini dei Luzzi, que duzentos e cinquenta anos antes fizera a primeira dissecação anatômica pública, de dois cadáveres, na Universidade de Bolonha, pelo menos tivera o infinito decoro de não abrir a cabeça, "morada da alma e da razão".
Juliano Batista tinha, por assim dizer, o patrimônio do mercado de cadáveres; comprava-os dos parentes mais ou menos indigentes, dos algozes e dos coveiros. Após deixá-los em condições apresentáveis, revendia para os universitários, catedráticos e necrófilos mais ou menos reputados.
Sabia, no entanto, que para Mateo Colombo não era preciso engalanar a mercadoria - engano, aliás, impossível com um anatomista -, de modo que poupava o trabalho de corar as faces, devolver o brilho aos olhos com terebintina e às unhas, com verniz de ultramar.
Se o anatomista precisasse, por exemplo, examinar um fígado, Juliano Batista extirpava o órgão, recheava o espaço vazio com uma estopa ou trapos, separava a mercadoria, fechava o cadáver costurando-o com um fio de seda e, finalmente, vendia-o para outro cliente. Se um corpo estivesse irrecuperável, Juliano Batista encontrava para tudo um destino; coisa alguma era jogada fora: os cabelos para a corporação dos barbeiros, e os dentes para o grêmio dos ourives.
A dissecação de cadáveres era tão ilegal quanto corriqueira. A bula de Bonifácio VIII já não tinha, na prática, qualquer vigência. Contudo, o reitor a mantinha em atividade exclusivamente para Mateo Colombo. O anatomista bem sabia que Alessandro Legnano fazia vista grossa para como todos, inclusive os estudantes, menos para com ele. De modo que devia agir com o maior dos cuidados.
Nos últimos tempos Mateo Colombo havia comprado cerca de dez cadáveres, todos pertencentes a mulheres. Confeccionava listas escrupulosas dos corpos dissecados, nas quais anotava: nome, idade, motivo da morte, descrição e até desenhos, não só dos órgãos examinados, mas também da expressão de cada um dos cadáveres.
Mas suas práticas eram mais inclinadas à carne viva do que à morta. Sobretudo a certa carne em particular, que, por outro lado, não era em absoluto frequente no interior da Universidade, pois era carne proibida. Interdição esta que o reitor se empenhava em fazer cumprir com mais escrúpulos do que sucesso. Pelos estatutos da Universidade, de fato, era taxativamente proibido o ingresso de mulheres. Contudo, por razões bem menos relacionadas com os assuntos da ciência do que com os ímpetos da carne, eram mais ou menos frequentes as visitas furtivas de camponesas, vindas do fics lindante à abadia, que vez por outra ofereciam uma noite de júbilo aos doutores e alunos.
Uma das formas de entrar na Universidade - além de escalar os muros - era confundir-se entre os mortos que ingressavam na morgue uma vez por semana, no interior do carro público. Assim, ocultas sob um manto, as mulheres permaneciam quietas até ficarem sozinhas no subsolo da morgue, onde eram recolhidas pelos seus amantes.
Certa vez, impaciente talvez pela longa e forçada continência, um prestigioso doutor despiu uma das camponesas ali mesmo, na morgue, em companhia de todos os mortos, e bem no momento glorioso de uma sublime fellatio o pároco da Universidade, que momentos antes vira entrar o "cadáver" que agora gemia, gritava e se remexia, ingressou no lúgubre subsolo. O ilustre doutor levou um momento para notar a presença do deífico visitante, que, absorto, contemplava tanto as esmirradas pernas do catedrático quanto a sua não tão esmirrada vara palpitante esguichando sobre os bem proporcionados restos da "defunta". Quando, depois do último estertor, viu o pároco de pé no vão da porta, só atinou a gritar, com um trejeito desorbitado:
- Miracolo! Miracolo! - de imediato começou a perorar sobre a sua recente confirmação das teorias aristotélicas acerca do hálito que o sêmen transporta em seu caudal, o qual, segundo o metafísico, produz a vida. E por que não? Se o sêmen é capaz de insuflar ânimo vital na matéria e engendrar, como não haveria de ser possível, pela mesma razão, que ressuscitasse os mortos, argumentava ele enquanto ajeitava a vara - ainda um pouco dura - por baixo das roupas. E após concluir esse enlouquecido solilóquio perdeu-se do outro lado da porta, correndo escada acima aos gritos de "Miracolo! Miracolo!".
O fato é que Mateo Colombo tinha suas boas razões para introduzir mulheres na Universidade. E, decerto, as mulheres que o visitavam secretamente também tinham as delas.
As mãos de Mateo Colombo sabiam tocar numa mulher, como as mãos de um músico sabem tocar seu instrumento. Os imprecisos limites entre a ciência e a arte faziam de suas mãos o instrumento mais sublime, mais elevado e mais difícil: a efêmera arte de dar prazer; disciplina que, como a da conversação, não deixa traços nem testemunhas.
(O Anatomista; tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman)
(Ilustração: Rembrandt - lição de anatomia do dr. Tulp)
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