A luta efetivamente teve lugar no mesmo dia, por ocasião do chá da tarde. Páviel Pietróvitch entrou na sala de visitas pronto para a batalha, mal humorado e resoluto. Esperava apenas um pretexto para atacar o inimigo.
O pretexto demorava muito. Bazárov falava muito pouco na presença dos "velhos Kirsánov" (assim chamava a ambos os irmãos). Naquela tarde sentia-se indisposto. Tomava seu chá aos copos, calado. Páviel Pietróvitch ardia todo de impaciência. Seus desejos afinal se realizaram.
A palestra girava em torno de um dos fazendeiros vizinhos. "Um aristocratoide crápula" - observou impassível Bazárov, que costumava encontrar a referida pessoa em São Petersburgo.
- Permita que eu lhe pergunte uma coisa - começou Páviel Pietróvitch, e seus lábios tremiam. - Segundo sua opinião, as palavras "crápula" e "aristocrata" significam a mesma coisa?
- Eu disse "aristocratoide" - respondeu Bazárov, tomando devagar mais um gole de chá.
- Assim o compreendo. Suponho que o senhor tem a mesma opinião dos aristocratas e dos aristocratoides. Devo declarar-lhe que não compartilho esse modo de pensar. Ouso dizer ainda que sou conhecido como homem liberal e progressista. Por isso mesmo respeito os verdadeiros aristocratas. Lembre-se, meu caro senhor (ao ouvir estas palavras Bazárov fixou seu olhar em Páviel Pietróvitch), lembre-se, meu caro senhor - repetiu irritado -, dos aristocratas ingleses. Eles não desistem do mínimo dos seus direitos e respeitam os alheios. Exigem que se cumpram suas obrigações. A aristocracia libertou a Inglaterra e defende sua liberdade.
- Já ouvimos essa cantiga muitas vezes - obtemperou Bazárov. - Que quer o senhor provar com isso?
- Com isso, meu caro senhor (Páviel Pietróvitch, quando se zangava, proferia a palavra "isso" contra todas as regras da gramática. Era uma reminiscência dos tempos do Czar Alexandre. Os nobre de então pronunciavam-na às vezes assim, variando um pouco a pronúncia, porque se consideravam russos legítimos, da nobreza tradicional e superiores às regras gramaticais escolares), com isso, caríssimo senhor, quero demonstrar que, sem a noção da sua própria dignidade, sem o respeito de si mesmo - num aristocrata estes sentimentos estão particularmente evoluído -, não existe nenhuma base sólida do bien public ou do edifício social. O mais importante, caro senhor, é a personalidade. A personalidade humana dever ser resistente como rochedo, porque sobre ela tudo se constrói. Sei perfeitamente, por exemplo, que o senhor julga ridículos ou contraproducentes os meus hábitos, meu vestuário e minha decência, afinal. Tudo decorre dos sentimentos de respeito próprio, do sentimento do dever, sim, do dever. Vivo no campo, no sertão, mas não me abastardo. Respeito em mim um homem.
- Perdoe-me, Páviel Pietróvitch - disse Bazárov. - O senhor respeita a sua personalidade e está aqui sem fazer coisa alguma. Que utilidade advém para o bien public? Seria melhor que não se respeitasse e fizesse alguma coisa de proveitoso.
Páviel Pietróvitch empalideceu.
- Trata-se de um outro assunto. Não lhe devo dar satisfação neste momento sobre o porquê da minha inatividade, como o senhor acaba de defini-la. Quero dizer apenas que a aristocracia é um principio. Sem princípios, na nossa época, só podem viver homens amorais ou nulos. Já o disse a Arcádio no dia seguinte à sua chegada e repito-lhe agora. Não é assim, Nicolau?
Nicolau Pietróvitch meneou afirmativamente a cabeça.
- O aristocratismo, o liberalismo, o progresso, os princípios! - disse Bazárov. - quantas palavras estranhas e inúteis! O russo não precisa delas.
- De que precisa o russo? Se dermos crédito às suas palavras, estamos deslocados da humanidade e fora das suas leis. Perdoe-me, mas a lógica da História exige...
