Devíamos falar hoje do último livro
do Sr. Fagundes Varela; o talentoso autor do prefácio que acompanha
os Cantos e Fantasias diz ali que um dos modelos do mavioso poeta foi o
autor das Inspirações do Claustro; esta alusão trouxe-nos à memória um dos
talentos mais estimados da nossa terra, e lembrou-nos de algum modo o
cumprimento de uma promessa feita algures. Além de que, convém examinar se há
realmente alguma filiação entre o poeta baiano e o poeta fluminense. Trataremos
pois de Junqueira Freire e da sua obra, adiando para a semana próxima o exame
do belo livro do Sr. Varela. Nisto executamos o programa desta revista; quando
a semana for nula de publicações literárias, — e muitas o são, — recorreremos à
estante nacional, onde não faltam livros para folhear, em íntima conversa com
os leitores.
Nem todos os poetas podem ter a
fortuna de Junqueira Freire, que atravessou a vida cercado de circunstâncias
romanescas e legendárias.
A sua figura destaca-se no fundo
solitário da cela comprimindo ao peito o desespero e o remorso. Como
dizem de Mallebranche, poderia dizer-se dele que é uma águia encerrada no
templo, batendo com as vastas asas as abóbadas sombrias e imóveis do santuário.
Rara fortuna esta, que nos arreda para longe dos tempos atuais, em que o poeta,
depois de uma valsa de Strauss, vai chorar uma comprida elegia; este é decerto
o mais infeliz: qualquer que seja a sinceridade da sua dor, nunca poderá ser
acreditado pelo vulgo, a quem não é dado perscrutar toda a profundidade da alma
humana.
Junqueira Freire entrou para o
claustro levado por uma tendência ascética; esta nos parece a explicação mais
razoável, e é a que resulta, não só da própria natureza do seu talento, como do
texto de alguns dos seus cantos. Três anos ali esteve, e de lá saiu, após esse
tempo, trazendo consigo um livro e uma história. Todas as ilusões desesperos,
ódios, amores, remorsos, contrastes, vinham contados ali, página por página.
Não é palestra de sacristia, nem mexerico de locutório; é um livro
profundamente sentido, uma história dolorosamente narrada em versos, muitas
vezes duros, mas geralmente saídos do coração. Compreende-se que um livro
escrito em condições tais, devia atrair a atenção pública; o poeta vinha falar
da vida monástica, não como filósofo, mas como testemunha, como o observador,
como vítima. Não discutia a santidade da instituição; reunia em algumas páginas
a história íntima do que vira e sentira. O livro era ao mesmo tempo uma sentença
e uma lição; não significava uma aspiração poética, pretendia ser uma obra de
utilidade; a epígrafe de P.-L. Courrier, inscrita no prefácio, parece-nos que
não exprime senão isto. De todas estas circunstâncias nasceu, antes de tudo, um
grande interesse de curiosidade.
Que viria dizer aquela alma, escapa
do mosteiro, heróica para uns, covarde para outros? Essa foi a nossa impressão,
antes de lermos pela primeira vez as Inspirações do Claustro. Digamos em
poucas palavras o que pensamos do livro e do poeta, a quem parece que os deuses
amavam, pois que o levaram cedo.
No prefácio que acompanha
as Inspirações do Claustro, Junqueira Freire procura defender-se
previamente de uma censura da crítica: a censura de inconsequência, de
contradição, de falta de unidade no livro, censura que, segundo ele, deve
recair sobretudo no caráter diferente dos "Claustros", a apologia do
convento, e do "Monge" condenação da ordem monástica. Teme, disse
ele, que lhe chamem o livro uma coleção de orações e blasfêmias. Caso raro! O
poeta via objeto de censura exatamente naquilo que faz a beleza da obra;
defendia-se de um contraste, que representa a consciência e a unidade do livro.
Sem esse dúplice aspecto, o livro das Inspirações perde o encanto
natural, o caráter de uma história real e sincera; deixa de ser um drama vivo.
Contrário a si mesmo, cantando por inspirações opostas, aparece-nos o homem
através do poeta; vê-se descer o espírito da esfera da ilusão religiosa para o
terreno da realidade prática; assiste-se às peripécias daquela transformação;
acredita-se na palavra do poeta, pois que ele sai, como Eneias, dentre as
chamas de Troia. O escrúpulo portanto era demasiado, era descabido; e a
explicação que Junqueira Freire procura dar ao dúplice caráter das
suas Inspirações, sobre desnecessária, é confusa.
