Levei minha afilhada para dar um rolê pelo meu passado.
Tomamos café. Pão francês quente estalando com dois jornais. Deixaram na madrugada na porta de serviço. Ensinei a ler jornal, virar uma página, sem esfregar os dedos na foto, para não deixar sujos de tinta. Descemos. Estranhou a porta do edifício escancarada. Nada de guarita, grades, cercas, câmeras. Estranhou o porteiro roncando, apesar do radinho de pilha ligado: "Acorda gorda!". Saímos sem incomodá-lo.
Nas casas vizinhas, pão e leite encaixados nas janelas sem grades. Vamos de táxi. Um Fusca vermelho à frente. Fiz o sinal. Perto, reparei que estava ocupado. Lá vinha outro Fusca. Verde. Parou, abriu a porta da frente, deu bom-dia, pulamos para o banco traseiro, puxou a corda de nylon amarrada na porta, para fechá-la. Vamos para o metrô. Nem precisei indicar a estação. Só havia uma linha.
A menina riu. É, os táxis não seguiam um padrão. Cada um era de uma cor. Fuscas não tinham banco de passageiro na frente. Eram raros carros quatro portas no Brasil. Só para os ricos.
No entanto, apontei, olha lá, os ônibus são padronizados, todos da mesma companhia, CMTC, todos com listas, azul e branco, como pijama de presidiário, ônibus sonolentos, que soltam fumaça escura, fedorenta. O taxista acendeu um cigarro e me ofereceu. Fumamos ouvindo pelo rádio Zé Bettio, com sotaque caipira: "Acorda, gorda!". Em BG, barulhos de passarinho, de gado. "Sete e treze em São Paulo. Acorrrdaaa!" Minha sobrinha ria. Mal sabia que era o programa primeiro lugar em audiência. Que ele era o maior salário da rádio brasileira. Que milhões o escutavam às manhãs: "Gorda, acorda!"
Fomos de metrô até a Estação São Bento. "Não é perigoso, tio?" Não, aqui é tranquilo. Perigoso é só na Praça da Sé, onde tem uns gatunos. Pelo resto da cidade, não tem problema.
Um grupo se acumulava na lateral da banca de jornal. Lia as capas expostas, pregadas como roupas num varal. Nos juntamos a eles. De repente, alguns jornais eram trocados. Por suas versões matinais. Porque tinham as edições noturnas, matinais e vespertinas. Tinham os tabloides eventualmente recolhidos pela censura. Uma banca de jornal era movimentada. Sempre cercada. Era o ponto de encontro de cada quarteirão. "Como o Twitter", ela disse. Como.
Descemos a Rua Direita, atravessamos o Viaduto do Chá e fomos tomar um café na Leiteria Americana. Sentamos numa mesa com toalha branca e cheirosa e guardanapos brancos e cheirosos. Um garçom com calça preta e avental branco nos atendeu. "Uma vez, minha mãe quando era estudante viu o Oswald de Andrade naquela mesa, tomando café. Ele frequentava este lugar." A menina perguntou se pediu autógrafo, falou com ele. "Ela diz que não. Que, naquela época, não se interrompia os devaneios de um escritor, de uma pessoa famosa."
"Nem fotos?"
Não, garota, ninguém carregava uma câmera fotográfica portátil no bolso acoplada a um mini telefone, com toda coleção de discos, álbuns de fotos, agenda, banco de dados, bússola, TV, despertador, correio, até aplicativos para transações bancárias, compras de passagem, que cabe na palma da mão. A maioria das pessoas nem telefone tinha.
Demos uma volta pelas livrarias da Barão de Itapetininga. Eram enormes, entulhadas. Pelas lojas de disco da 24 de Maio. Ela se surpreendeu, pois loja de sapato se chamava Sapataria, loja de roupa, Casa das Camisas, Casa dos Ternos, Casa das Cuecas, que lanchonetes se chamavam Lanchonete, Sucos, Sanduíches, que quem vendia óculos era Ótica, e relógios, Relojoaria. Que os únicos ambulantes tinham placas com dizeres "Compro Ouro". Que as ruas eram limpas, as pessoas, elegantes e magras.
Fomos até a Praça da República e, num banco, sob o sol que confrontava a névoa, tomamos um sorvete. "Estudei naquela escola no primário", apontei para o prédio do Caetano de Campos. "Minha avó morava naquele prédio", apontei para o luxuoso edifício da 7 de Abril. "Eu fugia da aula, pedia para alguém me ajudar a atravessar a avenida, a pessoa me dava a mão, atravessávamos, e me deixava naquela portaria. De uniforme. Bermuda azul, camisa de abotoar branquinha, meia até o joelho e sapato engraxado. Eu mesmo engraxava." "Você tem saudades?" "Claro que não. Você ia demorar para nascer."
Pegamos o trólebus até a Estação da Luz. Subimos a Rua Mauá. Na Praça General Osório, barricadas impediam a passagem de pedestres. Precisávamos atravessar a rua e caminhar pelo outro lado da calçada. Antes que ela perguntasse, expliquei: "Este prédio é o Dops. Ninguém pode passar em frente."
Na Estação Júlio Prestes, pegamos o trem húngaro até Campinas. Rápido, confortável, com ar condicionado. Em 50 minutos, passeávamos pelo centro de Campinas. Fizemos um piquenique no coreto da Praça Carlos Gomes.
"As pessoas são emburradas", comentou.
"As pessoas têm medo."
"De gatunos?"
"Não. Não deles."
"Teu passado parece triste."
"Um pouco. Todos devem ser. Quer voltar pro presente?"
Ela fez afirmativo. Não deu tempo para mostrar as pensões em que morei. Pensei que o passado era mais feliz. Mas passado não é melhor nem pior. Existe porque ainda estamos no presente. Que existe graças ao passado. Mais que parente, o presente é seu afilhado. E as tristezas, relegadas. Voltamos num Cometa.
(OESP, 13.7.2013)
(Ilustração: São Paulo 1970 - Ponte de pedestre sob Viaduto do Chá, 1970 - foto do blog São Paulo de Minhas Memórias (http://saopaulominhasmemorias.blogspot.com.br/)