Betina entrou na sala de aula com passos miúdos e cautelosos, para que seu lindo calçado não se sujasse. Era um tênis cor-de-rosa, que ganhara de D. Alzira, para quem sua mãe lavava roupa. Não cabia mais no pé da sua filha e quem sabe dava na menina de Francisca. Esta sorriu de alegria, pelo presente que daria à filha no dia do seu aniversário.
Naquele dia tomou banho sem que a mãe mandasse. Aliás, ela raramente mandava. Somente quando acordava sóbria, o que era inusitado. Se o dinheiro da bebida acabava e o dono da venda encerrava o fiado, ia à casa da D. Alzira lavar roupa e esta sempre lhe dava algo para comer. No final do mês era uma festa, ao receber o Bolsa Família. Comprava na venda um pastel com refrigerante de uva para a menina e pagava a conta mensal. Bebia o dia todo, entrando pela noite. Saía de casa e voltava com mais um pretendente.
A meninada a olhava insistentemente. Betina, toda orgulhosa, atravessou o portão da escola. Na classe, ninguém ousaria caçoar dela por sua sandália de borracha cujo cabresto estava preso ao solado por um prego enferrujado. Jogara na carroça do lixo. Agora possuía sapatos de verdade.
Na hora do recreio, podia ir ao pátio exibir seu tênis cor-de-rosa. Mas não foi. Ficou parada, sentada na cadeira, tensa, calada. A professora notou que hoje ela não fedia a fezes como nos outros dias. Certa vez fora preciso levá-la ao chuveiro e mandar tomar um banho. A pele era sempre suja e não dava para dizer sua cor de origem. O cabelo sempre despenteado e a blusa da farda imunda. A mãe fora chamada à diretoria, mas compareceu bêbada, sem condição para dialogar. A menina chorava de vergonha da mãe, puxando-a para ir embora dali.
A professora condoía-se dela, arranjava-lhe roupas velhas da vizinhança. Mas logo no dia em que saíra de casa limpa e com tênis novo, não entendia a timidez da garota.
- Betina, por que não vai brincar? Seu tênis está muito bonito!
- Não estou com vontade, tia.
- Por que não vem todos os dias assim para a escola, banhada, penteada, roupa limpa?
Duas garotas, aproximadamente da mesma idade, irromperam na classe, correndo uma atrás da outra. Uma delas aproximou-se, interessando-se pelo diálogo.
- Tia, na casa dela só tem cacimba. Moro vizinho, mas na minha tem água.
A professora não desistiu:
- Levante-se Betina e vá brincar com suas amiguinhas. Laura, convide-a para brincar com vocês.
Betina suspirou de tristeza. Como gostaria de sair correndo com as outras, rir e gritar pelo pátio. Antes tinha medo que o prego da sandália se rompesse. Ia ter que andar dez quarteirões até a sua casa, descalça, atolando-se nas calçadas barrentas, chegando ainda mais suja do que quando ia à escola. Mas agora estava de tênis novo, ou quase novo, parecendo ter sido comprado na loja.
Laura, mostrando-se bem informada, foi logo anunciando.
- Professora, hoje é o aniversário da Betina, por isso ela está de sapato.
Betina ficou mais triste ainda e baixou a cabeça, quase a chorar. A professora levantou-a com os braços, fazendo um certo esforço ante a resistência da menina. Mesmo assim conseguiu que ela ficasse de pé.
- Muito bem garota, parabéns! quantos anos?
Betina respondeu num soluço:
- Nove.
- Pois então, venha, vou lhe levar ao pátio agora mesmo, vai brincar com a garotada.
Betina não dava um passo. A professora achou estranho. Examinou-lhe as pernas. O que estaria acontecendo? Tirando a timidez natural da criança, desconhecia que ela tivesse qualquer problema nas pernas, pés ou articulações.
- Vamos minha filha, o que você tem? Logo no dia do seu aniversário você fica triste?
Saiu arrastando a menina até o pátio, que de pernas abertas manquejava e fazia caretas de dor. Não suportando mais, soltou-se da professora e sentou-se no primeiro banco que avistou no pátio. A essa altura a meninada já rodeava, pelo inusitado da cena.
- O que ela tem?
- O que houve, tia?
- Ela fez cocô nas calças?
Betina caiu num choro convulsivo e a professora correu até a sala dos professores onde pegou algodão e álcool. Ao voltar, deparou-se com outra cena. Laura, a amiguinha que morava na mesma rua da menina, desatara-lhe os cadarços do tênis e tentava puxá-los, com muita dificuldade. Quanto mais puxava, mais a menina gemia. Finalmente conseguiu livrá-la do calçado, dois números menores que o pé de Betina.
A meninada não riu, como sempre fazia. Um profundo silêncio congelou a cena.
(Ilustração: Gianni Strino)
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