Em dia fresco e de chuva miúda, viajava eu na estrada de ferro Central. Vinha de S. Paulo para o Rio de Janeiro em trem que parecia, contra inveterados hábitos, dever chegar á hora regulamentar.
A locomotiva como que se aprazia a devorar o espaço – na frase consagrada – por tempo tão grato que dispensava calor, poeira e grandes atrasos, e o jornadear, calculado por tabela oficial de paradas certas, inflexíveis, sempre as mesmas, era relativamente agradável.
Na estação do Cruzeiro, onde desde largos anos – ia dizendo séculos – imperam o porte dominador, a alentada bengala, a enérgica gesticulação e as barbas medievais e enchumaçadas do major Novaes, entrou uma família, regressando de Caxambu.
Pai, mãe, bastante moços, esta ainda vistosa, bonita, um filho de 12 para 13 anos, visivelmente doente, duas criadas, uma branca, outra preta, e um molecote, vestido de pajem, muitas malinhas de mão, xales, cobertores, travesseiros, garrafas de leite e águas minerais, embrulhos com restos, sem dúvida, da matalotagem, comida à descida da serra.
Tudo aquilo às carreiras se arrumou nos bancos vazios ao lado e ao redor de mim.
Afinal, apitou a máquina e partiu o barulhento comboio.
Cansado de ler, esgotados os jornais de S. Paulo, parcos de novidades, e um tanto aborrecido com um romance de Charles Merouvel comprado no Garraux, que não me interessava, nem merecia interesse, pus a observar os recém-chegados.
No rosto de todos a inquietação, concentrada no menino que, apenas sentado, pedira para se deitar.
- Sinto-me tão fraco! Exclamou dolente. Não tenho mais forças!...
E com muita solicitude, criadas e molecote, auxiliando apressados os amos e obedecendo-lhes às indicações, arranjaram os meios de dar melhor cômodo ao doentinho, cujos pés iam além do banco e se contraíam de cada vez que passavam os empregados do trem.
Sim, doente, muito doente até. E tão simpático, tão meigo, uma expressão de tanta doçura na fisionomia, nos olhos bem rasgados, pestanudos, negros, cintilantes, mais do que o normal, uns olhos de sofrimento e febre!... Os lábios como que reviam sangue, de tão rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente apartadas da cabeça, umas orelhas desmarcadas, como as do malogrado Napoleão IV, mostravam-se brancas, diáfanas, num grau de deplorável e significativo descoramento.
Impressionaram-me logo de princípio os modos e as observações do menino. A cada momento, sorria para os pais com imensa ternura repassada de melancolia, ainda que nessa contínua e comovedora carícia transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.
- Apesar de tudo - disse todo super-excitado - estou mais valente do que homem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela janela. Que pena! Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom havemos de viajar a valer, não é? Levarei os meus cadernos de estudos e lucrarei muito. Não deve haver melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante dos olhos... E eu, que fazia outra idéia da Mantiqueira... mais sombria, mais cheia de buracões e pedras. Tão catita, que ela é!...
E buscando outra posição, gemeu surdamente.
- Sentes muita febre, boy? - Perguntou a mãe com angústia.
- Muita, não... já disse à mamãe, menos do que ontem; assim mesmo tenho cá dentro em fogo!... Mas que bonita a serra desde o túnel até ao Perequê!...
- Talvez a frialdade da água te tivesse feito mal, observou o pai; dois copos cheios...
- Que mal, papai? Nunca bebi com tanto gosto, nunca! Eram uns copinhos... parecia que aquela água devia curar-me afinal...
E como que em subdelírio:
- Que bonita a descida! Como o céu estava puro! Eu quisera poder, como um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando, voando, por cima de todas aquelas montanhas e dobras e matarias!
E o sol, como que brilhava, com um calor tão bom, de saúde; não como calor de febre!
- Lorena, não é, papai? Já em baixo, na várzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a vida, a vida... a gente sentir-se valente, robusto... sem necessidade de tanto remédio amargo!
- Vamos pôr-lhe o termômetro? Propôs a mãe para o marido com uma lágrima a cair-lhe da pálpebra.
Recalcitrou um pouco o pobrezinho.
- Não, mamãe; sempre esta maçada! Ficar parado um tempão... e para quê, afinal? Esta febre não quer me deixar... bem feliz se puder ir vivendo com ela... me acostumando aos poucos.
Resignou-se, porém, com gracioso amuo e quedou-se imóvel e silencioso, com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.
E os olhos negros, pestanudos, cintilantes, giravam de um lado para outro, enquanto a ponta da língua, em continuo vaivém, molhava os lábios ressequidos e gretados pelo ardor da terrível consumação.
Cruzaram-se os seus olhares com os meus e tiveram como que um sorriso de simpatia e cordialidade, com uma pontinha de vexame por estar assim doente, aniquilado, naquela inferioridade da moléstia triunfadora, invicta.
Embora um tanto casmurro na viagem e nada propenso a entabular relações com adventícios companheiros de caminho, não me contive e, inclinando-me para o lado em que estava a mãe, perguntei-lhe, abaixando a voz:
- Desde muito enfermo este interessante menino?
Respondeu-me a senhora com verdadeiro açodamento de quem acha uma válvula de expansão a constante e incompressível sobressalto.