- De que nos serve essa lógica? Passamos muito bem sem ela.
- Como?
- Facilmente. Acho que o senhor não precisa de lógica para pôr um pedaço de pão na boca, quanto tem fome. De que nos servem essas dilações?
Páviel Pietróvitch deu de ombros.
- Não o compreendo. O senhor ofende o povo russo. Não sei como é possível negar os princípios, as normas. Em que se baseia o senhor para se expressar assim?
_ Já lhe disse, meu tio, que nós não reconhecemos autoridades - interveio Arcádio.
- Nós agimos baseado na força do reconhecemos como útil - disse Bazárov.
- Na época atual o mais útil é negar. Por isso negamos.
- Tudo?
- Tudo.
- Como? Não só a arte, a poesia... mas... é pavoroso dizê-lo...
- Tudo - com estupenda calma, repetiu Bazárov.
Páviel Pietróvitch examinou-o fixamente. Nunca esperara semelhante conclusão. Por sua vez, Arcádio até corou de prazer.
- Vamos devagar - Nicolau Pietróvitch. - Vocês negam tudo, ou, por outra, destroem tudo... É necessário também construir.
- Não nos compete. Primeiramente é preciso desimpedir o lugar.
- A situação atual do povo assim o exige - acrescentou com importância Arcádio. - Devemos atender a essas exigências. Não temos o direito de satisfazer apenas o nosso egoísmo pessoal.
Estas últimas palavras visivelmente não agradaram a Bazárov. Encerravam um quê de filosofia, isto, de romantismo, porque Bazárov considerava a própria filosofia como uma simples digressão romântica. Não julgou, entretanto, necessário contradizer seu jovem discípulo.
- Não e não! - exclamou com repentina energia Páviel Pietróvitch. - Não quero crer que os senhores conheçam a fundo o povo russo e sejam representantes das suas necessidade e tendências! Não. O nosso povo é diverso do que os senhores imaginam. Guarda e respeita escrupulosamente suas tradições. É patriarcal e não pode viver sem fé...
- Não quero discutir esse ponto - interrompeu Bazárov. - Estou até pronto a afirmar que nisso o senhor tem toda a razão...
- Se tenho razão...
- Assim mesmo nada prova.
- Efetivamente nada prova - repetiu Arcádio com a convicção de um experimentado jogador de xadrez que prevê um lance arriscado do seu adversário e não se atrapalha.
- Como nada prova? - exclamou admirado Páviel Pietróvitch. - Suponho que pretendem lutar contra o seu próprio povo?
- Se for preciso... - redarguiu Bazárov. - O povo, quando ouve a trovoada, julga que o profeta Elias está passeando pelo céu no seu carro de foto. Devo, neste caso, concordar com o povo? Além disso, estamos falando do povo russo, e, porventura, não sou russo?
- Não. Deixa de ser russo depois do que acabou de dizer! Não posso reconhecê-lo como meu compatriota.
- Meu avô cultivava a terra - disse com orgulho Bazárov. - Pergunte a qualquer de seus mujiques: em quem, de nós dois, ele reconhece seu compatriota? Ele tem uma extraordinária capacidade de discernimento. O senhor nem sabe falar com ele.
- O senhor fala com o mujique e despreza-o ao mesmo tempo.
- E se merece o desprezo? Acusa o meu modo de ver e julgar o assunto. Quem lhe disse que este ponto de vista não casual em mim e que não é suscitado pelo próprio espírito do povo, em nome de que está pontificando?
- Naturalmente! Os niilistas são muito necessários!
- Não nos cabe sabê-lo. O senhor também se julga um homem útil.
- Meus senhores, evitemos por favor questões pessoais! - exclamou, erguendo-se Nicolau Pietróvitch.
Páviel Pietróvitch sorriu e, pondo a mão no ombro do seu irmão, fê-lo sentar-se novamente.
- Não se impressione - disse. - Nãome excederei em consequência exatamente daquele sentimento de dignidade tão criticado por este senhor... Senhor doutor: permita-me perguntar-lhe - continua, dirigindo-se de novo a Bazárov - se por acaso supõe que a sua doutrina é nova? Pura imaginação. O materialismo que prega já é velho e sempre pecou por falta de base...
