É um motivo para quadro. A mulher está sentada num degrau do hall de um edifício e tem no regaço uma criança de meses – seu filho – envolta numa manta. Jovem ainda, mas sem nenhum viço ou frescor. O vestido simples tem um rasgão lhe deixa a descoberto o braço e a espádua, como se ela o houvesse desabotoada atrás para a pica de uma agulha. Um sulco violáceo desce do ombro para as costas, e no no rosto, à altura da orelha – ela está de perfil – há uma equimose, uma esfoladura, coágulos de sangue. O cabelo, copioso, sobe para o alto da cabeça, preso por grampos ao acaso, e se levanta em mechas revoltas sobre a fronte. Uma lágrima aponta no canto do olho e outra desliza pela face. Rodeiam-na figuras indistintas, que vagos traços mal sugerem, mas duas delas têm desenho e relevo: um homem atarracado, de feições severas, e uma garota, de seus dezesseis anos, menina e moça – que estende para a mulher uma mamadeira de leite. O braço esquerdo da mãe ampara a criança no regaço e a mão direita já se ergue para alcançar a mamadeira; ela fita a garota e seu rosto exprime angústia e sofrimento, e também um nascente, quase imperceptível, sorriso de gratidão.
O tema é este, mas creio ser necessário acrescentar alguns elementos. Podem ser três ou quatro ou seis os degraus que dividem o hall em dois planos e importa pouco que a garota tenha ou não cabelos compridos ou esteja de vestido ou blue-jean. Parece-me que o homem, de meia idade, deve ser apresentado de paletó e blusa. Um quadro é, em si, estático, não se liga a outros numa sequência de ação, como os que figuram a via-sacra, e eu não queria ir mais além. São sempre dispensáveis, nas galerias e exposições, guias que nos levem de um a outro quadro para explicar-lhes o sentido, porque a exigência de intérpretes tornaria a pintura uma arte limitada. Mas, já que não dispomos de modelos, convém – para avivar a imaginação – relatar as circunstâncias que produziram a cena. Ademais, ocorre-me um pensamento que me contradiz: se a vã curiosidade obstina-se em saber porque faltam braços à Vênus de Milo, o conhecimento de que a obra permaneceu durante séculos no seio da terra nada acrescenta à sua perfeição, mas aumenta nosso prazer estético.
Cumpre, pois, saber por que está ali a mulher com seu filho, por que chora e está ferida e tem o vestido rasgado, e por que lhe oferecem a mamadeira, e por que está zangado o porteiro. O homem é porteiro do edifício, zeloso de suas funções, e não lhe agrada esse ajuntamento no hall. Corando perdidamente a mãe descera do segundo andar, pela escadaria, com a criança nos braços, e, porque lhe faltassem forças, sentara-se no degrau. Pessoas que passavam na rua e alguns dos moradores – é um edifício residencial de doze pavimentos – acercaram-se, penalizados. Por que chorava aquela mulher com a criancinha nos braços? Conseguiram arrancar-lhe algumas palavras e o faxineiro do prédio ajuntara alguns esclarecimentos. Não era a primeira vez que ela vinha pedir dinheiro ao pai da criança, que convivia com outra mulher no apartamento 205. O homem não era marido de nenhuma das duas, estava desquitado, ou simplesmente separado, de uma terceira, de que não havia notícia. Seduzira a que está sentada no hall. Tinha sido um namoro rápido, esta mãe dissera a uma empregada do 7º andar, dias atrás. A família suspeitara ou fora informada de que se tratava de homem casado e hostilizara-o. Não é preciso repetir o que um sedutor pode sussurrar ao ouvido de uma moça honesta para induzi-la a fugir com ele. A felicidade, juras de terno amor e o casamento, um dia, quando certas dificuldades fossem removidas. (Antes que me esqueça: a mãe tem um dos pés descalço. O faxineiro subiu a escada, foi ao corredor do segundo andar, mas não encontrou a sandália). A moça deixou-se ludibriar. Residiram aqui mesmo, em Copacabana, um ano e meio. Ela teve um filho – este que está aí – e bastaram-lhe duas semanas para conhecer a índole do companheiro. Era irritável, violento, maltratava-a mesmo durante a gravidez, e abandonou-a quando o menino tinha três meses. Ela ficou sozinha, sem recursos. Para manter-se e à criança, ia vendendo tudo que representasse valor – os móveis, parcos e modestos, utensílios domésticos – e não apurava grande coisa. Agora, havia três meses de aluguéis vencidos, queriam pô-la na rua, a criança passava fome. Viera, mais uma vez, pedir auxílio ao ex-companheiro, que se divertia com outra. Ele se enraivecera, agredira-a brutalmente. Por pouco, até a criança inocente apanhava também. Murros no rosto, tabefes, pontapés, onde quer que acertassem. E palavrões. Quando ela procurava escapar pela porta, protegendo o filhinho, o homem batera-lhe com um objeto contundente – veja o vergão nas costas, o sangue ressecado no rosto.