- Muito não... uns quarenta dias. Nem o senhor imagina como boy era forte e são... dormia como um chumbinho... bom apetite sempre, ávido de movimento... Boy não parava..., travesso como um cabritinho, muito bonzinho porém, sempre...
E boy isto e boy aquilo. Chamava-o assim desde criancinha. A madrinha, muito dada a leituras inglesas, lhe pusera essa apelido familiar...
- De que não gosto nada, interrompeu o menino com engraçada seriedade. Eu me chamo Alberto.
Mas a mãe continuava:
- Haviam feito, no mês anterior, um passeio fatal à chácara de uns amigos para os lados do Jardim Botânico, ele se agitara de mais com os camaradas numas correrias sem fim, se resfriara...
- Brincaram perto de uma vala aberta de pouco, explicou o pai... – à noite, perturbação de digestão, e desde aí uma febre tenaz, rebelde, que nada pudera atalhar. Tomara já quinino... um despropósito!... um horror!... Depois contínuas mudanças, Gávea, Engenho Novo, Cascadura, Barbacena, Caxambu, tudo sem resultado...
- Não há tal, contraditou o pequeno, já estive pior... É não desanimarmos. Olhem, façam tudo para não me deixarem morrer... Tenho tanto que aprender e estudar!... Que atraso este tempo todo em pura perda! Como o Cardoso e o Souza devem ter-se adiantado nas aulas!... Quando é que hei de pegá-los agora?...
- Não pensava noutra cousa, ia-me dizendo a mãe, enquanto as lágrimas, como que já por hábito, lhe corriam a fio. Tão boa criança, tão estimada de todos, estudioso... tanto estímulo! Uma ambição insaciável de saber... Muitas vezes se levantara ela da cama para apagar-lhe a vela e fazê-lo deitar-se... Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as lições, ouvir os professores... Nunca se vira cousa igual... Tirara já bonitos prêmios... livros muito dourados, com gravuras...
- Já mamãe está falando de mim - interrompeu Alberto com ligeiro tom de repreensão. - Este senhor há de desculpar... é de toda a mãe. Não sou melhor do que tantos outros... - E o seu rosto ensombreceu-se. - Pelo contrario, valem mais do que eu, muito mais...
- Por quê, meu amiguinho? - Perguntei comovido.
- Oh! Eles têm saúde; eu nunca mais hei de tê-la, ainda que escape desta... Também, d’ora em diante saberei arredar-me sempre de valas abertas... Verdade é que me diverti tanto! - E recomeçava o subdelírio.
- Papai, não é tempo de tirar o termômetro? Está me incomodando. Além da febre e sede... esta caceteação!...
Era tempo.
-Quantos graus? Indagou a mãe com dolorosa sofreguidão. - 38º e 8, respondeu o pai. Hoje, bem melhor do que ontem, pois a esta hora Alberto tinha 39 e 2.
Via-se, porém, que encobrira a verdade, pois destoavam as aquietadoras palavras com o ar de desalento que simultaneamente se lhe estampava no rosto. Ao guardar o termômetro no estojo de metal, fez-me imperceptível sinal. Levantei-me e fingi que ia refrescar o rosto no cubículo ao lado, poeirento e sujo toilette do vagão.
Daí a pouco, chegava o homem.
- 39 e 8, foram as suas primeiras palavras, pontuadas de terror.
E, acabrunhado, pôs-me a contar o caso, banal, diário, tão comum, mas sempre pungitivo da sua imensa desgraça. Esse menino, a alegria da sua vida, a vida da sua mulher, ricos eles, sem mais objetivo algum na existência. Agora, aquela febre invencível, que zombara de tudo e lhes estava matando a adorada criança, debaixo dos olhos, dia por dia.
“Mudem de ares”, era o incessante conselho dos médicos; o recurso único que lhes restava. E não faziam outra cousa; de um lado para outro, semanas inteiras. Para onde mais ir? E os terrores em lugares distantes, ermos, sem recursos, sem para quem apelar, quando vinham acessos de estupenda violência!...
Ao tomar então nos braços o filho, parecia que o tirava de um braseiro... queimava... Como poderia por mais tempo resistir organismo tão delicado?... Que cruel expiação era essa? E expiação por quê? Afinal, nem ele, nem a mulher tinham culpas ou crimes a pagar? Por que os esmagava, tão dura, a mão de Deus? De que o acusava a justiça eterna?
Pouco se importara, a principio, com a tal febre, não pelas afirmações, sempre tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados; a mestrança, portanto, graças a Deus, podia pagá-los generosamente; mesinhas tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados; a mestrança, portanto, graças a Deus, podia pagá-los generosamente; mas afigurava-se-lhe impossível, fora de toda a ordem, lei e justiça, que a vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passara isso pela mente... nunca!...
E a custo lhe vinham as palavras... mas a morte a nada atende... a nada! É inexorável!
Prorrompendo então em soluço pranto, agarrou-se a mim, convulsivamente.
- Ah! meu filho, Alberto! Quanto é castigada a minha soberba! Está perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias ainda o hei de possuir?
Sacudi-o com certa energia:
- Silêncio! Sua senhora pode ouvi-lo! Olhe, lave o rosto; esconda os sinais da sua comoção.
Naturalmente exagerava o perigo...
O desconsolado pai abanou a cabeça; mas obedeceu-me opresso e alquebrado.
(Ao Entardecer e Outros Contos)
(Ilustração: Loïc Allemand)
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