A poesia dos "Claustros" é
uma apologia da instituição monástica; estava então no pleno verdor das suas
ilusões religiosas. O convento para ele é o refúgio único e santo às almas
sequiosas de paz, revestidas de virtude. A voz do poeta é grave, a expressão
sombria, o espírito ascético. Não hesita em clamar contra o século, a favor do
mosteiro contra os homens, a favor do frade. Confundindo na mesma adoração os
primeiros solitários com os monges modernos, a instituição primitiva com a
instituição atual, o poeta levanta um grito contra a filosofia, e espera morrer
abraçado à cruz do claustro.
O que faz interessar esta poesia é
que ela representa um estado sincero da alma do poeta, uma aspiração
conscienciosa; a designação do século XVIII, feita por ele, para tirar os seus
versos do círculo das impressões atuais e constituí-los em simples apreciação
histórica, nada significa ali, e se alguma coisa pudesse significar, não seria
a favor do prestígio do livro. Os "Claustros", o "Apóstolo Entre
as Gentes", e algumas outras páginas, exprimindo o estado contemplativo do
poeta, completam essa unidade do livro que ele não viu, por virtude de um
escrúpulo exagerado. Não diz ele próprio algures, saudando a profissão de um
religioso:
Eu também ideei a linda imagem
Da placidez da vida;
Eu também desejei o claustro estéril
Como feliz guarida.
Pois bem, as páginas aludidas
representam nada menos que a imagem ideada pelo poeta; dar-lhes outra
explicação é mutilar a alma do livro.
O poeta canta depois o
"Monge". É o anverso da medalha; é a decepção, o arrependimento, o
remorso. Aqui já o claustro não é aquele refúgio sonhado nos primeiros tempos;
é um cárcere de ferro, o homem se estorce de desespero, e chora suas ilusões
perdidas. Quereis ver que profundo abismo separa o "Monge" dos
"Claustros", ligando-o todavia, por uma sucessão natural? O próprio
monge o diz:
Corpo nem alma os mesmos me ficaram.
Homem que fui não sou. Meu ser, meu
todo
Fugiu-me, esvaeceu-se,
transformou-se.
Vivo, mas acabei meu ser primeiro.
.........................................................
Dista, dista de mim minh'alma
antiga.
Aquele ser primeiro,
aquela alma antiga, é o ser, é a alma dos "Claustros". A
transformação do poeta fica aí perfeitamente definida no livro. E para avaliar
a tremenda queda que a alma devia sentir basta comparar essas duas composições,
tão diversas entre si, na forma e na inspiração; elas resumem a história dos
três anos de vida do convento, aonde o poeta entrou cheio de crença viva, e
donde saiu extenuado e descrente, não das coisas divinas, mas das obras
humanas. Da comparação entre essas duas poesias, fruto de duas épocas, é que
resulta a autoridade de que vem selada aquela sentença contra a instituição
monacal. Sem excluir da comparação o "Apóstolo Entre as Gentes",
devemos todavia lembrar que há nessa poesia um tom geral, um espírito puramente
religioso, que não deriva da inspiração dos "Claustros", nem se
prende à existência dos mosteiros. O poeta canta simplesmente a missão do
apóstolo; a história e a religião são as suas musas. Falando a um sentimento
mais universal, pois que a filosofia não tem negado até hoje a grandeza
histórica do apostolado cristão, Junqueira Freire eleva-se mais ainda que em
todas as outras poesias, e acha até uma nova harmonia para os seus versos que
são os mais perfeitos do livro. Aí é ele mais poeta e menos frade: alguns versos
mesmo deviam produzir estranha impressão aos solitários do Mosteiro; o poeta
não hesita em proclamar a unidade religiosa de todos os homens, a mesma
divindade dominando em todas as regiões, sob nomes diversos. Os últimos versos,
porém, resumem a superioridade do sacerdote cristão; superioridade que o poeta
faz nascer da constância e do infortúnio:
Nos áditos do místico pagode
O ministro de Brama aspira incensos.
O áugure de Teos assentado
Na trípode tremente auspícios canta.
O piaga de Tupá, severo e casto,
Nas ocas tece os versos dos
oráculos.
E o sacerdote do Senhor, —
sozinho, —
Coberto de baldões, a par do
réprobo,
Ante o mundo ao martírio o colo
curva,
E aos céus cantando um hino
sacrossanto,
Como as notas finais do órgão do
templo,
Confessa a Deus, e — confessando —
morre.
