Macário fazia agradecimento, deixando a
vizinhança entoar sozinha. E virava o alto da cabeça nos joelhos. Os cabelos
soltos como erva escura por segar. Quando Jesuína Palha disse. O que vejo, meu
deus? Vem aí um carro. Um carro celestial. Celestial. Olhem todos. Traz os
anjos e os arcanjos. Oh gente. E São Vicente por piloto. Disse Jesuína Palha
que voltava da ceifa, ainda com o avental e o lenço repletos de praganas. Todos
olharam. Na verdade surgia na curva da estrada, pelo lado poente, qualquer
coisa de tão extravagante que todos os que conseguiam enxergar a mancha de
cores, virando as cabeças julgaram ir cair de borco sobre o chão da rua. Embora
a mancha já volumosa, avançasse lentamente. Ocupando no espaço as três
dimensões duma coisa visível, sólida e palpável. Mas os homens, pondo a mão, e
fazendo muito esforço para verem claro o que avançava com tanta majestade,
disseram. Menos rápidos e mais lúcidos. Vamos. Vamos ser visitados por seres
saídos do céu, e vindos de outras esferas. Onde os séculos têm outra idade.
Afastem-se, vizinhos, que esta visão costuma fulminar. As crianças correram
estrada fora, comandadas pela coragem. Sentiam que o mar ia chegar atrás dum
barco de velas alvadias e soltas, desfraldadas à levíssima brisa da tarde. E
também começaram a esbracejar, esboçando gestos de natação. Mas Macário. Tendo
sido o último a enxergar, teve a visão exacta. No momento da surpresa ainda
tinha os olhos fechados de repetir pela última vez. À espera de ocasião. À
espera de ocasião.
- Isto é um carro de combate. Oh vizinhos.
Na verdade, a pleno meio da estrada
avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épicos,
penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com bandeiras e flores. E cantavam
por um altifalante como se viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já
o espectáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros
segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a
audição desde há pouco. Para só ouvirem - e verem aquilo que chegava em cima do
carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde tempo dos reis nunca
mais se vira de igual. Ah maravilha. Então o carro parou em frente do grupo, e
fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas pensaram ir morrer. Mas
um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra
muito diferente. Começou a falar de cima do carro, agora parado no largo. Dizia
coisas. Que tinha feito uma re vo lu ção, e que era preciso animar os
espíritos. Porque tudo. Tudo. E abria uns braços de salvador. Tudo iria ser
modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre
daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo delicadas, como se não
sentisse o soldado o peso do corpo. Na farda, no cabelo levemente encaracolado.
E ninguém era capaz de dizer fosse o que fosse, presos, todos da surpresa e da
maravilha. Nem Macário. Nem Manuel Gertrudes. Os outros soldados sentindo sem
dúvida a perturbação que invadia os naturais de Vilamaninhos, levantaram então
os braços e disseram o que os ouvintes porventura queriam dizer. Mas falaram os
soldados em conjunto. Tão alto e tão vibrante. Que os vilamaninhenses só
compreenderam que uma grande coisa eles haviam dito, e maiores ainda teriam a
dizer no futuro. Quando acabaram o largo estava cheio de gente que escutava.
Nem se sentia o vazio dos ausentes. E Macário, receando que os habitantes de
Vilamaninhos estivessem a desempenhar o papel de bêbados na perfeição, e
animado, porque antes da chegada, acabara de ouvir da boca do seu vizinho, que
o seu lugar não deveria, ser ali. Sentindo-se patrício desses forasteiros.
Disse.
- Nós aqui soubemos logo, dois dias depois,
que vocês tinham feito a re vo lu ção. Mas nunca pensámos que chegássemos a ver
os heróis.
O soldado que havia falado agradeceu com a
mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que
tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo,
com flores a desfolharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra
se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha chegado. As mulheres menos
ociosas, e as moças, que haviam sido as últimas a descer, mas que mais próximas
se encontravam agora do carro de guerra, começaram a sentir que não poderiam
reprimir por mais tempo os sentimentos espontâneos, e porque o espectáculo era
o mais arrebatador das suas vidas puseram-se a gritar todas as palavras de
entusiasmo que souberam. Disseram vivas. Amigos, amores, irmãos. Seres divinos.
Libertadores da fome e da inveja. Disseram anjos, coisas formosas, filhos do
ventre e visitantes. E havia quem chorasse e cruzasse os braços sobre os seios
como se abraçasse os soldados que permaneciam heroicos e fardados sobre o carro
verde, da cor do rinchão. Singularmente aberto e blindado.
(O dia dos prodígios)
(Ilustração: Jacek Yerka)
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