Como artista da dimensão que tem hoje, Caravaggio foi uma descoberta do século 20. Mais exatamente, uma descoberta de Roberto Longhi, que ao pintor dedicou textos e exposições durante a vida inteira, desde a tese universitária de 1911 até a versão definitiva da monografia que aqui se publica, de 1968, dois anos antes de sua morte. Antes de Longhi, apesar da enorme difusão da escola "caravagesca" no começo dos Seiscentos e de sua influência sobre artistas do calibre de Velázquez, Zurbarán, Rembrandt ou La Tour, Caravaggio sempre fora um artista problema para teóricos e historiadores, difícil de encaixar numa linha evolutiva da arte ou num contexto histórico e ideológico determinado.
A literatura artística de linhagem clássica costumava reconhecer em Caravaggio, sim, uma inegável eficácia e uma extraordinária habilidade na reprodução do real, mas não a imaginação e a capacidade de composição que se demandava a um grande artista. Revalorizações de meados do século 19, filtradas ou pelo realismo de Courbet ou pelo mito ultrarromântico do "pintor assassino", não chegaram a reverter esse julgamento. Na passagem para o século 20, nem a escola crítica da visibilidade pura, nem os movimentos artísticos mais avançados, em sua orgulhosa reivindicação da autonomia da arte, sabiam muito bem o que fazer com um pintor tão obcecado com a reprodução fiel da realidade. É nesse momento que o jovem Longhi assume Caravaggio como o desafio sobre o qual moldaria, em grande parte, sua postura de crítico militante e historiador.
Hoje é difícil focar a postura de Longhi como crítico e historiador da arte, porque a literatura artística tomou outros rumos. Mas seu grande interesse está justamente no que tem de inatual. Cresceu num período de reação ao positivismo, liderada, na Itália, pelo filósofo neo-hegeliano Benedetto Croce. Contra a pretensa objetividade de uma "ciência da arte", Croce reafirmava o caráter valorativo da história e da crítica (já dizia, antecipando muito o debate atual, que a afirmação "Há uma obra de arte" é um julgamento de valor, não uma observação objetiva); e negava que classificações abstratas (por exemplo, os gêneros) ou demasiado concretas (as técnicas) pudessem servir como grade de referência para a avaliação da obra. Aliás, ia além: a própria distinção entre as artes não seria essencial. Toda arte é expressão, toda expressão é linguagem; toda arte, portanto, no que tem de essencial, é poesia (Estética como Ciência da Expressão e Linguística geral, 1901). Croce chegava assim a uma definição universal da obra de arte como intuição que se torna imagem, ou melhor, que já é imediatamente imagem. E por intuição entendia uma forma de pensamento ("lírico", porque nele conhecimento e sentimento se identificam) distinto tanto do conhecimento racional, quanto da razão prática ou moral. A intuição artística, para ele, não é nem moral, nem cognitiva, nem meramente formal (neste último caso permaneceria no plano da percepção sensível), mas gera desdobramentos formais, morais e cognitivos que influenciam a sociedade como um todo, inclusive outras obras. Nesse sentido, certamente, é um fato histórico, mas não pode ser deduzida, no que tem de essencial, das condições históricas em que surge, como um efeito de uma causa.
A intuição artística, diz Croce, é "auroral"; de resto, todo "fato histórico" é construção do pensamento, não mero dado objetivo. A função de críticos ou historiadores, então, seria a de identificar a intuição essencial que confere unidade estrutural à obra e destrinchar qual fato histórico ali se inaugura. Pesquisas sobre questões presentes na obra, mas não diretamente relacionadas com seu valor essencial (por exemplo, a filosofia de Dante ou a técnica de Tiziano), podem ser importantes culturalmente, mas não são, como tais, crítica ou história da arte.
Longhi sempre reconheceu sua dívida com Croce, mas foi, desde a juventude, um croceano rebelde e inconformado. Em um de seus primeiros ensaios publicados, Renascimento Fantástico (1912), já vai ao ataque: Croce tem razão ao unificar as artes sob o conceito da intuição lírica, mas erra ao reduzir a experiência plástica à poética. Dizer - é o exemplo que escolhe - que a última produção de Michelangelo é expressão do conflito entre o ideal cultural clássico e uma nova postura ética ainda significa considerá-la a partir de conteúdos que poderiam ser igualmente ou melhor expressos em literatura. Na obra de arte plástica não há "conteúdo": ela é o que se vê. Por isso ela não é histórica, no sentido que a poesia o é.
Naturalmente, é possível e necessário estabelecer genealogias, investigar de onde vem e para onde vai uma determinada solução formal. O valor de cada obra não é absoluto, é um valor de relação: relação, porém, não com os "conteúdos" da cultura da época, mas com outras obras de arte, e não necessariamente da mesma época. Qualquer generalização conceitual, nesse contexto, é indevida. Isso não significa, como veremos, que a arte se reduza a mero jogo formal.
Dentro da filosofia croceana, Longhi tentava assim escavar espaço para uma análise visual autônoma, em grande parte inspirada na escola da visibilidade pura (Hildebrand, Riegl, Wöllflin) que então estava começando a penetrar na Itália. Mas como não queria apelar a categorias gerais (os "conceitos fundamentais" de Wöllflin) nem a princípios como "espírito do tempo" ou o "espírito do povo", que afinal remeteriam a universalidades suspeitas; e como a objetividade da psicologia da forma lhe era ainda mais estranha; e como, finalmente, defendia, tal bom croceano, que o julgamento valorativo fosse critério da reconstrução histórica, e não vice-versa; o que restava de substancial ao crítico, afinal, era a presença física do objeto, perante o qual, como connaisseur, formula seu julgamento estético aqui e agora, aquém, ou além, de toda contextualização.
(OESP/ 8 de março de 2012)
(Ilustração: Caravaggio - Emmaus)
Nenhum comentário:
Postar um comentário