ATO
I
CENA
I
Mariana
e Lúcia
Vista de sala particular em casa de
Mariana. De um lado uma cômoda, sobre a qual um oratório fechado [...] Do lado
oposto uma mesa, e um candeeiro antigo. Mariana sentada, com um papel na mão,
como que estuda sua parte teatral. Lúcia em pé, espevitando a luz.
Mariana
Deixa-me, Lúcia; deixa-me tranquila;
Vai-te, deixa-me só... Repousar
quero
Esta cabeça de fadigas tantas.
De mim terias penas, se soubesses
Que turbilhão de foto me devora.
Sente tu mesma, toca. (Levando a mão de Lúcia à cabeça).
Lúcia
Oh, como queima!
Parece um forno!... Que terrível
febre!
Senhora, quer que eu faça alguma
cousa?
Quer que eu chame o doutor?
Mariana
Não, nada quero.
Somente que me deixes, eu to peço.
Lúcia
Como a posso deixar em tal estado?
Fora preciso um coração de pedra.
Não... agora me lembro... vou
fazer-lhe
Um remédio caseiro, espere, eu
volto. (Sai)
CENA
II
Mariana
(Só) Pobre Lúcia, que
amor tu me consagras...
És quase mãe, fiel, sincera amiga.
Quantas obrigações eu te não devo...
Oh! que aguda pontada!...
CENA
III
Lúcia
(Voltando
com um copo na mão).
Aqui lhe trago.
Um remédio bem simples, mas que
cura;
É um pouquinho d'água com vinagre.
Molha-se o lenço... assim... É cousa
santa;
Não tenha medo; aplique-o sobre as
fontes.
Ensinou-mo... quem mesmo?... nem me
lembro.
Mariana
Oh, que dor! fez-me mal a frialdade.
Lúcia
É sempre assim; daqui a pouco passa.
Mas tenha paciência.
Mariana
Estou mais calma;
O calor se dissipa, e a dor abranda.
(Pega no papel para ler.)
Lúcia
Deixe, senhora, esse papel maldito.
Que praga! Forte teima de leitura!
Continuamente a ler!... Nunca
descansa!
Eis aí por que sofre... não se
queixe.
O mesmo ferro, quando muito o
malham,
E a pedra quando a batem, ferem
fogo,
Quanto mais a cabeça que é sensível!
Isso é mania!
Mariana
(Levantando-se.) Vê como é difícil
O trabalho da mente, o quanto custa
Ter um nome no mundo! Enquanto
dormes
No teu leito tranquila, eu velo, eu
luto.
A noite para ti traz o repouso,
E se o dia ao trabalho te convida,
Com a paz no coração deixas o leito.
Teu diurno trabalho te não cansa;
Com a paz no coração ao leito
voltas.
Mas eu, quando repouso? Ante um
espelho,
Estudando paixões, compondo o corpo,
Mil expressões numa hora procurando,
Meus dias passo; e tu douda me
julgas
Quando me vês gritar, lutar,
ferir-me,
E às vezes investir-te, delirante!
Durante a noite minha fronte escaldo
Junto desta candeia, que me aclara,
Sua negra fumaça respirando,
Ou medindo o salão de um lado a outro
Sempre com o meu papel diante os
olhos,
Como um espectro do sepulcro
erguido,
Em desalinho, pálida: e cem vezes
Primeiro a luz se apaga, que eu me
deite.
Se busco o leito, então, oh, que
tormento!
Da cabeça inflamada o sono foge;
Nova cena a meus olhos se apresenta.
No teatro me cuido; escuto a
orquestra,
Vejo a plateia, e os camarotes cheios,
Ouço os aplausos, bravos que me
animam.
E com esta ilusão a vida cobro.
Mas eis que durmo, sonho, e de
repente
Ao som da pateada aflita acordo.
É manhã; e outra vez começa a lida.
Oh, vida! oh, ilusão! oh, meu
martírio!
Lúcia
Oh! certamente que me causa pena.
Tanto eu não poderia: antes quisera
Uma esmola pedir de porta em porta,
Do que seguir tal gênero de vida.
