Acordo todas as noites às três horas
e dezesseis minutos. Vou até o quarto de meu pai que está à espera de remédios
para dormir sempre com os olhos abertos dos que morrem assustados. Sentado à
beira da cama ele toma na mão esquerda a pequena xícara branca onde um dia lhe
servi café. Agora cheia de água quase à borda. Ele toma o comprimido sem
esperança alguma de dormir. Faço a conta dos dias em que está
assim e me perco. Afrouxo a boca do relógio pensando que relógios não têm boca.
Gostaria de saber onde estamos. Meu pai sobre a borda da cama, eu agora à
espera de que descanse. Estou sobre o chão, sobre o andar de baixo, sobre o
térreo, sobre o concreto, sobre o cascalho, sobre o tijolo em fragmentos. Ainda
sobre a terra onde seremos enterrados.
Minha avó lá fora, indignada com a
busca de meu avô no meio da noite. Ela sopra a terra impura e me olha de longe.
Meu pai me chama pedindo mais água. Ela grita com o que lhe resta de voz que
estou errada em cuidar dele, que está morto como está morto meu avô.
Vista
por outro ângulo a vida, não estando, se refaz, respondo-lhe
chamando-a para dentro de casa. Neste instante ela me diz que eu deveria desistir
da busca ingrata sobre a qual nada sei. Dessa busca que matou meu avô, meu pai
e que definirá também o meu destino.
Seus olhos já não fixam as pálpebras
forçando a visão de coisa alguma. É espantoso que uma mulher tão forte e tão
bonita tenha agora apenas este rosto de porca. Que busca, que busca é
essa? Insisto para que me diga. Sobre mim caem as gotas de chumbo que
encharcam a noite. Vendo-a a arrastar-se na terra iluminada pelas estrelas,
sinto vontade de abraçá-la, mas está longe de meu alcance ainda que possamos
nos reconhecer. Só o que pronuncia com a insuperável dificuldade suína que
agora a consagra é que a busca de seu avô era por um ser humano.
Não sei o que fazer para movê-la de
lá. Volto para dentro de casa e meu pai continua no mesmo lugar. O relógio
continua parado e eu sei que a vida vai passar.
(Ilustração: Iberê Camargo)
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