- Não resmunga, senão apanha! – grita alguém.
- Ela, se fosse casada, teria o amparo da lei – retruca o porteiro, sem se intimidar. – Devia ter pensado duas vezes antes de se entregar ao primeiro que apareceu. O regulamento proíbe aglomerações no hall!
- Para o inferno com o seu regulamento!
Um motorneiro de bonde se sentimentalizara, quisera ir lá em cima descer o braço no homem. “Cachorro! Arrebento a fuça dele”! Chegara a subir a escada – o motorneiro – mas um senhor de calção de banho fora-lhe no encalço, conseguindo detê-lo. “Isso é invasão de domicílio, coisa grave, dá processo.” Resolveram, os dois, chamar a polícia. Fazia quarenta minutos que tinham telefonado e a polícia não aparecia. A mulher, rompendo seu silêncio, dissera entre soluços: “Não posso aparecer perante meu pai e minha mãe com esta criança, há coisas que não podemos fazer, tentei, não pude!”
O tema é este, creio que basta. Espera: quando a mulher recebeu a mamadeira, fez-se silêncio. Uma gorda matrona, ali perto, sentiu que seus olhos se marejavam, não tanto pelo gesto da mocinha – oferecendo à mãe aflita a mamadeira – mas sim pela avidez com que a criança se pôs a ingerir o leite. Parecia dormir, mas seus olhos abriram-se num espanto, os bracinhos miúdos se ergueram, as mãozinhas sôfregas tateavam numa busca impaciente.
Menciono, finalmente, as indagações que se faziam os circunstantes. Qual seria o destino das duas criaturas? Pensava-se – não se dizia – que àquela jovem mãe não restaria outra alternativa que a de mercadejar o próprio corpo. Penúria e vicissitudes recentes haviam contribuído para o desmazelo de sua figura, mas um vestido melhor, a pintura, um pouco de trato realçariam seus encantos naturais e sua juventude.
Mãe com filho no colo. É o quadro. Angústia, lágrimas, os sinais da agressão, o vestido rasgado, a mão que se levanta para alcançar a mamadeira; as figuras mal esboçadas; o porteiro carrancudo; a garota – moça e menina – e sua tranquila compassividade, que é conhecimento da maldade e inocência. Não tenho pretensão de impor o assunto a nenhum artista. É um convite ao devaneio. Entreguei-me à fruição de fixar o quadro na mente e proponho essas experiência e exercício. Ainda assim, não se trata de pintura feita de nada, emoldurada na abstração. É preciso pensar também no material: variados tipos de pincéis e tubos de óleo adequados. Há alguns anos tentei a aquarela com insignificantes resultados – morro por uma leve e translúcida aquarela! – mas, no caso, o óleo é insubstituível. Que o quadro tenha força, caráter e expressão – foi para isso que expus, um tanto desnecessariamente, os antecedentes da cena e suas implicações. Selecione as cores com critério. Tons sombrios. Cinza ou azul-violeta podem sugerir as equimoses e o sangue. Não importa que o rosto da criança fique oculto nas dobras da manta. Que a sépia e suas gradações figurem os tons mais claros e o fundo se perca em insondável escuridão.
(Festa; 1959)
(Ilustração: Daumier)
Escrevemos mais, isso é tudo o que tenho a dizer. Literalmente, parece que você contou no vídeo para fazer seu ponto. Você definitivamente sabe o que você está falando, por que jogar fora a sua inteligência em apenas postar vídeos para o seu site quando você poderia estar nos dando algo informativo de ler?
ResponderExcluir?????????
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