E então por que ralar sua
existência?!
A rir, ou a chorar, como uma douda!
Mariana
Que dizes tu? Coitada! o teu
discurso
Bem mostra que da glória o amor não
sentes.
Lúcia
Não sinto, e queira o céu que eu
nunca o sinta:
Que se da glória o amor é que lhe
causa
Tantas inquietações, tantas vigílias,
Desprezo tal amor. Eu de contínuo
Nas minhas orações me recomendo,
Quando me deito, ao grande Santo
Antônio,
E ao meu anjo da guarda que me
ajudem,
E de vis malefícios me preservem.
Só quero amar a Deus... Diga,
senhora,
Porventura Camões amava a glória?
Mariana
Oh, se a amava!... E que luso depois
dele
Tanto amou-a?
Lúcia
Pois bem, sempre foi pobre;
Na miséria viveu, pedindo esmolas,
E morreu no hospital. Senhor Antônio
Que lhe diga o que ganha com as
comédias
Que ele compõe, para agradar o povo.
Mariana
Ganha a reputação de Plauto luso,
De um ilustre escritor, de um grande
homem.
Lúcia
(Com
ar de compaixão.)
Melhor fora dizer - de um pobre homem.
Mariana
E o que tem a pobreza com o talento?
Lúcia
Muito; que em Portugal andam
casados.
E se o senhor Antônio continua,
Já
lhe prevejo um fim bem miserando.
Eu só ouço dizer que ele é jocoso,
Que faz as pedras rir: eis por que o
amam.
E se não fosse a banca, e os
demandistas
Que lhe dão de comer, creio decerto
Que ele morto estaria há muito
tempo.
Ou pelas portas pediria esmola
Como o pobre Camões... Camões!...
coitado!
Quando da sua sorte me recordo,
Em lágrimas meus olhos se convertem.
Pobre homem!... Tão moço!...
Cavalheiro,
Que pudera ter sido alguma cousa,
Dar em poeta!... Andar fazendo
versos!
Errando pelo mundo; naufragando;
Vir a Lisboa, e aqui pedir esmolas;
Comer o pão com lágrimas molhado; (Com tom de piedade e de compaixão.)
Morrer num hospital! Eu creio vê-lo
(Limpando as lágrimas.)
Envolto num lençol, no adro da
igreja,
Sobre a pedra estendido, ali,
exposto,
Movendo a piedade de quem passa,
Que lhe atira um real pra sua cova!...
Oh, meu Deus, que castigo!... Eu
tenho um filho,
Um filho que também erra no mundo;
Faze que ele da glória o amor não
sinta;
Que não tenha talento, e sobretudo
Que não seja poeta, por que possa
Ser feliz sobre a terra.
Mariana
O teu discurso.
Malgrado meu, o coração me toca.
Confesso que não falas sem motivo.
Mil vezes refletindo sobre a sorte.
Vendo a miséria perseguir o gênio,
A ingratidão dos homens, a
injustiça,
A infâmia que sobre ele a inveja
lança,
E o desprezo da vil mediocridade,
Que no lodo se arrasta como o verme,
E outro Deus não conhece mais que o
ouro,
Discorro como tu; e só desejo...
Nem sei o que... morrer... deixar o
mundo.
Confesso que abraçara o teu
conselho,
Se não fosse ser eu já conhecida,
E não poder arrepiar caminho.
Sobre mim julga o povo ter direito.
Amanhã se eu disser: adeus, teatro!
Todos se julgarão autorizados
A me vir indagar qual o motivo.
Que não diria o povo? e que
calúnias,
Que infâmias sobre mim não lançaria?
Quase que sou escrava. No que dizes,
Acho muita razão.
Lúcia
Mas não a segue.
Mariana
Nem posso.
Lúcia
Então por quê?
Mariana
É impossível!
Lúcia
Impossível!
Mariana
Sim, Lúcia.
Lúcia
Quem a impede
De seguir meu conselho?
Mariana
A minha sorte.
