“Il y a toujours du bon dans la folie humaine”
(Auguste Villiers de l’Isle-Adan - 1838-1889)
Pescando reminiscências com o anzol da memória, emerge a estranha sina de meu bisavô, contada e recontada no seio familiar. Em meados do século XIX, Marciano Gonçalves da Cunha, latifundiário de grandes extensões, chamado afetivamente de Vô Zito amarrava seu viver na fazenda Capoeirinhas, na região mineira do Alto Paranaíba. Enfadado com a mesmice do cotidiano foi gradativamente se ensimesmando. Sua renomada prolixidade foi se tartamudeando. Desviou pouco a pouco o olhar para dentro de si e pôs-se a devanear por dédalos nunca dantes percorridos. Sua bizarria intrigava a todos.
Um belo dia, ensandeceu-se de vez. Arrancou do corpo os andrajos e partiu em disparada capoeira adentro, gritando coisas ininteligíveis. Pego a laço e imobilizado foi confinado, desde então, em um cômodo que servia antes como despensa, próximo à cozinha, e que teve posteriormente a porta gradeada. Construíram, no quintal, para seus banhos de sol, uma geringonça de paus vazados, que mais parecia uma grande arapuca. Pelas frestas do madeirame, brincava com as sombras das estacas, com os raios do sol e tecia suas folias. Tendo que suportar a prisão das grades, recusava a prisão das roupas. Arrancava-as freneticamente sempre que era obrigado a se vestir. Nu, esperava o ensejo da volta, sem saber para onde e nem por quê. Uma cortina de silêncio impedia aos demais o acesso a seus desvarios. Não tendo o que fazer, nada fazia. Deambulava entre quatro paredes em busca de seu próprio eixo. O tempo se arrastava a passos lerdos.
Seu cárcere privado, contíguo ao cômodo mais importante da casa, prestava-se ao refinamento do olfato e à prelibação do paladar. Os mais variados eflúvios emanavam-se das panelas fumegantes e borbulhantes encaixadas nas trempes do surrado fogão a lenha. Do forno, alternavam-se prenúncios de pão de queijo, broa de fubá, biscoito de goma e chimanguinho. Esse último era seu quitute preferido. Não pelo sem-sabor, mas pelo estalar nos dentes e dedos.
Desde que enlouquecera, sua mulher, Maria Luiza ou Vó Lica, passou a usar luto fechado e fechou-se para o mundo. Com austeridade e resignação, amofinava-se diante dos desígnios do destino. Cumpria domesticamente as tarefas diárias e cuidava cristãmente do marido, tentando aliviar-lhe o peso das horas. Descontente da própria sorte, exilava-se também no silêncio e alimentava-se de lembranças de tempos idos. Em seu espírito penumbroso, às vezes, alvoroçavam-se lampejos de outrora. Tentava agarrar-se aos bons e evanescentes vislumbres da juventude. Fingia voltar no tempo por caminhos sem volta, vagueando nas neblinas do passado, sozinhando a solidão.
Certo dia, rompendo a mesmice rotineira, um milagre aconteceu. Houve grande reboliço na vida familiar! Como era de costume, anualmente, no início de janeiro, a Folia de Reis passava de fazenda em fazenda, cantando e angariando prendas para a festa de Santos Reis. Ao se aproximar da fazenda Capoeirinhas, local em que, havia anos, não se apresentava em respeito ao encasulamento da família, um dos foliões apertou as esporas, adiantou-se do grupo e, entrando no curral, anunciou-se em voz alta. Perguntou se podiam apresentar a cantoria em benefício da festa. Antes que Vó Lica se recusasse a ouvi-los, ouviram-se os brados de Vô Zito que, da cela, gritava que sim, que cantassem diante de suas grades. Vestiu-se adequadamente, pediu a bandeira de Santos Reis, ajoelhou-se sobre ela, postou-se todo o tempo contrito, cabisbaixo e de joelhos. A arrastada e plangente latomia dos foliões provocava ligeiros frissons no velho homem. Ao terminar o ritual, como que saindo de um êxtase ou epifania, ordenou que buscassem o mais cevado animal de sua pocilga e que o oferecessem ao santo. Descreveu minuciosamente o porco sem jamais tê-lo visto. Todos ficaram atônitos. Ele não visitava a pocilga desde que enlouquecera.
Após esse dia, meu bisavô estava curado. Todavia, com uma bizarra obsessão. Passou a profetizar que haveria uma seca muito prolongada, que acarretaria fome e morte se não se plantasse muita mandioca naquela região. Para a provisão da estiagem, pôs-se então a plantar e a lavrar a terra, compulsivamente, dia após dia. Os familiares pensavam que fosse uma forma mais branda de loucura ou talvez resquícios da antiga. Respeitado e admirado pelo incessante labor, matutinava-se mato adentro com o canto dos galos, para cultivar seu torrão. De sol a sol, trabalhava erguendo o profético mandiocal.
Chegada a hora, cumpria-se o vaticínio. A seca persistia, estendia-se no tempo, dissipando as provisões da vizinhança. Os celeiros se esvaziavam, o gado minguava, o estômago reclamava e o povo rezava.
A notícia do mandiocal do Vô Zito e da distribuição gratuita do alimento espalhou-se pelas cercanias. Brotava gente em todas as trilhas. A multidão enxameava-se à sua porta. Carros de boi, abarrotados, rangiam com o peso do ofício. Feliz por ajudar o próximo, o prestativo ancião não media esforços. Do crepúsculo matutino ao vespertino, labutava na colheita e no carregamento do donativo.
Finda sua sina, ao arrancar o último pé de mandioca, caiu sem vida, sem tempo para a extrema-unção e com direito ao descanso eterno. A terra que cultivara se lhe oferecia como derradeiro leito. Em sua hora e sua vez, foi-se o homem, ceifado pela foice daquela que a todos espreita, sempre solícita a conduzir os viventes pelos caminhos do absoluto.
Não se cogitou sobre o diagnóstico oficial da causa mortis. A família acatou os desígnios do Todo-poderoso, sem delongas. Para os fatalistas, aquilo não passava de um desatino do destino. Outros, alheios a crendices religiosas e à fatalidade, aproveitaram o ensejo para reflexões filosóficas, no afã de explicar o inexplicável.
Enterrou-se o fato, mas ele insiste ainda em ressuscitar na memória familiar.
(Ilustração: Militão dos Santos - folia de reis)
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