sábado, 12 de março de 2011

A RESISTÊNCIA AO MEIO CRIA O HOMEM, de Máximo Gorki





Contudo é verdade... vou estudar, vou para partir para a Universidade de Kazan – quem entretanto o diria?

A ideia de Evreinov, estudante do liceu, um belo adolescente de olhos meigos, foi quem ma incutiu. Residia no cimo da habitação, no mesmo prédio que eu, e interessou-se por mim penso que por ver-me muitas vezes voltado às minhas leituras. Travamos conhecimento. Logo Evreinov procurou me convencer de que “eu tinha queda extraordinária para a ciência”.

– A natureza criou-te para servir a ciência! – dizia ele, sacudindo a sua farta e linda cabeleira. Nessa época, todavia, ignorava o papel de cobaia que poderia ser ser útil a ciência. Evreinov demonstrava-me com forte evidência, que as universidades necessitavam de gente precisamente como eu! Naturalmente, não deixou de mencionar Miguel Lomonosov; Evreinov dizia-me que em Kazan eu viveria em sua casa, que durante o outono e o inverno frequentaria o curso dos liceus, que faria depois “uns exames” – era assim que ele dizia “uns exames” – que, na universidade, ganharia uma bolsa de estudo e que, no prazo de cinco anos, me converteria “sábio”. Tudo isto era absolutamente simples, porque Evreinov tinha dezenove anos e um bom coração.

Partiu após ter feito seus exames e, passados quinze dias, segui-o.

Minha avó, quando a deixei, deu-me este conselho: - não te irrites contra as pessoas, foste sempre irritado, exigente e arrogante. Isso, herdaste de teu avô, mas quer era o teu avô? Tanto tempo viveu e nunca passou de um imbecil, de um velho intratável. Lembra-te de uma coisa: não é deus que julga os homens, ao demônio é que isso agrada. Bem, bem... adeus...

E, enxugando umas lágrimas que teimavam em correr pelo rosto flácido e cor-de-cera, acrescentou:

- Nunca mais nos veremos: tu não paras, vais para longe e eu... eu, qualquer dia, morro...

Nos últimos tempos, tinha de fato, afastado da adorável velhinha, e via-a mesmo raras vezes, porém naquele preciso momento senti, de repente, que nunca mais encontraria alguém que me fosse tão chegado pela carne e pelo coração.

De pé, à proa do barco, vi-a na ponte, benzer-se com ambas as mãos, enxugar com a ponta do velho xale o rosto, os olhos fundos, resplandecentes de inexaurível amor pelos homens.

Eis-me nesta cidade meio tártara, alojado num exíguo compartimento e uma caca térrea. Esta solitária casinha que se diria sobreposta sobre um outeiro, ao fundo da rua estreita e pobre, dava para um terreno inculto em que abundavam as ervas ruins. Aí, num matagal de absinto, urtigas, azedas bravas, entre moitas de sabugueiros, erguiam-se as ruínas de um edifício de tijolos; no seu fundo, viviam e morriam os cães vadios. Lembro-me muito bem desse recinto: uma das minhas universidades.

Os Evreinov, mãe e dois filhos, viviam de uma pensão miserável. Logo nos primeiros dias observei a tristeza trágica com que a pobre viúva, de estatura pequena e apagada, estendia sobre a mesa da cozinha as compras insignificantes que fizera no mercado, procurando solucionar este difícil problema: como tirar de tão insignificantes pedaços de carne de terceira, quantidade suficiente de boa alimentação para três rapazes saudáveis, sem já contar com ela mesma.

Taciturna, os seu olhos cinzentos refletiam a teimosia doce e resignada do cavalo esgotado pelo trabalho excessivo; o pobre animal arrasta a carroça na ladeira; sabe que não chegará ao fim, mas continua.

Certa manhã, dois ou três dias após a minha chegada, enquanto os filhos ainda dormiam e eu a ajudava na cozinha a descascar as batatas, perguntou-me com um ar sério e doce:

- Que veio fazer aqui?

- Estudar na universidade.

As sobrancelhas subiram-lhe juntamente com a pele amarela da testa; fez um corte no dedo com a faca e, chupando o sangue, deixou-se cair numa cadeira mas levantou-se imediatamente, murmurando:

- Diabo!...