A sentença de impiedade que o poeta
antevia, se lhe deram, não teve nem efeito nem base. Combatendo o anacronismo e
a ociosidade de uma instituição religiosa, Junqueira Freire não se desquitava
da fé cristã. A impiedade não estava nele, estava nos outros Veja-se, por
exemplo, os versos a "Frei Bastos", um Bossuet, na frase do poeta,
que se afogava, ébrio de vinho:
No imundo pego da lascívia impura
.....................................................
Desces do altar à crápula homicida,
Sobes da crápula aos fulmíneos
púlpitos.
Ali teu brado lisonjeia os vícios,
Aqui atroa apavorado os crimes.
E os lábios rubros dos femíneos
beijos
Disparam raios que as paixões
aterram.
Ora, vejamos: este espetáculo era
próprio para avigorar o espírito do poeta, na sua dedicação à vida monástica?
Imagine-se uma alma jovem, de elevadas aspirações, ascética por índole,
buscando na solidão do claustro um refúgio e um descanso, e indo lá encontrar
os vícios e as paixões cá de fora; compare-se e veja-se, se a elegia do
"Monge" não é o eco sincero e eloquente de uma dor eloquente e
sincera.
"Meu Filho no Claustro" e
a "Freira" exprimem o mesmo sentimento do "Monge"; mas aí o
quadro é mais restrito, e a inspiração menos impetuosa. O monólogo da
"Freira" é sobretudo lindo pela originalidade da ideia, e por uma
expressão franca e ingênua, que contrasta singularmente com a castidade de uma
esposa do Senhor.
Fora dessas poesias que compõem a
história do monge e do poeta, muitas outras há nas Inspirações do
Claustro, filhas de inspiração diversa, e que servem para caracterizar o
talento de Junqueira Freire: "Mílton", o
"Apóstata", o "Converso", o "Misantropo", o
"Renegado" várias nênias à morte de alguns religiosos. Todas nascem
do claustro; pelo assunto e pela forma; vê-se que foram compostas na solidão da
cela; esta observação precede mesmo em relação ao “Renegado”, canção do judeu.
Uma só poesia faz destaque no meio de todas essas: é a que tem referência a uma
mulher e a um amor. Entraria o amor, por alguma coisa, na resolução que levou
Junqueira Freire para o fundo do mosteiro? Ou, pelo contrário, precipitou ele o
rompimento do monge e do claustro? A este respeito, como de tudo quanto diz
respeito ao poeta, apenas podemos conjeturar; nada sabemos de sua vida, senão o
que ele próprio refere no prefácio. Qualquer que seja, porém, a explicação
dessa página obscura, nem por isso deixa ela de ser uma das mais dolorosas da
vida do poeta, um elemento de apreciação literária e moral do homem.
Tratamos até aqui do frade; vejamos
o poeta. Junqueira Freire diz no prefácio que não é poeta, e não o diz para
preencher essa regra de modéstia literária, que é comum nos prólogos; sentia em
si, diz ele, a reflexão gelada de Montaigne, que apaga os ímpetos. Teria razão o
autor das Inspirações? Achamos que não. Não é inspiração que lhe falta,
nem fervor poético; colorido, vigor, imagens belas e novas, tudo isso nos
parece que sobram em Junqueira Freire. O seu verso, porém, às vezes incorreto,
às vezes duro, participa das circunstâncias em que nascia; traz em si o cunho
das impressões que rodeavam o poeta; Junqueira Freire pretendia mesmo dar-lhe o
caráter de prosa medida, e por honra da musa e dele devemos afirmar
que o sistema muitas vezes lhe falhou. Tivesse ele o cuidado de aperfeiçoar os
seus versos, e o livro ficaria completo pelo lado da forma. O que lhe dá
sobretudo um sabor especial é a sua grande originalidade, que deriva não só das
circunstâncias pessoais do autor, mas também da feição própria do seu talento;
Junqueira Freire não imita ninguém; rude embora, aquela poesia é propriamente
dele; sente-se ali essa preciosa virtude que se chama — individualidade
poética. Com uma poesia sua, uma língua própria, exprimindo ideias novas e
sentimentos verdadeiros, era um poeta fadado para os grandes arrojos, e para as
graves meditações. Quis Deus que ele morresse na flor dos anos, legando à nossa
bela pátria a memória de um talento tão robusto quanto infeliz.
(Obra Completa de Machado de Assis; publicado
originalmente em “Semana Literária”, seção do Diário do Rio de Janeiro,
30/01/1866).
(Ilustração: Casper David Friedrich)
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