Cada qual tem a sua; a minha é esta.
Lúcia
Mas a sorte se muda; mude a sua.
Mariana
E tu por que não mudas tua sorte?
Lúcia
A minha é outro caso; e só Deus sabe
Se lhe peço que a mude; mas debalde.
Mariana
Ah! tu cuidas que é Deus quem te
embaraça
De mudar tua sorte?
Lúcia
Oh, certamente!
Não tenho vocação de andar servindo,
Nem faço gosto nisso.
Mariana
Pobre Lúcia,
Dás armas contra ti; sem gosto
serves,
E cuidas não poder mudar de vida,
A culpa pondo em Deus, e tu me
acusas?
Queres sem mais razão que eu mude a
minha,
Quando por vocação me dou à cena?
Tenho razão demais para segui-la.
Lúcia
Lá, senhora Mariana, em argumentos
Não me quero meter com a senhora;
Não tiro conclusões, nem tenho
estudos;
Mas enfim a razão está dizendo,
E dizer tenho ouvido a muita gente,
Que é melhor e mais nobre ser
criada,
Que ser comediante.
Mariana
Lúcia, é muito!
Nunca pensei que a tanto te
atrevesses.
Se não fora o ter dó do teu estado,
Hoje mesmo...
Lúcia
Senhora, não se ofenda;
Disse isto por dizer; sou uma tonta;
Desculpe esta ousadia.
Mariana
Eu te perdoo;
Tu pensas como o vulgo.
Lúcia
Eu me retiro.
Mariana
Vai-te, vai-te deitar.
Lúcia
Se necessita
De mim alguma cousa...
Mariana
Nada quero.
Lúcia
Boa noite, senhora.
Mariana
Deus te ajude.
CENA
IV
Mariana
(Só).
Entretanto ela pensa como o mundo,
Que nos vê com desprezo, e que nos
trata
Como uma classe vil e desgraçada.
Sem
honra e sem pudor; que ousa mostrar-se
Em público debaixo de mil formas,
Só por amor do ganho; hoje trajada
Com as vestes reais de soberana,
Amanhã com os andrajos da pobreza...
Para rir, e passar alegre uma hora,
Não para corrigir seus ruins
costumes,
O teatro procuram: nós lhes damos
Envolto em mel um salutar remédio;
Com seus próprios defeitos e seus
erros
Excitamos o riso; e outras vezes
Com o quadro da desgraça e da
virtude
N'alma nobres paixões lhes
acendemos.
Mostramos a inocência perseguida,
Um pai sem coração, um filho
ingrato,
Uma esposa infiel, um rei tirano,
Um magistrado que a justiça vende.
Interpretando a história, e dando
vida
Às sublimes lições da poesia,
Lhes mostramos os rápidos contrastes
Do nada e da grandeza: eles nos
ouvem,
Eles nos veem com lágrimas nos
olhos;
E quando nós lhes embebemos n'alma
A dor, a compaixão, o amor, e a ira
Como nós da paixão só possuídos,
Esquecidos mil vezes, nos
transportes,
Que dos quadros que veem, eles são
normas,
Que de crimes iguais são réus às
vezes,
Cheios de entusiasmo nos aplaudem,
Choram mesmo conosco, e se
envergonham
Ao aspecto do quadro, que desperta
Como um remorso vivo a consciência
De seus crimes; porém a noite passa,
E amanhã o desprezo é nosso
prêmio!...
Nós somos como a flor, que, enquanto
fresca
Seu cheiro exala, a guardam
cuidadosos;
Mas logo que exalou o aroma todo,
Logo que murcha, para o canto a
atiram.
Assim pratica o povo, ingrato sempre!
Eu sei que isto é assim; porém que
importa!
Não posso resistir ao meu
instinto...
Um imenso teatro é este mundo;
Um papel aqui todos representam;
Eu represento dois, de dia e noite.
Eis meu único crime. [...]
(O Teatro de Inspiração Romântica:
Antônio José, ou O poeta e a Inquisição; organização de Flávio Aguiar)
(Ilustração: Erich von Gotha)