Enrolou o lenço no dedo cortado e fez-me este elogio:

- Sabe descascar batatas.

Como não havia eu de sabê-lo! Contei-lhe então que trabalhara num barco. Perguntou-me:

- E pensa que isso chega para entrar na universidade?

Nessa época, compreendia mal a ironia. Levando a sério a pergunta, expliquei-lhe, minuciosamente, o plano de ação que deveria abrir-me as portas do templo da ciência. Suspirou:

- Ah, Nicolau, Nicolau!

No mesmo instante, Nicolau, ainda com sono, despenteado, alegre como de costume, entrou na cozinha para se lavar.

- Mãe, não seria nada mau se fizesses empadas.

- Está bem, está bem – concordou ela.

Eu, para exibir meus conhecimentos culinários, declarei que, para empadas, a carne não prestava e que, aliás, era escassa.

Bárbara Ivanovna zangou-se, lançou-me ao rosto palavras de tal forma violentas que senti minhas orelhas se queimarem. Atirou o molho das cenouras pela mesa afora e saiu da cozinha. Nicolau, para explicar a atitude da mãe, piscou-me o olho e segredou-me:

- Está mal disposta...

Sentado num banco, declarou-me que, de modo geral, as mulheres eram mais nervosas que os homens; era próprio da sua natureza, como fora, peremptoriamente, demonstrado por um sábio muito sério – um suíço, julgava ele; e John Stuart Mill, um inglês, dissera também qualquer coisa a esse respeito...

Nicolau gostava muito de me amoldar a inteligência. Aproveitava toda a ocasião favorável para me meter na cabeça alguma dessas noções indispensáveis à vida. Eu o ouvia com interesse, do que resultava que Foucault, La Rochefoucauld, La Rochejacquelin, se confundiam no meu espírito numa única personagem, e que não conseguia discernir qual dos dois, Lavoisier ou Dumouriez, tinha decepado a cabeça do outro.

O meu amável companheiro desejava ardentemente “fazer de mim um homem”, prometia-mo com toda a convicção, mas faltava-lhe tempo e condições várias para se ocupar de mim como devia. O egoísmo e a frivolidade da juventude impediam-no de avaliar ao menos os quantos esforços e subterfúgios com que a mãe ia mantendo a casa, e o irmão, um colegial pesadão e taciturno, reconhecia-os menos ainda. Por mim, conhecendo a fundo, há muito tempo, os artifícios complicados da química e economia culinárias, apercebia-me muito bem da engenhosa habilidade daquela mulher, obrigada a enganar diariamente os estômagos dos filhos e, além do mais, alimentar um intruso de aparência desagradável e mal educado. Era evidente que todo o bocado de pão que eu recebia, me caísse na alma como uma pedra; portanto, decidi-me a procurar trabalho. Logo pela manhã saía de casa para não almoçar e, quando chovia, metia-me no recinto do terreno inculto. Então, respirando o cheiro dos cães e gatos mortos, sob o ruído da chuva e o sibilar do vento, não tardei a compreender que a universidade não passava de uma ilusão e que seria mais sensato partir para a Pérsia; já me encarnava na figura de um mágico de barba grisalha, capaz de fazer crescer os grãos de trigo até ficarem do tamanho de maçãs, batatas e pesarem quinze libras e inventar uma porção de benfeitoria para este planeta no qual não era o único a me debater com tão drásticas dificuldade.

Eu aprendera a imaginar aventuras extraordinárias, feitos grandiosos. Ajudava-me deveras nos maus dias e, como eram numerosos, cada vez mais eu me entregava a esses sonhos.

Não contava com auxílio de quem quer que fosse, tampouco tinha esperança de qualquer feliz acaso, mas a pouco e pouco desenvolvia-se em mim uma vontade obstinada e, quanto mais duras eram as condições de vida, tanto mais forte, mais inteligente me sentia. Bastante cedo compreendi que é a resistência ao meio que cria o homem.


(As Minhas Universidades; tradução de Paulo Rodrigues) 



(Ilustração: Egon Shiele - family) 
























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