- Mais uma palavra estranha! - interrompeu Bazárov, que começava a exasperar-se. Sua face tornara-se rude e cor de cobre. - Em primeiro lugar, não pregamos coisa alguma. Não é o nosso hábito...
- Que fazem então?
- Vou dizer-lhe o que fazemos. Antes, ainda há pouco, dizíamos que os nossos funcionários públicos recebiam gorjetas, não tínhamos nem estradas, nem comércio, nem um júri decente...
- Compreendo. Os senhores são caluniadores, e assim posso expressar-me. Com algumas das suas acusações concordo, mas...
- E, em seguida, percebemos que não vale a pena tocar somente nas nossas chagas. Seria uma vulgaridade doutrinismo. Vimos que os nossos intelectuais ou os homens da vanguarda, acusadores ou caluniadores, não servem para coisa alguma, que nos ocupamos de parvoíces, discutimos sobre uma certa arte, a criação inconsciente, o parlamentarismo, a justiça e tanta coisa inútil, quando o problema consiste no pão de cada dia, quando uma superstição brutal nos sufoca, quando todas as nossas sociedades comerciais ou industriais por ações rebentam, porque faltam homens honestos, quando a própria liberdade, que tanto preocupa o governo, dificilmente nos será proveitosa, porque o nosso mujique é capaz de roubar a si mesmo, só para se embriagar na taberna.
- Bem - interrompeu Páviel Pietróvitch -, concordo provisoriamente. Convenceu-se de tudo isso e resolveu não se ocupar seriamente de coisa alguma.
- Resolvemos realmente não nos preocupar com coisa alguma - repetiu em tom lúgubre Bazárov. Invadia-o uma raiva de si mesmo pelo falto de ter-se expandido tanto com aquele aristocrata.
- E somente ofender a tudo e a todos? - continuou o aristocrata.
- Ofender também.
- É o niilismo?
- É o niilismo - repetiu Bazárov com ar de desafio.
Páviel Pietróvitch fechou de leve seus olhos.
- Agora compreendo! - Disse com voz esquisitamente calma. - O niilismo deve auxiliar-nos em todas as desgraças. Os senhores são nossos salvadores e heróis. Sim. Porque nesse caso acusam os próprios acusadores. Não vivem de palavras vãs como os demais.
- Podemos ter outros pecados, menos esse - disse Bazárov.
- Como? Os senhores agem. Pretendem agir?
Bazárov nada respondeu; Páviel Pietróvitch teve um estremecimento e logo reconquistou o domínio de si mesmo.
- Sim... agir, destruir - continuou. - Destroem sem saber para quê?
- Destruímos, porque somos uma força - explicou Arcádio.
Páviel Pietróvitch olhou para seu sobrinho e sorriu.
- Sim, somos uma força que age livremente - insistiu Arcádio com veemência.
- Desgraçados! - gritou Páviel Pietróvitch. Perdeu definitivamente o controle de si mesmo. - Se ao menos pensasse no que, na Rússia, você está defendendo com essa vulgaridade! Não. Tudo isso é de fazer perder a paciência a um anjo! Força! Num selvagem, num mongol também existe força. De que nos serve ela? É-nos cara a civilização. São-nos caros os seus frutos. Não me diga que os frutos da civilização nada valem. O último dos indecentes, um barbouilleur*, um escamoteador de jogo que recebe cinco moedas por noite são mais úteis do que os senhores, porque representam a civilização e não a força brutal dos mongóis! Pensam os senhores que são homens da vanguarda. Estariam bem numa cabana de selvagens! Força! Lembrem-se, afinal, senhores da força, de que são apenas quatro pessoas e meia, e contra os senhores existem milhões que não lhes permitirão calcar os pés suas crenças sagradas. Esmagá-los-ão!
- Se esmagarem, assim é preciso - disse Bazárov. - Mas nãosomos tão poucos como o senhor supõe.
- Como? pretende chegar seriamente a um acordo com o todo o povo?
