quarta-feira, 13 de abril de 2011

ONDE ESTÁS, LOLITA?, de Vladimir Nabokov






Sábado. Há já alguns dias que deixo entreaberta a porta do meu quarto, enquanto escrevo, mas só hoje a armadilha funcionou. Com muito mais nervosismo, evasivas e rapapés do que é habitual - para disfarçar o embaraço que lhe causava visitar-me sem ser convidada -, Lo entrou e, depois de meter o nariz aqui e ali, interessou-se pelos rabiscos de pesadelo que eu acabara de traçar numa folha de papel. Oh, não, não eram obra de um inspirado beleletrista, numa pausa entre dois parágrafos! Eram os horrendos hieróglifos (que ela não podia decifrar) da minha fatal concupiscência. Quando a Lo inclinou os caracóis castanhos para a secretária à qual estava sentado, Humbert, o Rouco, enlaçou-a, numa triste imitação de parentesco consanguíneo. Ainda a observar, com olhos um pouco míopes, a folha de papel que segurava, a minha inocente visitinha deixou-se escorregar para uma posição de meio sentada, no meu joelho.


O seu adorável perfil, os seus lábios entreabertos e o seu cálido cabelo estavam a uns oito centímetros dos meus arreganhados caninos, e eu sentia o calor das suas pernas, através do tecido áspero das roupas de maria-rapaz.



Compreendi, de repente, que lhe podia beijar, com absoluta impunidade, o pescoço ou o canto dos lábios. Sabia que ela consentiria e até fecharia os olhos, como Hollywood ensina. Um sorvete duplo de baunilha com creme quente de chocolate - seria algo pouco mais invulgar do que isso. Não sei dizer ao meu erudito leitor (cujas sobrancelhas desconfio que, nesta altura, já se devem ter arqueado até à nuca da sua cabeça calva), não lhe sei dizer como adquiri tal conhecimento; talvez o meu ouvido de macaco tivesse captado inconscientemente qualquer ligeira modificação no seu ritmo respiratório - pois, entretanto, ela deixara de examinar os meus gatafunhos e aguardava, com curiosidade e compostura - oh, minha transparente ninfita! -, que o seu fascinante hóspede fizesse o que estava mortinho por fazer. Calculei que uma garota moderna, ávida leitora de revistas cinematográficas e perita em close-ups lentos como um sonho, talvez não achasse muito estranho que um amigo adulto, interessante e intensamente viril... Tarde de mais. A casa vibrou subitamente com a voz da gárrula Louise, a comunicar a Mrs. Haze que ela e Leslie Tomson tinham encontrado não sei o quê de morto na cave, e a pequenina Lolita não era pessoa para perder semelhante história.


Domingo. Mutável, mal-humorada, alegre, desajeitada, graciosa com a graciosidade picante da sua subadolescência inexperiente -, dolorosamente apetecível da cabeça aos pés (toda a Nova Inglaterra pela pena de uma escritora!), do laço preto, já feito, e dos ganchos que lhe prendiam os cabelos à pequena cicatriz da parte inferior da barriga da perna perfeita (onde um patinador a atingira em Pisky), uns cinco centímetros acima do grosso soquete branco. Foi com a mãe a casa dos Hamiltons - uma festa de anos ou coisa parecida.

Vestido de saia rodada, de tecido de algodão às riscas. As pombinhas dos seus seios parecem já bem formadas. Precoce armadilha!

Segunda feira. Manhã chuvosa. «Ces matins gris si doux...» O meu pijama branco tem um desenho lilás nas costas. Sou como uma dessas pálidas e inchadas aranhas que se costumam ver nos velhos jardins. Instalada no meio de uma teia luminosa e dando puxõezinhos a este ou àquele fio. A minha teia está estendida por toda a casa, enquanto eu escuto na minha cadeira, na qual estou sentado como um manhoso feiticeiro. A Lo estará no seu quarto? Suavemente, puxo a seda da teia. Não está. Ouvi há pouco o porta-papel higiênico emitir o staccato habitual, ao girar; e o meu filamento esticado não captou passos alguns, da casa de banho para o seu quarto.

Ainda estará a lavar os dentes (o único ato de higiene que Lo pratica com verdadeiro interesse)? Não. A porta da casa de banho acaba de bater; portanto, há que auscultar em qualquer outro ponto da casa a presença da bonita presa de cores cálidas. Deixemos um fio de seda descer a escada...


Certifico-me assim de que não está na cozinha - nem a bater com a porta do frigorífico, nem a gritar à sua detestada mamã (que, suponho, saboreia a sua terceira, arrulhadora e reprimidamente jovial conversa telefônica da manhã). Bem, tateemos e esperemos. Como uma aranha, deslizo em pensamento até à sala e encontro o rádio silencioso (e a mamã ainda a conversar com Mrs. Chatfield ou Mrs. Hamilton, em voz muito suave, toda ela corada e sorridente, protegendo o bocal do telefone com a mão livre, negando implicitamente que nega esses boatos divertidos acerca do hóspede, sussurrando em tom muito íntimo, coisa que a bem delineada dama nunca faz numa conversa cara a cara): consequentemente, a minha ninfita não está em casa! Saiu! O que eu supusera uma urdidura prismática mais não é, afinal, do que uma velha teia de aranha cinzenta, a casa está vazia, morta. E, de súbito, ouço o riso suave e doce de Lolita através da minha porta meio aberta: "Não diga nada à minha mãe, mas comi o seu bacon todo!" Já desapareceu de novo, porém, quando saio apressado do meu quarto. Onde estás, Lolita? O tabuleiro do meu pequeno-almoço, preparado com carinho pela minha senhoria, ri-se desdentado e sardonicamente, à espera de ser levado para dentro. Lola, Lolita!



(Lolita)



(Ilustração: Dino Valls)




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