- Saiba o senhor que a cidade de Moscou já foi destruída pelo incêndio causado por uma uma vela de 1 copeque - respondeu Bazárov.
- Vejo primeiramente um orgulho quase satânico. Depois, sacrilégio. Aí está o que preocupa a mocidade! Aí está o que domina os corações inexperientes dos meninos de hoje! Olhe este aqui que está sentado a seu lado. Só falta rezar para o senhor (Arcádio fitou-o, sério). Esse mal já se espalhou demasiado, contaminando muitos . Disseram-me que em Roma os nossos artistas não visitam nunca o Vaticano, consideram idiota a Rafael, só porque ele é autoridade. Eles mesmos não têm talento. São verdadeiras nulidades. A sua fantasia ou imaginação não vai além da Jovem Fonte, quando chega para tal. O senhor conhece o valor artístico desse quadro, péssimo em todos os sentidos. Segundo sua opinião, será (essa atitude) um defeito ou ótima qualidade?
- Segundo minha opinião - respondeu Bazárov -, nem Rafael vale um ceitil, nem os nossos são melhores do que Rafael.
- Bravo! Ouça, Arcádio... Assim devem pensar os moços de hoje! Como, nesse caso, não hão de segui-los! Antigamente os moços eram obrigados a estudar: não queriam passar por imbecis e por isso trabalhavam. Agora basta que afirmem: "Tudo no mundo não tem valor!" E está bem. A juventude ficou satisfeita. Outrora os moços eram simples idiotas ou inúteis, hoje se tornaram de súbito niilistas.
- Traiu-o o seu sentimento, tão proclamado, da própria dignidade - observou fleumático Bazárov, enquanto Arcádio assumia um ar importante e seus olhos brilhavam. - A nossa discussão foi muito longe... É melhor terminá-la. Concordarei somente com o senhor - acrescentou, levantando-se - quando me indicar uma só instituição da nossa época, social ou familiar, que não seja passível de uma negação completa e irrefutável.
- Posso apresentar-lhe milhões de semelhantes instituições e princípios - exclamou Páviel Pietróvitch. - Milhões! A comunidade, por exemplo.
Um sorriso aflorou aos lábios de Bazárov.
- Quanto à comuna camponesa - respondeu - é melhor que fale aqui com o seu irmão. Ele, parece-me, já experimentou na prática o que é comuna. Ônus comum, temperança e outras coisas mais.
- E, finalmente, a família, sim, a família tal como existe entre os nossos mujiques! - exclamou Páviel Pietróvitch.
- Também essa questão deve ser examinada melhor pelo senhor do que por ninguém. Já ouviu falar em casamenteiros? Ouça-me, Páviel Pietróvitch. Bastam dois dias de prazo e terá qualquer coisa. Examinem todas as nossas classes sociais e pensem bem em cada uma, enquanto nós, eu e Arcádio...
- Rir-se-ão de tudo e de todos - sugeriu Páviel Pietróvitch.
- Não. Iremos dissecar as rãs. Vamos, Arcádio. Até logo, senhores!
Ambos os amigos saíram. Os irmãos ficaram a sós. A princípio entreolharam-se.
- Aí está - disse afinal Páviel Pietróvitch. - É a mocidade de hoje! São os nossos herdeiros!
- Herdeiros - repetiu tristemente, com um suspiro, Nicolau Pietróvitch. Durante toda a discussão se sentia mal e só de soslaio contemplava Arcádio. - Sabe de que me lembrei, mano? Uma vez discuti com minha mãe. Ela, zangada, não me queria ouvir... Finalmente eu lhe disse que não podia compreender-me porque pertencíamos a gerações diversas. Ela sentiu-se profundamente ofendida, e eu pensei: "Que hei de fazer? A pílula é amarga, mas é necessário engoli-la". Chegou agora a nossa vez. Os nossos herdeiros ou descendentes podem declarar-nos: "Vocês não são da nossa geração".
* Tagarela, trapalhão.
(Pais e Filhos; tradução de Ivan Emilianovitch)
(Ilustração: Fleury François Richard - jeune fille à la fontaine)
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